2. A INTERPRETAÇÃO CONFERIDA PELO STF À AUTONOMIA COLETIVA DE VONTADE DOS SEVIDORES PÚBLICOS FRENTE AO ESTADO
Em que pese a íntima relação existente entre o direito à sindicalização, à greve e à negociação coletiva, é significativa a parcela de juspublicistas brasileiros [54] que nega a possibilidade de interação entre a Administração Pública e seu corpo funcional.
A manutenção dos postulados do Estado autoritário, no que pertine às relações com seu corpo funcional, está calcada nas seguintes razões, em regra utilizadas pela doutrina [55]: (1) a Constituição Federal não enuncia a negociação coletiva como direito dos servidores públicos; (2) o Princípio da Legalidade e o Princípio da Reserva Legal são significativos óbices à negociação coletiva entre servidores e Poder Público, pois com sua atividade constitucionalmente vinculada às disposições legais e à reserva de competência, a Administração Pública não dispõe do mínimo poder decisório nas questões que regulam a relação laboral com seus servidores, (3) o Estado não dispõe dos interesses por ele representados, considerando-se que age em nome da coletividade e em prol do interesse público, (4) tampouco dispõe dos mecanismos necessários ao cumprimento das cláusulas que têm repercussões financeiras, tendo em vista a vinculação da receita às diretrizes previamente fixadas na previsão orçamentária.
Esta linha de raciocínio, que aponta para a impossibilidade do acordo coletivo entre servidores públicos e Administração foi expressamente acolhida pelo Poder Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal. A manifestação foi proferida por ocasião do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra as alíneas "d" e "e" do art. 240 do Regime Jurídico Único dos Servidores Civis da União [56] (Lei 8.112/90), que asseguravam, ao servidor público, "nos termos da Constituição Federal, o direito à livre associação sindical e aos seguintes direitos, entre outros dela decorrentes:... d) de negociação coletiva; e) de ajuizamento, individual e coletivamente, frente à Justiça do Trabalho, nos termos da Constituição Federal."
A referida Ação Direta de Inconstitucionalidade, autuada sob o nº 492-1/DF [57], julgada integralmente procedente pelo Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, declarou que a relação de trabalho entre servidor e Estado é de natureza estatutária, o que justifica a impossibilidade dela ser regulada por acordo ou dissídio coletivo. No julgado, o voto vencedor apresenta o significado da natureza estatutária na lição de Antônio Augusto Junho Anastácia, para quem "o regime jurídico único do servidor público é de direito público, cuja relação funcional sob sua regência é unilateral, consubstanciando o regime em uma norma positiva – o estatuto, que alberga os direitos e obrigações dos servidores."
Por esta razão, que afasta a possibilidade de equiparação entre trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos, o Ministro Carlos Velloso, relator da ação, declarou que é "fácil perceber que a negociação coletiva (alínea d do art. 240) e o direito à ação coletiva (alínea e) é absolutamente inconciliável com o regime estatutário do servidor público.". Por fim, aduziu que
"A negociação coletiva tem por escopo, basicamente, a alteração da remuneração. Ora, a remuneração dos servidores públicos decorre da lei e a sua revisão geral, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data(CF, art. 37, X e XI). Toda a sistemática de vencimentos e vantagens dos servidores públicos assenta-se na lei, estabelecendo a Constituição isonomia salarial entre servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas do mesmo Poder ou entre servidores do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho (CF, art. 39, §1º.)"
Tais razões levaram o STF a declarar a inconstitucionalidade de dispositivo legal que previa a realização de acordos e dissídios coletivos entre servidores públicos e Administração. Neste sentido são, também, as manifestação do Tribunal Superior do Trabalho [58], órgão máximo da Justiça do Trabalho, competente pela apreciação dos dissídios coletivos dos servidores públicos civis da União, nos termos do dispositivo legal cuja constitucionalidade foi alvo da apreciação do STF.
Estas são as razões que sustentam o posicionamento majoritário, segundo o qual as questões pertinentes aos serviços e aos servidores públicos não podem ser reguladas mediante negociação coletiva, tendo em vista a natureza estatutária da relação e a vinculação da atuação da Administração Pública às disposições legais, fatores estes que afastam a possibilidade em foco.
