Resumo: O artigo traz algumas relações/semelhanças entre Hamlet, de Shakespeare, e O Príncipe de Maquiavel. Portanto, pela "perspectiva" da Razão de Estado e não pela versão reducionista do "maquiavelismo" (maniqueísmo político), também podemos observar uma teoria política em Shakespeare.
Palavras-chave: Maquiavel. Príncipe. Virtù. Hamlet. Astúcia.
Louco, como se o mar e o vento em luta
Quisessem disputar qual o mais forte
Shakespeare
O artigo quer assinalar algumas relações/semelhanças entre o Hamlet de Shakespeare e O Príncipe de Maquiavel. Não se trata de trabalho pronto e acabado, mas de início, de uma sinalização possível de correlação. Assim, iniciando-se pela "perspectiva" da Razão de Estado e não pela ótica reducionista do "maquiavelismo" (que é, em suma, um maniqueísmo político), temos uma teoria política em Shakespeare. Afinal, Hamlet, o pai, quando foi assassinado pelo irmão, por causa do trono (...e da cunhada?) seria vingado por Hamlet, o filho, que se passaria por louco (a idéia da astúcia) para enfrentar a "força" do tio.
Como dizia Vico (1999, p. 233), acompanhado de Maquiavel, "homens de virtù" são fundadores de Estado:
[...] já porque Rômulo era conhecido como rei de Alba, e porque tal mãe fora demasiadamente iníqua para produzir somente homens, tanto que precisaram raptar as sabinas para ter mulheres. Por isso, deve-se dizer que, pela maneira de pensar dos primeiros povos mediante caracteres poéticos, a Rômulo, tido como fundador de cidades, foram atribuídas as propriedades dos fundadores das cidades do Lácio, em meio a um grande número das quais Rômulo fundou Roma.
Assim Hamlet, que não fundou um Estado, mas que retomou o poder usurpado em busca de justiça e de "equilíbrio de forças". Sua ação inteligente e perspicaz lhe dava a direção do poder a ser retomado: "Louco, como se o mar e o vento em luta [...] Quisessem disputar qual o mais forte." (SHAKESPEARE, 2004, p. 255).
Hamlet e a astúcia
Hamlet é um homem do bem ou do mal?
Hamlet é um homem político, ainda que não seja um homem de Estado, como Maquiavel, preocupado com a razão de Estado. Mas, Hamlet é político, na medida em que o político possa trazer reconhecimento às condições da vida moderna — como vemos na estrofe acima citada.
Hamlet é um personagem de virtù? [01] A virtù de Hamlet o leva a procurar criar situações, oportunidades, condições favoráveis ao desfecho de seu drama: a sua loucura é apenas uma das estratégias.
A virtù de Hamlet indica que precisamos, para viver a modernidade, de uma visão de mundo bem articulada, que disponha de um razoável senso de oportunidade, capaz de uma leitura da lateralidade e da profundidade das coisas. Portanto, a virtù de Hamlet deve nutrir-se desse senso de oportunidade — em síntese, a virtù, daqui por diante, será considerada sinteticamente como senso de oportunidade.
O mais importante é o Hamlet como a própria metáfora do mundo moderno. Assim, Hamlet se passa por louco: essa idéia de se passar por louco não indicaria a astúcia de Hamlet em manipular a atenção e ao mesmo tempo desviar o foco daquilo que não lhe agradava?
A virtù, neste sentido, seria esta habilidade em criar situações e manipular a atenção pública para focar ou desfocar o olhar, dependendo de sua vontade: "Fingindo ser louco e, de fato, bastante perigoso, esse Hamlet é, ao mesmo tempo, pré-shakesperiano e pós-moderno e, certamente, sente-se bem à vontade com a retórica do provérbio e da fábula." (BLOOM, 2004, p.115).
O que indica o louco do Tarô, pela leitura hermetista [02] que estaria por trás de Hamlet? Curiosamente, representa o mesmo Hamlet que quando voltou do mar, voltou reformado, renascido, um Hamlet como novo homem. O Louco ou Coringa indica o novo que vem do velho, a modernidade que surge das tradições, mas que ainda não sabe perfeitamente ser a modernidade. Por isso, será preciso o Fausto, para anunciar definitivamente, lavrando a escritura, formalizando este novo.
