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A possibilidade da negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado

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06/02/2009 às 00:00
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A verificação da possibilidade de superação dos óbices persistentemente apontados pela doutrina e jurisprudência, como impeditivos da negociação coletiva entre servidores e Administração, pode ser efetuada a partir da análise da evolução da mesma questão no ordenamento jurídico espanhol.

3.1. Uma abordagem crítica a partir do paradigma espanhol

Assim como o Brasil, a Espanha demorou a reconhecer o direito desta categoria de trabalhadores à sindicalização. Até a promulgação da Constituição de 1978, os servidores públicos espanhóis estavam em situação expressamente diferenciada dos trabalhadores em geral, para os quais o direito à sindicalização já era, há muito, devidamente reconhecido.

O marco para institucionalização da composição coletiva de interesses na Espanha foi a promulgação da Constituição de 1978, que, em seu artigo 28, reconheceu que "todos tienen derecho a sindicarse libremente. La ley poderá limitar o exceptuar el ejercicio de este derecho a las Fuerzas o Institutos armados a los demás Cuerpos sometidos a disciplina militar y regulará las peculiaridades de su ejercicio para los funcionarios públicos".

Além de reconhecer o direito dos funcionários públicos à sindicalização, a Constituição Española foi além, traçando diretrizes para o alcance da liberdade sindical, que, no texto constitucional determina "el derecho a fundar sindicatos y a afiliarse al de su elección, así como el derecho de los sindicatos a formar confederaciones y a fundar organizaciones sindicales internacionales o afiliarese a las mismas", e resguardou a liberdade individual do trabalhador, estabelecendo que "nadie podrá ser obligado a afiliarse a un sindicato."

O expresso reconhecimento do direito do funcionalismo público espanhol à sindicalização, na Constituição Espanhola de 1978, apontava para a possibilidade de utilização do acordo coletivo como instrumento para a composição coletiva de interesses anunciada pela sindicalização. Não obstante, a perspectiva de construção de um panorama absolutamente novo ficou prejudicada pelo conteúdo do artigo 103.3 da Constituição, que estabelece que "la Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los principios de eficacia, jerarquía, descentralización, desconcentración y coordinación, con sometimiento pleno a la ley al derecho", bem como que "La ley regulará el estatuto de los funcionarios públicos, el acceso a la función pública de acuerdo con los princípios de mérito y capacidad, las peculiaridades del ejercicio de su derecho a sindicación, el sistema de incompatibilidades y las garantias para la imparcialidad en el ejercicio de sus funciones". A fixação de reserva legal em matéria relativa ao funcionalismo público, assim como a sujeição da atuação da Administração Pública Espanhola ao Princípio da Legalidade acabaram por determinar um impasse para a possibilidade de negociação coletiva entre servidores e Administração, numa conjuntura semelhante à brasileira.

A partir deste contexto, surgiram na Espanha várias interpretações distintas sobre a possibilidade em comento, dentre as quais destacam-se: (1) aquela segundo a qual o texto constitucional Espanhol não reconhece e nem, tampouco, nega a possibilidade dos servidores público negociarem coletivamente com a Administração, ele apenas remete a questão à competência de lei regulamentar; (2) uma segunda, decorrente da interpretação sistemática da Constituição, segundo a qual o direito à negociação coletiva dos servidores é decorrência lógica da institucionalização da liberdade sindical, consagrada através do artigo 28.1 da Constituição e, finalmente, (3) a mais audaciosa, que entende ser o artigo 37.1, que consagra a negociação coletiva entre os trabalhadores em geral e os empresários, extensível aos servidores públicos.

Provocado a manifestar-se a respeito, o Tribunal Constitucional Espanhol inicialmente afastou a possibilidade do reconhecimento da negociação coletiva entre sindicatos de servidores públicos e Administração porque a negociação coletiva não estava, na Constituição Espanhola, expressamente contemplada pelo conceito de "liberdade sindical". A mais representativa decisão neste sentido é a de número STCO 57/1982. Segundo o entendimento ali consubstanciado, a configuração da negociação coletiva como instrumento inerente à liberdade sindical estava condicionada ao advento de uma lei que tratasse de assim dispor, conforme determinou o texto constitucional quando submeteu as "peculiaridades" do funcionalismo à regulamentação por lei específica.