2.2 O julgamento do STF acerca do direito dos servidores públicos à negociação coletiva a partir de uma perspectiva hermenêutica
2.2.1 A pré-compreensão que norteou a análise do STF acerca da possibilidade de negociação coletiva entre servidores e Estado
Em que pese o respeito que merece a decisão prolatada pelo STF sobre o tema, parece-nos que ela está apoiada numa concepção de Estado superada pela Constituição Federal de 1988. A análise dos óbices suscitados no julgado, para o reconhecimento do direito dos servidores públicos à negociação coletiva, aponta para a limitação da questão ao plano dogmático, vez que os princípios e as normas a ela atinentes não foram resignificados a partir das inovações introduzidas no ordenamento jurídico pela Carta Cidadã. Faltou ao STF, quando do julgamento da questão em foco, sair do impessoal e imbuir-se da "angústia do estranhamento", a qual permite que nos distanciemos da instância da facilidade, do senso comum, para assumirmos possibilidades de sentido distintas daquela que nos traz a tradição. [59]
Basicamente, pode-se dizer que o julgamento em foco analisou a questão que lhe foi veiculada a partir das garantias à atuação do Estado, apenas. Apesar de a referida ADIn 492-1/DF tratar de direito social de significativo número de trabalhadores – eis que dirigida contra dispositivo legal que consagrava a possibilidade dos mesmos agirem coletivamente -, o STF, na oportunidade em que a apreciou, o fez a partir de uma visão dogmática do tema, limitando-se a reproduzir antigos valores da doutrina juspublicista, como a subordinação da Administração aos Princípios da Legalidade, da Reserva Legal, e às limitações das regras orçamentárias, omitindo-se, assim, de atualizar sua visão de Estado e resignificar os Princípios que regem a atuação da Administração, de modo a compatibiliza-los à Carta Constitucional de 1988 para, só então, julgar a demanda.
Esta resistência do Poder Judiciário de elaborar interpretações "adequadas e prospectivas" já foi denunciada por Cèmerson Clève, para quem a instituição de um novo ordenamento constitucional de nada adianta se "os operadores jurídicos continuam prisioneiros dos paradigmas construídos sob a égide da Constituição adotada pelo regime autoritário." [60]
O STF acabou por desconsiderar todo o legado histórico e as conquistas do Constituinte de 88 no julgamento em foco, ignorando que "nós assumimos e modificamos, por novos achados de sentido, as perspectivas de significado que nos foram transmitidas com base na tradição e do seu presente em nós." [61]
A postura adotada pela Corte Constitucional se encaixa nas críticas desenvolvidas por Leonel Ohlweiler [62] à doutrina administrativista, que, em regra, parte do pressuposto de que termos indeterminados, usualmente utilizados – como o são as expressões "estatutário", "legalidade", "reserva legal" -, têm um sentido em si mesmos, irretocável, as quais teriam por função solucionar, sozinhos, e satisfatoriamente, todos os conflitos sociais emergentes na seara administrativa. Nas palavras do autor, as
lições sobre legalidade, por exemplo, continuam a ser tratadas como se elas constituíssem uma substância imutável, uma substância sobre a qual o tempo não exerce nenhum poder, formada por uma substância sublime, indestrutível e imutável. [63]
Tal premissa, que norteia a produção intelectual na área, acaba por conformar um arcabouço perfeito para a reprodução de antigos dogmas administrativistas, os quais garantem a manutenção do estabilishment social, pois os princípios administrativos são alçados à categoria de dogmas cuja observância se faz obrigatória para a construção de um ideal de "bom administrador", além de que aprisionam as decisões concernentes ao Poder Público e são "compreendidos como regras despidas de temporalidade e retirados da historicidade" [64].
Relativamente à vinculação do julgamento em foco à dogmática jurídica, não é exagero dizer que o voto prevalecente olvidou que "não há um ser eterno, e transcendente, assim como não há um ser uno, verdadeiro, bom" [65] e desconsiderou, por este modo, a possibilidade de construção do direito a partir de outros prismas que não aqueles fornecidos pela dogmática, estando esta assentada nos referidos "termos indeterminados" [66], cujo conteúdo já está posto e, portanto, não poderiam, naquela concepção, ser revistos, nem ao menos para serem compatibilizados com o programa constitucional então vigente.
Com efeito, o reconhecimento da possibilidade de participação ativa dos servidores nas questões relativas à categoria e, tampouco, o significado social da consagração de tais direitos, foram considerados quando do proferimento do voto do Ministro Relator. Tal aspecto torna-se mais grave se considerarmos que o contexto constitucional no qual foi prolatada a decisão da ADIn 492-1/DF consagrou um modelo de Estado Democrático de Direito, que nas palavras de Lênio Luiz Streck [67]
(...) é um novo modelo que remete a um tipo de Estado em que se pretende precisamente a transformação em profundidade do modo de produção capitalista e a sua substituição progressiva por uma organização social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade onde se possam implantar superiores níveis de reais de igualdades e liberdades.