Mas, em suma, mesmo em se tratando de o Hamlet-Louco, a loucura é falsa, por isso bem calculada, com intenção clara de despistar a atenção e de remover a vigilância sobre os reais fatores. Na loucura forjada, Hamlet é senhor da situação, controlando a todos, como vemos neste diálogo entre Rosencrantz e Guildenstern:
ROSSENCRANTZ.
Ele confessa que a razão lhe foge,
Mas de nenhuma forma diz por quê.
GUILDENSTERN.
Nem se mostra disposto a ser sondado;
Com uma hábil loucura, vais distante
Se queremos trazê-lo à confissão
Do que ele sente.
(SHAKESPEARE, 2004, p.215).
No fundo, a loucura é só um pretexto para encobrir o real objetivo, que é vingar a morte, ou homicídio presumido, do pai (o rei Hamlet) pelo próprio tio (Cláudio, atual rei da Dinamarca) – daí a expressão, há algo de podre no reino da Dinamarca. E como se não bastasse o fedor do poder usurpado, o tio Cláudio ainda teria levado a mãe (a rainha Gertrudes) para o casamento, meses após enviuvar.
A verdade sobre o homicídio presumido teria sido contada pela própria vítima, o rei Hamlet, ressurgindo como fantasma diante de seus soldados e levando-os a procurarem o jovem príncipe Hamlet — seu filho. O príncipe Hamlet, por sua vez, precisa apenas encontrar provas ou indícios seguros de que o trono havia sido usurpado e assim poder vingar o rei (pai) defenestrado:
HAMLET.
Vilão cruel, traidor e incestuoso [03]
Oh, vingança! [...]
Esses atores, diante de meu tio,
Repetirão a morte de meu pai [...]
Preciso encontrar provas menos duvidosas.
É com a peça que penetrarei
O segredo mais íntimo do rei.
(SHAKESPEARE, 2004, p.212-213).
Depois, no núcleo da loucura, Hamlet revela mais uma vez, nas entrelinhas, que seu objetivo é a vingança, uma vingança que se alterna entre familiar e política, pois não deixa de ser a vingança pela morte do rei (além do pai). No núcleo da loucura, Hamlet se dirige a Ofélia, tentando ser convincente:
HAMLET.
Entra para um convento. Por que desejarias conceber
Pecadores? [...]
Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com
Mais erros ao meu alcance do que pensamentos para
Expressá-los, imaginação para dar-lhes forma, ou
Tempo para cometê-los [...] Somos todos uns
Rematados velhacos; não acredites em nenhum de nós.
Entra para um convento [...]
OFÉLIA.
Oh, poderes celestiais, curai-o!
(SHAKESPEARE, 2004, p.220-221).
É interessante notar como a virtù permite a Hamlet manipular os sentidos e os sentimentos, para melhor conduzir seus adversários/inimigos e as circunstâncias: uma hábil manipulação dos sentidos. Por outro lado, se a manipulação dos sentidos é típica da loucura, então, a ideologia não lhe é assim tão diferente — agora como manipulação da consciência. A vingança, por seu turno, também será apenas mais um recurso da teatralidade hamletiana para revelar a alma humana mais profunda, como a viam os humanistas-realistas do final do século XVI e início do século XVII — Hamlet foi escrito exatamente em 1600. A vingança, portanto, não é o foco, mas tão-só o meio.
Sob esse aspecto do Louco, do que vem do que já havia, da inconsciência que se dirige à consciência, das tradições que buscam a modernidade, da magia e do mito em direção à racionalidade e à ciência [04], Hamlet é um precursor de Fausto.