No entanto, em que pese este posicionamento, o Tribunal Constitucional não se escusou da função de, em seus julgados, traçar alguns critérios definidores do conteúdo e do alcance da expressão "liberdade sindical". Ao pronunciar-se sobre o conteúdo da liberdade sindical, esta sim, expressamente reconhecida aos servidores públicos, o Tribunal declarou que "el derecho constitucional de libertad sindical comprende no solo el derecho de los indivíduos a fundar sindicatos ya a afiliarse al de sú elección, sino asimismo el derecho a que los sindicatos fundados – y aquellos a los que la afiliación se haya hecho – realicen las funciones que de ellos es dable esperar, de acuerdo com él carácter democrático Del Estado y com las coordenadas que a esta institución hay que reconocer, a las que se puede sin dificultad denominar "contenido esencial" de tal derecho". [83]

Em que pese a limitação destas decisões, a partir das discussões e debates jurídicos produzidos naquele contexto, foi editada a lei orgânica 11, de 02 de agosto de 1985, que definiu e unificou o conteúdo da expressão "liberdade sindical", tanto para os trabalhadores da iniciativa privada, quanto para o funcionalismo público. Conforme a exposição de motivos da referida lei, esta "pretende unificar sistemáticamente los precedentes y posibilitarán desarrollo progresivo y progresista del contenido esencial del derecho de libre indicación reconocido en la constitución, dando un tratamiento unificado en un texto legal unico que incluya el ejercicio del derecho de indicación de los funcionarios públicos a que se refiere el artículo 103, 3, de la constitución y sin otros limites que los expresamente introducidos en ella." Adiante, o texto legal reconhece, em seu art. 2º, que "el ejercicio de la actividad sindical en la empresa o fuera de ella, que comprenderá en todo caso, el derecho a la negociación colectiva, al ejercicio del derecho de huelga, al plantamiento de conflictos individuales y colectivos…"

A partir do reconhecimento de que a liberdade sindical compreende a negociação coletiva, inclusive para o funcionalismo público, foi editada a lei 9/1987, cujo capítulo III, que dispõe acerca de "la negociación colectiva y la participación em la determinación de las condiciones de trabajo" foi posteriormente alterado pela lei 7/1990. Em suma, os referidos textos legais institucionalizaram e regulamentaram a participação dos servidores públicos nas suas condições de trabalho, mediante a negociação coletiva. De acordo com a legislação espanhola, poderão ser objeto de negociação coletiva os seguintes temas:

1.Reajustes e aumentos remuneratórios do funcionalismo público;

2.Processo de elaboração e oferta de empregos públicos;

3.A classificação dos postos de trabalho;

4.Determinação dos programas de promoção e qualificação de pessoal;

5.Sistemas de ingresso e ascensão na carreira pública;

6.As propostas de direito sindical e de participação dos funcionários;

7.Medidas sobre a saúde do trabalhador;

8.Todas as matérias afetas ao acesso à carreira pública, retribuição e seguridade social, e as condições gerais de trabalho dos servidores, cuja regulação deva ser objeto de lei;

9.As matérias de índole econômica, de prestação de serviços, de natureza sindical, assistencial, e todas aquelas pertinentes à determinação das condições de trabalho do funcionalismo ou mesmo à relação de trabalho que estes estabelecem com a Administração.

De outro lado, as decisões administrativas de caráter organizacional, as questões referentes ao exercício de direitos dos cidadãos perante os funcionários públicos, assim como aquelas referentes ao procedimento de formação dos atos administrativos estão excluídos da obrigatoriedade de negociação. No que refere aos procedimentos da negociação coletiva entre o funcionalismo público e a Administração espanhola, importante ressaltar que, estes, podem gerar pactos ou acordos coletivos. Os acordos versam sobre matérias de competência do Conselho dos Ministros, Conselho do Governo de Comunidades Autônomas ou Pleno das Entidades Locais. A sua validade e eficácia estão condicionadas à expressa e formal aprovação do órgão da Administração no âmbito respectivo. A aceitação dos termos do acordo, pelo órgão do governo correspondente, expressada através da publicação do seu conteúdo no Boletim Oficial do Estado, é suficiente para garantir a sua eficácia jurídica. Não se ignora o fato de que, ao governo, resta a "última palavra", no que toca à validade e eficácia jurídica do acordo. Não obstante, depois de aprovado formalmente, este passa à categoria de norma jurídica elaborada na via negocial.