Não é difícil verificar que o Supremo Tribunal Federal desconsiderou todo o programa constitucional de democratização e diminuição das desigualdades sociais, quando do julgamento em foco. Olvidou-se, assim, de utilizar-se do direito como fonte de transformação social, ignorando, portanto, o papel que este deve assumir no modelo de Estado proposto pela Constituição. [68]
Não obstante o referido julgamento tenha ocorrido há mais de 10 (dez) anos atrás - quando poucos tinham a exata noção da amplitude do texto constitucional recentemente promulgado -, ainda hoje ele produz efeitos, pois instalou no imaginário coletivo, a idéia de que o STF já "revelou" a "verdadeira" intenção do legislador acerca do tema, e esta é incompatível com as demais "verdades" expostas na Constituição. Tanto é assim que as inúmeras decisões que se seguiram ao precedente em análise limitaram-se, via de regra, a negar o direito à negociação coletiva, postulado pelos servidores, adotando, como fundamento, o anterior julgamento do STF [69].
Contudo, o significado da inserção do direito dos servidores à negociação coletiva no Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis não passou totalmente despercebido. Rogério Viola Coelho assevera que
(...) ao inserir no artigo 240, alínea "d", da lei 8.112/90, o direito à negociação coletiva, o legislador ordinário – atento à lição de Gordillo, para quem o Direito deve adaptar-se à evolução da vida social – deu conseqüência ao direito de greve e à livre associação sindical outorgados aos servidores públicos pela nova Carta Política. Por outra parte, ao evoluir para um regime misto, que combina o antigo regime legal com a negociação coletiva – um regime simultaneamente estatutário e negocial – instituiu o único regime compatível com o Estado Democrático de Direito, instaurado pelo artigo 1º da mesma Carta que, inovando as anteriores, inclui a cidadania entre seus fundamentos. [70]
No que pertine à democratização do Estado, é inegável que o reconhecimento da possibilidade dos servidores organizarem-se coletivamente – seja para o exercício da liberdade sindical, seja para a persecução de um fim específico através da greve – denota uma ruptura com a clássica concepção de Estado, em face da relativização da supremacia da Administração perante os particulares que atuam como agentes públicos, revelada justamente pela institucionalização de mecanismos que instrumentalizam a participação ativa do funcionalismo público nos rumos da Administração, permitindo a oxigenação desta através das idéias, informações e pretensões entre ela e o seu corpo funcional.
Francisco Liberal Fernandes leciona que a admissão da liberdade sindical e da greve aos funcionários públicos, cria obstáculos ao enquadramento do emprego público no modelo normativo clássico, vez que neste não há espaço para a auto-tutela de seus agentes (mesmo porque não são admitidos conflitos de interesses). Segundo tal concepção, a proibição da utilização destes instrumentos destinava-se a impedir o surgimento de organismos habilitados a apresentar oposição ao Estado, de forma que, admitidas tais condutas coletivas, estas passariam a reger-se por uma lógica de conflito e defesa dos interesses da categoria, em detrimento da persecução do interesse geral. A orientação do emprego público no sentido da persecução de finalidades coletivas era incompatível com o reconhecimento da autonomia coletiva dos agentes do Estado. [71]
Ao julgar a possibilidade dos servidores públicos participarem ativamente nos processos de decisão que lhes dizem respeito, o Supremo Tribunal Federal fê-lo a partir da clássica pré-compreensão autoritária de Estado, e seguindo o paradigma liberal-individualista de produção do direito, olvidando-se da tarefa de resignificá-la a partir dos anseios e fatos sociais que culminaram na promulgação da Carta de 1988, pela qual consagrou o Estado Democrático de Direito no Brasil. Faltou, assim, à nossa Corte Suprema, compreender a questão com a disposição de nela encontrar "uma resposta aos questionamentos da nossa era" [72].
A forte influência da ausência de tal resignificação se denota dos fundamentos utilizados para declarar a inconstitucionalidade da norma apreciada, os quais giraram em torno das prerrogativas do Estado, apenas, sem revelar qualquer indício da análise do tema a partir da perspectiva dos servidores públicos, dos cidadãos usuários dos serviços executados pelos mesmos ou da complexidade da realidade social brasileira, pontuada pelas mais agudas diferenças, que ensejaram a munição dos mais diversos segmentos sociais com instrumentos voltados à realização do postulado da igualdade material.
A função transformadora do direito não foi, portanto, observada pelo Supremo Tribunal Federal quando da prolação da decisão em foco. Pelo contrário, aquela Corte de Justiça perpetuou, na ocasião, o paradigma liberal-individualista-normativista que, ainda hoje, sustenta a dogmática jurídica vigente, sob a justificativa de que a nova realidade não cabe nos antigos dogmas - ou "termos indeterminados" [73] - do direito administrativo.