Em relação a isto há dúvida ou controvérsia. Mas, sem dúvida alguma, a virtù é fáustica: inovadora, empreendedora: "A imitação que Goethe faz de Hamlet, Fausto, ao morrer, expressa satisfação, sendo sepultado tranquilamente, ao contrário de Goethe, que especulava a isenção da morte, suposto mérito de uma consciência tão criativa quanto a sua." (BLOOM, 2004, p.112).
Este Hamlet-Fausto seria uma espécie de Fausto-Zero (o Fausto escrito por Hamlet na juventude, o esboço do Fausto-maduro), seria a consciência humana (mais do que a razão), uma obra, uma empreitada que o Fausto maduro construiria a seguir, já no âmago da modernidade. Esta consciência do Fausto-Zero que é o conhecer o mundo novo, mas para isso é preciso abrir novas portas e velhas feridas, para então reconhecer o mesmo velho-mundo-refeito e ainda rarefeito pela cara de novo.
Outra das muitas leituras possíveis de Hamlet foi proposta por Victor Hugo, sugerindo a reinvenção do Mito de Prometeu. É interessante frisar que novamente volta à tona a questão do conhecimento, do saber, das virtudes necessárias ao mundo moderno – já todo direcionado à ciência moderna que estivesse a serviço do capitalismo nascente ou florescente. Ou seja, também não se trata de um saber-por-saber, diletante, mas sim de um conhecimento-a-serviço, engajado, instrumental, a propósito de.
Victor Hugo, sempre contagiante e ousado, via em Hamlet um novo Prometeu, supostamente, roubando o fogo da consciência divina a fim de expandir o gênio da humanidade. Os estudiosos fazem troça a Hugo; eu o reverencio. Ainda assim, cabe a indagação: como é possível ser Prometeu em um cosmo desprovido de Zeus? Desprendido e livre, Hamlet anseia por um forte oponente, mas descobre que há de ser ele mesmo o seu próprio oponente. É o precursor da situação em que nós mesmos somos levados a ser o nosso pior inimigo. (BLOOM, 2004, p.121).
O Hamlet-Prometeu lembra apenas (ou enfatiza) o quanto somos os piores inimigos de nossa própria virtù, especialmente num mundo (como diz o jovem Marx) em não há nada mais sagrado, nem respeitado. Por isso, nunca se precisou tanto da virtus dos humanistas do século XV, exatamente por que não há mais a virtude que leve à verdade.
Agora já pensando em Hamlet como o homem-personagem dotado da maior virtù que se conheceu na história da humanidade, quase como semi-Deus (suportando o peso da consciência humana), será Hamlet um tipo inaugural, um homem-novo, nascido que também havia de melhor na história humana. Hamlet é o rei Davi:
A paixão de Hamlet (se assim pudermos chamá-la) remete mais a Davi do que a Cristo, mas, vale lembrar, os crentes têm Davi como ancestral de Jesus. O carisma expira, gloriosamente, no palco, para a nossa edificação. Sentimo-nos engrandecidos, não diminuídos, pela morte de Hamlet. (BLOOM, 2004, p.93).
Hamlet é a encenação da virtù, o personagem encarna a virtù moderna – assistir a peça ou ler o poema inacabado é ver este desfile vivo da virtù. Certamente é forçoso lembrar que Maquiavel cita Moisés, como exemplo de homem de virtù, e não o rei Davi – considerado precursor de Cristo na tradição da virtù cristã. Aliás, vale lembrar que Maquiavel também não cita Jesus Cristo como exemplo de homem de virtù, talvez por ter aberto mão da política: "daí a César o que é de César!". É verdade que Maquiavel dizia louvar os fundadores de religião, mas deles não trata. Moisés criou um Estado ou a necessidade de um Estado, ao passo que Cristo edificou uma tradição: a religião cristã.
O personagem Hamlet foi maior do que autor Shakespeare.
Mas será mesmo Hamlet a apoteose da virtù?