O pacto, de outro lado, vincula as partes sem a necessidade de aprovação pelo governo. Esta dispensa é viabilizada pelas matérias sobre as quais versam os pactos, pois estes são celebrados apenas em relação às matérias correspondentes ao âmbito competencial de um órgão administrativo específico, que dispõe de certa autonomia funcional, gerencial e territorial. As questões passíveis de determinação por pacto são, sem dúvida, mais específicas e de menor complexidade, se comparadas àquelas que são objeto de acordo.

A partir destes dados, não é difícil constatar que algumas matérias passíveis de determinação pela via da negociação coletiva podem esbarrar nos impeditivos anteriormente suscitados pelos doutrinadores como óbices à negociação coletiva entre sindicatos de servidores e a Administração Pública espanhola, seja em razão das repercussões financeiras, seja em razão da reserva legal, ou mesmo da sujeição da Administração ao Princípio da Legalidade. Entretanto, estes argumentos acabaram por ser afastados de plano, em razão da sistemática ditada pelos textos legais para a implementação dos acordos coletivos. A este respeito, o Tribunal Constitucional vem declarando que o Estado está obrigado ao cumprimento dos acordos coletivos, não pela realização ou pelo conteúdo do acordo em si, mas sim em razão da necessária aplicação das Leis 11/1985 e 9/1987 que, respectivamente, (1) reconhece expressamente que a negociação coletiva integra o conteúdo da expressão "liberdade sindical", e (2) regulamenta a negociação coletiva entre sindicatos de servidores e Administração Pública, bem como que as determinações dos Acordos e Pactos vinculam as partes. Desta forma, em relação à subordinação da atuação estatal ao Princípio da Legalidade, esta exigência acaba por ser cumprida pela via indireta suscitada pelo Tribunal Constitucional.

Em relação à limitação imposta pela reserva legal, esta acabou por ser superada porque, as matérias de maior complexidade, geralmente aquelas reservadas à lei específica, são objeto de Acordos, cuja validade e eficácia estão sujeitas à aprovação final do órgão destinatário das questões acordadas, em que pese a participação dos sindicatos de trabalhadores nas formulações. Por fim, no que toca à questão orçamentária, esta também acabou por ser superada porque o Governo da Espanha não apresenta resistências em relação ao cumprimento dos Pactos e Acordos que, reconhecidamente, têm eficácia jurídica. Em razão disto, o Governo apresenta a proposta de lei orçamentária já com a reserva de verbas destinadas ao cumprimento das determinações da negociação coletiva.

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3.2 Dos fundamentos que sustentam a possibilidade da realização de acordo coletivo entre servidores e o Poder Público a partir de uma leitura hermenêutica da Constituição Federal de 1988

Ao reconhecer o direito de livre associação sindical e o direito de greve aos servidores públicos, a carta de 1988 institucionalizou a garantia de que as condições de trabalho não são ditadas unilateralmente pelo empregador, mas que, pelo contrário, também serão fruto da composição de interesses dos dois pólos que compõe a relação de trabalho, em razão do reconhecimento da existência de conflitos em seu âmago. A este respeito, aliás, a doutrina reconhece que

No Brasil, os governantes, antes mesmo da Carta Política e já na última fase da ditadura militar, vêm reiteradamente reconhecendo a legitimidade dos conflitos coletivos dos servidores com a Administração e sentando à mesa de negociações. É bem verdade que o fazem informalmente, sem renunciar em definitivo à faculdade de acionar o direito autoritário professado pelos juristas tradicionais e aplicado pelos tribunais conservadores, direito que preservam como uma reserva técnica para o exercício da repressão quando o confronto se agudiza ou se prolonga. [84]

Contudo, mesmo diante de tal quadro, o STF negou a possibilidade dos servidores públicos participarem das determinações das suas condições de trabalho que a sua relação de trabalho quando do julgamento da ADIn 492-1/DF, nos termos expostos no capítulo segundo.