A respeito do tema, relevante a contribuição de Lênio Luiz Streck [74], quando leciona:
O direito brasileiro e a dogmática jurídica que o instrumentaliza está assentado em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa desfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem a ser a sua própria funcionalidade. Ou seja, não houve ainda, no plano hermenêutico, a devida filtragem – em face da emergência de um novo modo de produção de Direito representado pelo Estado Democrático de Direito – desse (velho/defasado) Direito, produto de um modo liberal-individualista-normativista de produção de direito, entendendo-se como modo de produção de Direito, para os limites desta abordagem, a política econômica de regulamentação, proteção e legitimação num dado espaço nacional, num momento especifico, (...)
Destarte, o paradigma liberal-individualista-normativista de enxergar o direito, freqüentemente utilizado nos tribunais, revela-se desconexo com o reconhecimento da necessária funcionalização do mesmo – a partir da instauração, ao menos formal, do Estado Democrático de Direito, com a Carta de 1988 – através do qual se impôs a visão do fenômeno jurídico sob um enfoque interdisciplinar.
Partindo-se, então, da necessária premissa de uma nova leitura do direito, a análise de cada caso concreto na sua historicidade, é obrigatória em qualquer circunstância. Há que se entender e interpretar a cultura do povo no seio do qual a norma foi produzida, seus valores e sua psicologia, para avaliar a relevância das soluções apontadas, de modo a adotar aquela que melhor se amolde aos anseios sociais.
Pertinentes, sobre a questão, as palavras de Leonel Ohlweiler:
Fazer a coisa acontecer não reside em aceitar simplesmente aquilo que chega por uma dada tradição, um conjunto de idéias e opiniões revestidas de naturalidade – o habitus dogmaticus no Direito Administrativo. O pensar hermenêutico é aquele dotado de caráter especulativo, contrário à posição do dogmatismo, não se entregando direta e acriticamente ao conjunto de posições dominantes, destacando-se antes pelo seu aspecto de saber refletir, como alude Hans-Georg Gadamer. A linguagem da poiesis, aquela que cria o novo, o inédito, é que possibilitará o autêntico acontecer dos princípios constitucionais da Administração Pública, uma linguagem assumindo-se como instauradora de mundo, e não fundada no labor de reprodução de um algo previamente fixado. [75]
Trata-se, assim, de (re)pensar e (re)discutir o direito administrativo a partir das diretrizes democráticas e materialmente igualitárias, inerentes ao Estado Democrático de Direito inaugurado no Brasil pela Constituição Federal, a bem de que não se continue a reproduzir decisões como a proferida na ADIn 492-1/DF, baseada que foi em dois vetores principais, a saber: de um lado, uma concepção anacrônica de Estado; de outro, a questão analisada com um olhar eminentemente dogmático, que tinha, de antemão, respostas prontas para a questão nas já tradicionais expressões da doutrina administrativista – como "reserva legal", "legalidade", etc... – as quais guardam, segundo este olhar, um sentido em si mesmas. Isto se diz porque
(...) não há como construir-se uma concepção principal de regime administrativo sem uma profunda análise do próprio existir humano, daquilo que vem sendo experienciado como compreender jurídico. As grandes dificuldades de superar os postulados lógico-formais que engendraram a idéia de Administração Pública é fruto, também, da ausência de problematização do conjunto de pré-juízos que tem alimentado as construções teóricas preponderantes sobre o tema. [76]
A postura em questão decorre do fato de que o Direito Administrativo, na esteira da formação do pensamento moderno, nasceu e se desenvolveu de categorias simbólicas, produzidas pelo racionalismo cientificista, que determinou a estruturação do conhecimento a partir de "categorias matemáticas", determinantes na compreensão do sentido das práticas administrativas, as quais possibilitam o acesso à verdade. Desse modo, no que tange aos princípios que norteiam a atividade da Administração Pública "busca-se, cada vez mais, até mesmo como modo-de-ser necessário para ultrapassar a irracionalidade absolutista, um grau de certeza e precisão, além da forma de apreender o real". [77]
A superação do atual modo de produção do direito se impõe pelas razões críticas a seguir sintetizadas por Leonel Ohlweier [78]:
O Direito Administrativo, em especial a tarefa doutrinária de criação dos critérios para o controle dos termos indeterminados, passa pela explicitação dos conceitos, trabalho de sistematização, elaborando uma rede de circulação de sentido através de "pacotes significantes" A conseqüência é que as decisões jurisprudenciais não são trabalhadas como possibilidades de sentidos. O processo de sistematização implica transforma-las em falas absolutas e desveladoras do único sentido possível. A hermenêutica dos termos indeterminados, desta maneira, deixa de possuir o necessário caráter inovador e interrogativo das práticas jurídicas, constituindo-se em uma mera "instância do já dito", buscando um "sentido-primeiro" contido nos textos legais.