Talvez Shakespeare, tendo reinventado o humano, supera-se a si mesmo, criando um novo tipo de homem, representado pelo Hamlet que regressa do mar [...] O novo Hamlet é o Davi dinamarquês (e inglês), que veio outorgar o seu carisma como imagem para a nossa reflexão [...] O intelecto e a espirituosidade do Príncipe são tão ferozes, agora ainda mais aperfeiçoados, com relação ao brilho anterior, que chegam a obscurecer o atrevimento da volta do protagonista à corte dinamarquesa. Ao regressar, não lhe restam opções, senão matar ou ser morto [...] De modo singular, Hamlet funde inteligência e compreensão, e poderia ser visto como o Antropos, ou Homem-Deus hermetista reencarnado [...] Não sabemos (e nem precisamos saber) o que mais perturbava Shakespeare, mas sabemos o que mais perturbava Hamlet: ser um deus mortal inserido em uma peça imortal [...] Hamlet sabe que merece o papel principal em um drama cosmológico, que Shakespeare não estava bem preparado para compor. (BLOOM, 2004, p.84-87).
A real nobreza, a maior grandeza da virtù está em ombrear, em espírito e em inteligência, com o mais nobre dos feitos humanos, isto é, uma tarefa só à altura de que aceita o desafio de encarar, encarnar o antropoformismo. Porém, agora com um duplo desafio: conhece-te a ti mesmo, mas conhece-te para se refazer moderno e para se libertar. Por isso, em Hamlet surge esta pérola da modernidade: não há liberdade sem consciência.
No próprio texto shakespereano, na voz de Laertes, pai de Ofélia, Hamlet é este homem de virtù que não pode ser só um homem, mas sendo aquele devotado homem-político à causa nobre da Razão de Estado – um homem que deve abrir mão da sua vontade pela vontade política, do Estado:
LAERTES.
Talvez ele te ame
Agora, e não há mácula ou embuste
Que manche o seu desejo; mas, cuidado:
Ele é um nobre [05], e assim sua vontade
Não lhe pertence, mas à sua estirpe.
Ele não pode, qual os sem valia,
Escolher seu destino: dessa escolha
Dependem segurança e bem do Estado;
Assim, o seu desejo se submete
À voz e ao comando desse corpo,
Do qual ele é a cabeça. Se ele afirma
Que tem ama, cabe a ti acreditar
Somente no que possam permitir
A sua posição e a Dinamarca
(SHAKESPEARE, 2004, p.163).
Logo à frente, Laertes dará outras lições, até prosaicas, de como a educação de uma jovem mulher requer astúcia para enfrentar o mundo do homem adulto, o mundo da política, da disputa e da sobrevivência:
LAERTES.
E no orvalho sutil da mocidade
São comuns os contágios que corrompem.
O medo é a melhor arma da virtude;
Pois o desejo engana a juventude [...]
Evita entrar em brigas; mas se entrares,
Agüenta firme, a fim que outros te temam.
Presta a todos ouvido, mas a poucos
A palavra: ouve a todos a censura,
Mas reserva o teu próprio julgamento [...]
Sobretudo sê fiel e verdadeiro
Contigo mesmo; e como a noite ao dia,
Seguir-se-á que a ninguém serás falso
(SHAKESPEARE, 2004, p.164-165).
Não há como não ver que aí há um ensinamento para a virtude, isto é, a virtù é aprendizado: talvez, hoje em dia, o conhecimento específico e engenhoso que move o próprio sistema do capital. Depois de Fausto, o homem de virtù será o homem do capital, e não necessariamente o homem-político.
Em termos políticos complementares, Hamlet também sugere o cultivo e o uso do senso de proporção, como queria Weber (1979). Aliás, o uso da vingança seria exemplo de uma desproporção, se compararmos o arguto príncipe Hamlet e o pobre rei Cláudio — por isso, o objetivo tem que ser outro, de outra grandeza.
Dotado de inteligência imensa, muito maior do que a nossa — se não formos, digamos, Freud ou Wittgenstein —, Hamlet é incapaz de acreditar que o uso adequado de suas faculdades, de sua razão divina, é levar a cabo a morte por vingança [...] A desproporção entre agente e ato só poderia ser disfarçada por meio de teatralismo, e honra não basta, como disfarce, para transformar uma casca de ovo, como Cláudio, em um grande argumento. O abscesso de Hamlet é o absurdo de adequar a sua grandeza à podridão em que se encontra a Dinamarca. (BLOOM, 2004, p.73-74, grifo nosso).