Ao analisar-se a postura adotada pelo Supremo Tribunal Federal, pode-se dizer que foi na manifestação deste Tribunal a respeito da matéria que se estabeleceu a atual diferença no tratamento deferido à questão, quando se compara a situação brasileira à espanhola.

Conforme descrito anteriormente, o cenário jurídico espanhol [85] era muito semelhante ao cenário brasileiro, no que tange às disposições constitucionais objetivas acerca da matéria. Tanto em um quanto em outro país, a Constituição vigente silencia sobre a negociação coletiva entre servidores e administração. No entanto, o divisor de águas veio justamente quando os Tribunais responsáveis pela guarda do texto constitucional foram provocados a manifestar-se sobre a questão. Ao apreciá-la, o Tribunal Constitucional Espanhol declarou, expressamente, que a negociação coletiva dos servidores públicos não poderia ser tratada mediante a aplicação análoga dos dispositivos que regulamentam a questão no setor privado.

Contudo, diferentemente do que fez o STF, o Tribunal Constitucional espanhol, no exercício da sua função de interpretar e resguardar a vigência do ordenamento constitucional, não declarou a ilegalidade dos processos negociais entre os pólos da relação de trabalho estatutária, não obstante tenha o mesmo, num primeiro momento, afastado tal possibilidade.

Nesta linha, o Tribunal Constitucional [86] foi, aos poucos, consolidando a sua interpretação acerca do conteúdo da expressão "liberdade sindical", reconhecida pela Constituição Espanhola ao funcionalismo público, determinando que ela é ampla, e deve abranger todas as formas de composição coletiva de interesses. A partir disto, a comunidade jurídica reuniu esforços no sentido de legalizar os julgados do Tribunal Constitucional Espanhol e do movimento surgiu a Lei 11/85 [87], que, ao definir o alcance da expressão "liberdade sindical", incluiu a negociação coletiva dentre as atividades sindicais por ela abrangida. A partir deste reconhecimento, foi editada a Lei 9/1987 [88] (com a redação que lhe conferiu a lei 7/1990 [89]) que regulamentou a negociação coletiva no setor público. Além disso, nas ocasiões em que foi compelido a apreciar a validade e eficácia dos pactos e acordos firmados no setor público frente às imposições do Princípio da Legalidade, invocado como limitador da exigibilidade do que fora coletivamente convencionado, o Tribunal Constitucional Espanhol determinou que tal princípio era, justamente, um dos imperativos ao cumprimento do conteúdo das convenções coletivas, em razão dos textos legais que alçaram a negociação coletiva à condição de direito dos servidores públicos.

O Supremo Tribunal Federal, por outro lado, ao apreciar a questão, o fez de forma muito mais restrita e, pode-se dizer, até mesmo retrógrada, limitando-se a apreciá-la sob o enfoque dos impeditivos suscitados, sem considerar o significado do reconhecimento, na Constituição de 1988, do direito de sindicalização e greve para os servidores públicos.

Note-se que, quando da provocação do STF à apreciação da questão, esta se encontrava muito mais evoluída no Brasil do que se encontrava na Espanha no mesmo momento histórico, pois o ordenamento jurídico brasileiro já contava com uma previsão legal para a realização da negociação coletiva nos sindicatos dos servidores públicos, previsão esta, aliás, contida em texto legal [90] vigente a partir de dezembro de 1990, o que significa reconhecer que ele foi elaborado na esteira da Carta de 1988.

Diante desta realidade, o Supremo Tribunal Federal poderia, assim como fez o Tribunal Constitucional Espanhol, interpretar o conteúdo constitucional atinente à matéria a partir de uma perspectiva hermenêutica, reconhecendo a legalidade da negociação coletiva no setor público, vez que o art. 240 da lei 8.112/90 estava em conformidade com o modo-de-ser da Constituição, a qual fornece um conjunto de indícios formais que conduz a tal conclusão, dentre os quais pode-se citar os seus artigos 8º, inciso VI, 9º, 37, incisos VI e VII (direito de sindicalização e greve), a participação dos servidores públicos nas determinações das suas condições de trabalho. Tal reconhecimento poderia ter ocorrido mediante interpretação conforme, por exemplo.