Relevante ressaltar que o julgado anteriormente analisado não é caso singular. Não se ignora que os princípios regentes da atuação da Administração são, também, uma garantia para o indivíduo e para a coletividade. Não é raro, porém, que o STF utilize os princípios da legalidade, da reserva legal e aqueles que orientam o gasto de valores públicos como escudo para atender a reivindicações individuais e mesmo coletivas. Ademais, não raro, tais "óbices" são facilmente superados quando o contexto fático o impõe ao administrador ou mesmo quando, para este, tal superação é interessante, seja para atender metas de governo, seja para atender interesses particulares.
2.2.2 Possibilidades dos "termos indeterminados"
Sobre do alcance do conteúdo dos princípios que regem a atuação da Administração, Remedios Roqueta Buj [79], ao analisar situação muito semelhante ocorrida na Espanha (a qual se terá oportunidade de tratar adiante), assevera que o Princípio da Reserva Legal não é incompatível com a negociação coletiva, vez que o mesmo, ao contrário do que comumente se afirma, é relativo, e não absoluto, visto que a lei não precisa regular todos os aspectos da relação de trabalho, sendo perfeitamente possível a remissão a outros expedientes de organização interna da Administração Pública, como é o caso de Ordens de Serviço, Portarias, dentre outros.
Com efeito, no Brasil tais expedientes são freqüentemente utilizados para ordenar questões concernentes a horário de trabalho, divisão e forma de execução de determinadas tarefas, etc... O equívoco, aqui, estaria em reduzir a complexidade da relação de trabalho ao aspecto meramente remuneratório, conforme o fez o Relator da ADIn 492-1/DF, para quem
A negociação coletiva tem por escopo, basicamente, a alteração da remuneração. Ora, a remuneração dos servidores públicos decorre da lei e a sua revisão geral, sem distinção de índices entre servidores públicos civis e militares, far-se-á sempre na mesma data (CF, art. 37, X e XI). Toda a sistemática de vencimentos e vantagens dos servidores públicos assenta-se na lei, estabelecendo a Constituição isonomia salarial entre servidores da administração direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhadas do mesmo Poder ou entre servidores do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho (CF, art. 39, §1º) [80].
De outro lado, mesmo tratando a negociação coletiva do aspecto remuneratório da relação de trabalho – o qual está, efetivamente, submetido à reserva legal -, ainda resta espaço para compatibilização da demanda social com o ordenamento jurídico, conforme já ocorre no plano fático, o que será oportunamente analisado.
Remédios Buj também desconstitui a tese de incompatibilidade da negociação coletiva em face da subordinação da atuação administrativa ao Princípio da Legalidade. No seu magistério, tal princípio é justamente um dos fundamentos da negociação coletiva para os servidores públicos, pois o mesmo impõe que a Administração observe a totalidade do ordenamento constitucional, o qual garante aos servidores o exercício da liberdade sindical. Da mesma forma, relativamente às determinações legais atinentes à persecução do interesse público, pondera que o interesse público não está desvinculado dos interesses individuais e coletivos, eis que está a serviço dos cidadãos, e não o inverso, de forma que a criação de vias negociais com o corpo de servidores não atenta contra o interesse público. Pelo contrário, atende ao interesse comum de democratização do Estado [81]. No seu magistério
Es decir, que aquella capacidad convencional se halla justificada desde la perspectiva de posibilitar la efetividad Del principio de participación – en este caso referidaa la negociación colectiva funcionarial -, pues la definición de los intereses generales se produce por la incorporación a los mismos de los intereses sectoriales y, por tanto, aunque la Administración "sirve con objetividad" dichos intereses generales, su determinación es el resultado de un proceso de fluidez y constante puesta en práctica de los mecanismos participativos. [82]
Em suma, no entender da autora, os princípios constitucionais atinentes à questão podem ser todos eles compatibilizados com a edição de um texto legal que regulamente o exercício da liberdade sindical dos servidores, através da negociação coletiva. Desta forma, restará observada a tradicional exigência de estrita observância legal nas questões relativas à Administração sem, em nome disto, sacrificar outro princípio constitucional, qual seja, a garantia da liberdade sindical aos servidores. Nada disto poderá ser alcançado, contudo, enquanto a Administração não se despojar de sua tradicional posição de supremacia.