Equivale, guardadas as proporções, à necessária adequação entre meios e fins. É como se a própria vingança quisesse chamar atenção para a necessária razão, pois a razão grandiosa, a razão não-niilista, mas que ilumina soa como a alma da virtù. De fato, Hamlet será dotado de uma inteligência arguta, avassaladora, genial, capaz de desafiar os mais experts. Em uma passagem simbólica, depois de assassinar Polônio (pai de Ofélia), em conversa com Rosencrantz, sobre o destino do próprio cadáver, Hamlet trava a seguinte conversa:
ROSENCRANTZ.
Toma-me por uma esponja, meu Senhor?
HAMLET.
Exato. É uma esponja que se ensopa nos favores do
Rei, em suas recompensas e autoridades. Mas tais
servidores prestam, afinal, os melhores serviços ao Rei:
ele os conserva, como um macaco faz com as nozes,
no canto do maxilar; é o que primeiro abocanha, mas
engole por último. Quando precisa daquilo que colheu,
basta espremê-lo, e ficará seco novamente.
ROSENCRANTZ.
Eu não o compreendo, meu senhor.
HAMLET.
Isso me alegra. Uma fala safada dorme em um
ouvido lotado.
(SHAKESPEARE, 2004, p.258).
Assim, a virtù de Hamlet aparece para descortinar as razões da modernidade, com extrema astúcia, argúcia, inquirindo nossa inteligência em meio ao uso de tantas metáforas. Aliás, como visto acima, as metáforas são de uso constante, mas em outras situações elas também são marcantes, como quando desafia a parca inteligência do lacaio Guil. Na verdade, é como se desafiasse a todos nós, mas vejamos um pouco mais de Hamlet:
HAMLET.
Quereis tocar esta flauta?
GUIL.
Senhor, eu não sei.[...]
HAM.
É tão fácil quanto mentir. Controlai esses orifícios
Com os dedos e o polegar, dai-lhe fôlego com a boca,
E ela falará com música muito eloqüente [...]
GUIL.
Não sei fazê-los provocar qualquer sonoridade
harmônica. Falta-me a habilidade.
HAM.
Pois vede, então, que coisa sem importância fazeis de
mim. A mim quereis tocar, meus controles, parece
que conheceis; quereis arrancar o âmago do meu
segredo [06]; fazer-me soar da minha nota mais baixa até o
alto da minha escala; e há muita música, voz excelente
neste pequeno órgão, e no entanto não podeis fazê-lo falar.
Por deus, pensais acaso que sou mais fácil de tocar do que
uma flauta?
(SHAKESPEARE, 2004, p.238-239).
Além disso, Hamlet ainda relaciona a virtù do Iluminismo que não provêm da força, mas sim do conhecimento: ao invés do General, o enciclopedista e mesmo que os sucessores de tudo fossem Bonaparte e depois dele, Hitler.
Mas a própria razão invocada por Hamlet [08] teria seu preço, não seria em hipótese alguma inodora, incolor, insípida, uma vez que a revelação não tem limites ao investigar e aí está a dor — nada se preserva, nada se subtrai, nada se furta, enfim, nada se esconde. Como a razão é espessa, indócil, amarga, até insalubre para o espírito fraco, muitas vezes utiliza-se da metáfora, a exemplo do próprio Hamlet — uma metáfora da consciência. O próprio Hamlet usaria da loucura como sua metáfora de vida. Na voz de Polônio, pai de Ofélia e consultor do rei Cláudio, dialogando com Hamlet: "Como suas respostas são penetrantes — uma felicidade que a loucura alcança às vezes, e que a razão e a sanidade não têm a sorte de encontrar." (SHAKESPEARE, 2004, p.198).
Depois, mais à frente, nas palavras do próprio Hamlet, vemos como a razão de ser de sua loucura é auscultar a verdade — realmente, é preciso ser dotado de uma inteligência muito superior para este engenho, e sendo ele um ator: o ator de sua própria vontade.