Quanto aos impeditivos representados pelo Princípio da Legalidade, o Princípio da Reserva Legal, bem como pelas imposições e limitadores das leis orçamentárias, estes de fato haviam de ser considerados quando da apreciação da constitucionalidade do artigo 240 da Lei 8.112/90. No entanto, não poderiam estes ter ensejado o esvaziamento do conteúdo da liberdade sindical reconhecida aos servidores. Pelo contrário, tais impeditivos poderiam ter ensejado a remessa da regulamentação da questão à lei específica que tratasse de regular a negociação coletiva dos servidores a partir destas limitações. Poderiam, de outro lado, ter limitado as hipóteses de negociação às questões cujo conteúdo pudesse ser definido sem, em contrapartida, esbarrar nos obstáculos suscitados.

Isto se diz porque a moderna doutrina constitucional ensina que o ordenamento constitucional deve ser interpretado de forma a compatibilizar ao máximo os princípios que a Carta Maior veicula, de forma a evitar que a aplicação de algum princípio anule por completo a vigência de outro princípio constitucional.

No caso, a tese segundo a qual os Princípios da Reserva Legal e da Legalidade impedem a negociação coletiva, em face da impossibilidade de concessão de eventuais acréscimos remuneratórios aos servidores, é de se ressaltar que tais argumentos não subsistem a uma análise mais atenta pois, em primeiro lugar, nem todos os processos de negociação coletiva envolvem postulações de acréscimos remuneratórios, e, em segundo lugar, tais questões devem ser apreciadas a partir da tão em voga ponderação principiológica, de forma a compatibilizar com tais princípios a liberdade sindical dos servidores e a democratização do Estado, questões também elevadas à seara constitucional.

Aliás, no que tange ao espaço deferido ao Princípio da Reserva Legal no ordenamento jurídico, interessante a lição de Rogério Viola Coelho, eis que o mesmo denuncia que esta tendência de deslocamento do poder normativo do Poder Legislativo para o Poder Executivo (bem representada pelo princípio em questão) no que concerne às questões vinculadas aos servidores públicos, é prova do resquício do autoritarismo estatal.

Conforme o autor

A tendência de deslocamento do poder normativo nesta matéria do Parlamento para o Chefe do Poder Executivo se expressa ao nível das Constituições, com particular intensidade nos países periféricos. As leis relativas a organização dos serviços públicos passam a ser de iniciativa exclusiva do Chefe do Poder executivo, o mesmo ocorrendo com aquelas que regulam as relações de trabalho com o Estado. Por outro lado, o Parlamento é cerceado na apresentação de emendas aos projetos oriundos do Executivo nestas matérias. Por último, a edição de medidas provisórias ganha uma dimensão inusitada. [91]

3.2.1 Negociação coletiva entre servidores públicos regidos pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e a Administração

A edição da lei 9.962/2000 - na esteira da Reforma Administrativa implementada pela Emenda Constitucional nº 19 - que institucionalizou a possibilidade de admissão de pessoal na forma de emprego público na esfera da União, mediante a contratação de pessoal pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, exige uma breve análise acerca da possibilidade de negociação coletiva entre tal espécie de servidores e a Administração Pública.

A este respeito, o Poder Judiciário já declarou, em diversas ocasiões, que quando a Administração contrata pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, a mesma despe-se das prerrogativas das quais goza como empregadora na qualidade de ente público. Contudo, conforme assevera Orlando Teixeira da Costa [92], quando a relação entre Estado e funcionário é regida por um estatuto, este fica compelido a seguir as regras, que são unilateralmente impostas pela Administração Pública. Sendo, de outro lado, de regime contratual tal relação, as partes podem, teoricamente, estipular livremente convenções a ela atinentes, contanto que as mesmas não contrariem as disposições de proteção ao trabalho. Contudo, apesar da existência de disposição legal neste sentido, o fato é que o contrato celebrado com a Administração representa "mero contrato de adesão", não obstante sujeite-se o Estado-empregador, nesta condição, à tutela do trabalho como qualquer empresário.

A considerar este ponto de vista, nesta circunstância, o Poder Público estaria equiparado a um empregador comum e, deste modo, estaria obrigada à negociação coletiva.

Contudo, parece-nos que tal raciocínio não se presta a, por si só, desbancar os impeditivos suscitados pela doutrina e pela jurisprudência, eis que os mesmo foram, basicamente, extraídos da natureza jurídica da Administração e aos princípios que regem sua atuação, de modo que os mesmos remanescem mesmo quando a Administração contrata pelo regime celetista [93], eis que, nesta condição, ela não se desvincula da subordinação ao Princípio da Legalidade, da Reserva Legal, dos limites orçamentários, dentre outros [94].

Neste sentido, Remédios Roqueta Buj [95], ao analisar a questão do direito dos servidores à negociação coletiva, ressalta que

la doctrina há advertido que la principal dificuldad para el reconocimiento de la negociación colectiva em el ámbito funcionarial no reside tanto em los funcionarios públicos cuanto em la própria Administración. Los factores que han obstaculizado la identificación del derecho de la negociación colectiva de los funcionarios con anterioridad a la Constituición y que, en buena medida, aún lo condicionan, derivan de su insersión en una estructura organizativa, que cuenta con un empleador – la Administración Pública – sometido a unos principios que impregnan la relación de empleo públicos con sus funcionarios.

Diferente, contudo, é o entendimento esposado por Luiz de Pinho Pedreira da Silva, para quem, tratando-se de empregados público, deve prevalecer a natureza do vínculo laboral, o qual atrai as disposições constitucionais que lhe são atinentes, e que reconhecem aos trabalhadores regidos pela CLT o direito à negociação coletiva, inscrito no artigo 7º incisos III, XII e XXVI [96].

3.2.2 Objetos de negociação coletiva cujo conteúdo não esbarra nos impeditivos argüidos

Conforme brevemente referido nas linhas acima, a declaração de inconstitucionalidade da previsão legal para a realização de negociação coletiva no setor público acabou por inviabilizar, também, o exercício deste direito em esferas que não implicavam nos óbices suscitados pelo Supremo Tribunal Federal. É o caso, por exemplo, das questões relativas às condições de trabalho que não têm natureza econômica e, portanto, repercussão financeira que encontrem obstáculos na lei de diretrizes orçamentárias, no Princípio da Legalidade ou mesmo na Lei de Responsabilidade Fiscal, tão em voga nos dias atuais.

Pelo contrário, a negociação coletiva pode tratar sobre temas que se restrinjam ao caráter social da relação de trabalho [97], como é o caso, por exemplo, das especificações das condições do trabalho concernentes à distribuição da carga horária [98], qualificação de pessoal e definição de planos de ingresso e ascensão na carreira, dentre outros [99], assim como daquelas cuja determinação ocorre mediante atos normativos infralegais (portarias, provimentos, ordens de serviço, regulamentos) muito utilizados no serviço público.

Em livro publicado com o intuito de orientar a comunidade do trabalho acerca da relevância dos processos de negociação coletiva, a Organização Mundial do Trabalho refere que, para melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores, esse meio de composição coletiva de interesses pode versar sobre inúmeros temas, a bem de contribuir na qualidade da saúde física e mental dos trabalhadores.

Há, ainda, o exemplo de países como Estados Unidos, Japão e Peru, nos quais a negociação coletiva é reconhecida aos servidores públicos, sendo vedados, contudo, processos de composição coletiva de interesses que envolvam salários [100].

Aliás, mesmo considerando as razões elencadas no item anterior, não há obstáculo jurídico que impeça que um sindicato de servidores negocie com a Administração o envio de um projeto de lei ao competente órgão legislativo [101], ou mesmo a reserva de verba orçamentária no exercício posterior para viabilizar a concessão de reajuste.

Neste caso, não se ignora, seria estabelecida uma espécie de negociação coletiva tripartite, pois o Poder Legislativo fatalmente comporia a relação através da apreciação do projeto de lei proposto. A vantagem desta hipótese seria o pressuposto de atendimento do interesse público nas determinações das negociações coletivas, vez que o legislador, nesta condição, atua em nome da coletividade que ele representa.