HAM.
Há hoje um espetáculo a que o Rei
Vem assistir. Uma das cenas mostra
As mesmas circunstâncias que cercaram
A morte de meu pai, que te contei:
Peço-te quando vires essa cena,
Que uses da mais aguda observação
Sobre o meu tio. Se o seu crime oculto
Não se denunciar em certo ponto,
Então é um mau fantasma que nós vimos
(SHAKESPEARE, 2004, p.226).
Além de visualizarmos a vingança como meio da verdade, a loucura como metáfora da razão, ainda é necessário ressaltar que o objetivo grandioso de Hamlet não é discutir a política ou a função do Estado (mesmo que haja algo de podre no reino! [09]). Pois, se o personagem busca representar a consciência humana, então, em sua grandeza de espírito, o alcance é maior, entrando mais profundo na alma humana do que se fora só a política. A alma humana é muito maior e mais complexa do que o senso político.
De qualquer forma, a virtù de Hamlet se fará ainda mais grandiosa na famosa/fabulosa apoteose do ser ou não ser, eis que esta foi a questão colocada por Shakespeare. Mas, vejamos as estrofes tão decantadas e cantadas, em verso e prosa:
HAM
Ser ou não ser,essa é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer — dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne — é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer — dormir;
Dormir, talvez sonhar — eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invólucro
Mortal, fazem cisnar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos [...]
Quem carregara suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte —
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou — não nos turbasse a mente
E nos dissesse arcar co’o mal que temos
Em vez de voar para esse que ignoramos?
Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira as decisões
Desmaia no indeciso pensamento,
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação.
(SHAKESPEARE, 2004, p.217-218).
Em síntese, para Hamlet, tem virtù aquele que está pronto, aquele que é capaz de identificar as oportunidades, "seja o que for!":
HAM.
De modo algum. Nós desafiamos o augúrio. Há uma
providência especial na queda de um pardal. Se tiver
de ser agora, não está para vir; se estiver para vir, não
será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. O
estar pronto é tudo. Se ninguém conhece nada daquilo
que aqui deixa, que importa deixá-lo um pouco antes?
Seja o que for!
(SHAKESPEARE, 2004, p.310, grifo nosso).
Então, como é mesmo que a virtù perde a força como ação política? Deveria ser: "ser ou não ser, eis a virtù", mas será que ainda é?
REFERÊNCIAS
BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O''Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
MAQUIAVEL, N. O príncipe: Maquiavel. Traduzido por Sérgio Bath, com um guia de estudo preparado pela Dra. Rosemary O''Day; traduzido por Maria José da Costa F. M. M. Mendes. Brasília, DF: Ed. UNB, 1979. (Curso de introdução à ciência política).
SHAKESPEARE, W. Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução de Ana Amélia de Queiroz Carneiro Mendonça. In: BLOOM, H. Hamlet: poema ilimitado. Tradução de José Roberto O''Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. p.140-319.
VICO, Giambattista. A Ciência Nova. Rio de Janeiro : Record, 1999.
WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.
Notas
Na famosa citação de Petrarca (MAQUIAVEL, 1979): "Vertu conta furor".
O hermetista se dedica ao estudo da Alquimia, Cabala, Pitagorismo, Platonismo, Astrologia.
Portanto, casara-se com a cunhada.
Não é à toa, portanto, como diz Weber (1979), que a racionalidade científica é uma crença (irracional).
Aqui, deve-se ler um nobre homem-político (como queriam os clássicos gregos) ou o nosso homem de virtú, como se referia Maquiavel (1979).
Quando Hamlet se passava por louco, tentando descobrir se o pai realmente fora assassinado pelo irmão.
O peso e a angústia da verdade e da consciência.
Como diz o soldado Marcelo, ao deparar-se com o fantasma do rei Hamlet e ao ver o príncipe Hamlet seguir a sombra do pai: "Algo está podre aqui na Dinamarca" (SHAKESPEARE, 2004, p.172).