3.2.3. Imposições da dinâmica social: a composição coletiva de interesses no quotidiano da relação entre funcionalismo e Administração Pública

A estes apontamentos, agregue-se, ainda, o fato de que, não obstante os argumentos jurídicos que negam não só a possibilidade, como também a existência da negociação coletiva no setor público, não se pode ignorar que a dinâmica social vem impondo tal prática. [102] A concretização desta possibilidade vem se verificando constantemente. Exemplo recente verificou-se quando os servidores das Instituições Federais de Ensino conquistaram uma série de reivindicações através de processo de negociação informal.

No ano de 2001, depois de um longo período de greve, durante o qual a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (FASUBRA) permaneceram negociando, informalmente, o atendimento das reivindicações do movimento, e frente à imperiosa necessidade de garantir a continuidade dos serviços públicos prestados pela categoria, o Governo Federal cedeu e concordou em deferir a boa parte das pretensões da categoria, as quais tinham caráter eminentemente financeiro.

Mesmo inserido num contexto jurídico que nega a possibilidade de composição coletiva de interesses no serviço público, o governo federal, após longos períodos de negociação, acabou por encontrar uma solução, contemporizando as expectativas dos servidores e os limitadores legais à sua atuação: atendeu à parte das reivindicações dos servidores mediante o comprometimento, perante estes – devidamente formalizado - de um projeto de lei de iniciativa do agente competente (no caso, o Presidente da República) ao Congresso Nacional, contendo todas as cláusulas acordadas na mesa de negociações composta no período da greve. Deste projeto, surgiu a Lei nº 10.302, de 31 de outubro de 2001, que dispôs acerca dos mais variados temas, como vencimentos (art. 1º), carreira (art. 2º) e progressão funcional (art. 4º). Este processo representa a prática de uma solução já sugerida por José Maria Alencar [103] para contornar as dificuldades decorrentes da iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo para propor leis [104] que disponham acerca da "criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração".

Este fato, corriqueiro, aliás - vez que esta é fórmula usualmente utilizada para pôr termo aos movimentos grevistas exitosos - comprova que a negociação coletiva no setor público é possível e que os impeditivos legais são artificiais e destoam da realidade. De acordo com Rogério Viola Coelho, os impeditivos sustentados pela doutrina acabam revelando-se impotentes diante da realidade, a qual se impõe às normas e acaba por resolver as demandas sociais "à margem e até mesmo contra o direito professado pelos juristas". [105]

É claro que, nestas circunstâncias, o Administrador se reserva a possibilidade de descumprir o que foi legitimamente acordado, considerando-se que, caso a Administração não cumpra a sua parte, os sindicatos não contarão com a tutela judicial, vez que o Poder Judiciário brasileiro já declarou que a negociação coletiva entre servidores públicos e Administração é inconstitucional.

Outro inconveniente desta praxe é o fato de que, ante a ausência de institucionalização da negociação coletiva no serviço público, a Administração Pública, ao atender as exigências de determinada categoria, o faz num contexto de inexistência de um programa ou planejamento relativo ao futuro do funcionalismo, e na urgência decorrente do necessário restabelecimento dos serviços públicos suspensos em razão dos movimentos grevistas que impõem o processo de negociação. Ante a inexistência de um programa que trate de considerar as reivindicações totalidade dos servidores - cujos interesses são usualmente defendidos por sindicatos distintos -, compatibilizando-as, a Administração trata dos interesses destes de forma compartimentalizada, o que importa no fato de que, não raro, atendidas as exigências da base de um determinado sindicato, as outras ficam a descoberto, pois não foram consideradas nos processos de negociação das categorias que alcançaram a fase negocial anteriormente.

É de registrar-se, contudo, que, ao contrário do voluntarismo e espontaneidade sob os quais são operadas as negociações coletivas na esfera federal, a questão tem merecido tratamento institucional em alguns estados e municípios. A este respeito pode-se analisar o recente exemplo do processo de negociação coletiva que norteou a instituição do Sistema de Assistência à Saúde para os Servidores Estaduais de Pernambuco (SASSEPE) [106], nos anos de 2000 e 2001. O objeto da negociação é a reforma da assistência à saúde e previdência dos servidores públicos daquele Estado. Conforme a descrição realizada por Eliane Cruz [107] tais negociações, que posteriormente ficaram restritas à questão da assistência à saúde dos servidores, foram realizadas pelos sindicatos de servidores, de um lado, e pela Secretaria Estadual da Administração, de outro. A questão da legitimidade das mesas de negociação foi contemplada através da participação, além de representantes do movimento sindical e de representantes do estado de Pernambuco, de representantes do Ministério Público, da Assembléia Legislativa e do Tribunal de Contas do Estado.

Exitosa a negociação, as deliberações naquela oportunidade acordadas foram encaminhadas à Assembléia Legislativa na forma de projeto de lei. Aprovado, os termos do acordo, institucionalizados na forma de lei estadual, prevalecem e são aplicados até os dias atuais.

Importante ressaltar, outrossim, que as dificuldades oriundas das limitações financeiras foram operadas a partir de dados e estudos oficiais, realizados pela Fundação Getúlio Vargas, que cuidaram de dimensionar os gastos necessários. A partir do domínio da realidade financeira, bem como das implicações orçamentárias do objeto do acordo, as partes chegaram a um consenso que não implicou no déficit dos cofres públicos.

Além da experiência narrada, também serve de exemplo a Mesa Estadual de Negociação do SUS [108], no Estado do Rio de Janeiro, instituída e instalada em 1999, que tem por objeto a instituição de uma política de recursos humanos para a Secretaria Estadual de Saúde daquele Estado, a fim de atender às crescentes demandas no setor. O funcionamento da Mesa de Negociações está pautado num regimento interno constituído no decurso do processo de negociação e devidamente registrado em cartório. Dentre as conquistas do processo de negociação destacam-se (1) a contratação de pessoal mediante a homologação de concurso anteriormente realizado e a abertura de novos concursos, (2) manutenção do emprego de servidores que já trabalhavam nos hospitais da rede pública estadual, (3) criação de gratificações que cuidaram melhorar os salários dos servidores, (4) elaboração de plano de carreira, cargos e salários para os servidores da área, (5) instituição de Mesa de Negociação Coletiva para os servidores da rede pública Municipal, (6) o afastamento da prestação de serviços através da terceirização.

No que tange à questão orçamentária, a experiência do Estado do Rio de Janeiro pouco tem de novidade. A Secretaria Estadual da Saúde é apenas informada do limite do orçamento de que dispõe. Dentro desta realidade, a verba orçamentária é distribuída de acordo com os projetos elaborados que não recebem verba específica ou complementar, portanto. Importante ressaltar, outrossim, que, quando necessário, as deliberações acordadas são transformadas em resoluções da Secretaria Estadual da Saúde e devidamente publicadas na imprensa oficial.

Tais experiências denotam o caráter eminentemente social das negociações coletivas, entendimento este que se coaduna com o posicionamento defendido por Manuel Correa Carrasco, para quem

En efecto, y a diferencia de la perspectiva normativista, para el sociologismo, el reconocimento de la relevância jurídica de la negociación colectiva, sin embargo, no dependeria en ningún caso de que el Estado efectuase una declaración explícita al respecto: la juridicidad sería inmanente al fenómeno social una vez considerado, siendo consecuencia de los equilibrios de poder que surjan de forma autónoma entre los grupos sociales enfrentados (trabajadores y empresarios). Por lo tanto, no sería preciso ningún tipo de apoderamiento o delegación ex profeso de poder normativo a los sujetos negociadores, para que éstos puedan crear normas vinculantes entre ellos. [109]

Diante de tal cenário, que contraria e supera os obstáculos suscitados pelo STF quando do julgamento da questão, não há como se negar que a negociação coletiva é um fenômeno social, que se impõe ao ordenamento jurídico.

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Sobre a autora
Melissa Demari

Advogada e professora Universitária. Mestre em Direito Público pela UNISINOS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEMARI, Melissa. A possibilidade da negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2046, 6 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12289. Acesso em: 22 nov. 2024.

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