5. A possibilidade do controle direto.
Parece ser que o único óbice efetivo e sério à existência do controle em tese da constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal frente à CF, vem a ser a inexistência de expressa previsão constitucional. Felizmente o constitucionalismo evolui. A Constituição pode ser alterada em sua letra e o Supremo não se tem furtado a construir no sentido de suprir a ausência em pauta, conforme veremos no tópico seguinte.
5.1 Normas de Reprodução Construção jurisprudencial.
De grande relevância, para o assunto discutido nesta monografia, é a decisão do Supremo, pelo Tribunal Pleno, na Reclamação 383-SP, relatada pelo Ministro Moreira Alves, onde se fixou o entendimento de que cabe ao Tribunal de Justiça Local exercer o controle direto de constitucionalidade de lei ou ato normativo Municipal sob o parâmetro da Constituição Estadual, mesmo quanto aos seus dispositivos que reproduzem aqueles da Carta Federal de observância obrigatória pelos Estados e Municípios (Constituição Total). Sendo a decisão, nesse caso, passível de Recurso Extraordinário quando "a interpretação da norma constitucional estadual, que reproduz a norma constitucional federal de observância obrigatória pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance desta." (RCL 383-SP, Min. Rel. Moreira Alves, j. 11/06/92, RTJ 147, 404 a 507)
Em que reside a relevância da decisão? Entendia-se até então, diante do fato de parte dos Dispositivos da Constituição Estadual constituírem reprodução de outros da Carta Federal, de observância obrigatória pelos Estados (Normas de Reprodução na terminologia de Raul Machado Horta (HORTA: 1964, pág. 193)); que no tocante a tais normas, não caberia controle ao nível estadual, pois este não passaria de burla à competência exclusiva do Supremo para apreciar a inconstitucionalidade em face da Carta Federal. Além do que, uma eventual decisão da Corte Estadual em sede de Controle Direto, por sua característica de eficácia erga omnes, vincularia, inclusive, o Supremo nos Recursos Extraordinários futuros dos quais viesse a conhecer em sede de Controle Difuso.
Frente a vedação acima, somente caberia a Representação ao TJ, relativamente aos Dispositivos Autônomos da Carta Estadual. Quando da afronta por lei estadual às Normas Constitucionais Estaduais de Reprodução, restaria a via da Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo, sob o parâmetro direto da Carta Federal. No que tange à lei municipal, a via direta caberia apenas no que tange ao parâmetro das Normas Autônomas da Constituição Estadual. Convenhamos, terreno de exígua extensão, se considerarmos que como jus receptum da Constituição Federal, a Estadual em grande parte a reproduz.
A solução, construir onde não há disposição expressa. Reconheceu o Supremo que norma local tanto pode ser examinada em face da Constituição Estadual como da Constituição Federal e, para citarmos o comentário de Arthur De Castilho Neto ao julgado (CASTILHO NETO:1993), "Admitiu, para o efeito de tornar reversível a decisão do Tribunal local, ... a interposição de Recurso Extraordinário, quando a interpretação daquele Tribunal violasse a Constituição Federal. Na hipótese de não ser interposto o recurso extraordinário, a decisão somente prevaleceria quanto à Constituição estadual, nada impedindo que a questão fosse reavivada quanto à violação de regra constitucional federal." Na disciplina atual, portanto, irrecorrido e transitado em julgado o acórdão do Tribunal de Justiça, a eficácia erga omnes fica, obviamente, restrita ao âmbito do Estado Federado, inclusive porque a apreciação se fez apenas em face do parâmetro Carta Estadual. A quaestio juris federal, permanece invocável perante o Supremo.
O entendimento foi ratificado em decisão proferida pelo Pleno do STF na RCL 425, Min. Rel. Neri da Silveira, 10/03/93 e na ADIn 1482-0, Min. Rel. Francisco Rezek, 27/08/96.
Só podemos ver nesta construção do Supremo uma mitigação da dogmática do controle direto, pela atribuição ao mesmo de características do controle difuso, quer seja, a possibilidade de fazer chegar a questão ao Supremo, o legítimo guardião da Constituição Federal, pela via recursal. Tal construção soluciona boa parte do problema considerando a extensão em que as Constituições dos Estados reproduzem a Carta Federal. No entanto sempre haverá aquela porção da Carta Federal não reproduzida na Estadual e que, por tal motivo, não seria alcançada pelo controle direto.
Se aquele passo foi dado no sentido de prover o adequado e completo controle da constitucionalidade na via direta do normativismo municipal, convém considerar a possibilidade de empreender-se outros, como por exemplo o estendimento, de lege ferenda, da jurisdição constitucional aos Tribunais de Justiça, para que possam conhecer e julgar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo municipal frente a Constituição Federal.
5.2 O estendimento, de lege ferenda, da jurisdição constitucional aos TJs
Já no ordenamento jurídico constitucional precedente propunha-se, de lege ferenda, inserção no art. 13 daquela Carta, de parágrafo com previsão da competência na forma que segue: " § Compete aos Estados argüir, perante o Tribunal de Justiça, a inconstitucionalidade de leis ou atos estaduais e municipais contrários à Constituição estadual, e a inconstitucionalidade de leis ou atos municipais contrários a esta Constituição" (ALMEIDA:1982, pág. 133). Tese em parte acolhida pelo constituinte de 1988 ao introduzir a representação do art. 125, § 2º.
Ora, se aos Tribunais já é deferida a apreciação e possibilidade de pronunciamento da inconstitucionalidade de lei municipal frente a Carta Magna na via incidental, o que está a impedir a mesma apreciação na via direta, preservada a autoridade do Supremo Tribunal Federal na matéria pelo instrumento do Recurso Extraordinário.
Não se pode negar o estendimento de tal jurisdição aos TJs sob o pretexto da precipualidade do Supremo Tribunal Federal na guarda da Constituição e, ao mesmo tempo, negar-se neste o seu exercício pela não factibilidade da apreciação em caráter originário.
Que se reconheça a excepcionalidade que há no controle direto. Que, frente a esse reconhecimento, se defira sua competência a órgãos jurisdicionais centrais ou de cúpula em cada esfera. Que se restrinja o número de legitimados à ação. Por fim, que se esboce constitucionalmente, de outras formas, os limites de tal controle. Porém, não há que se excluir a produção normativa municipal da discussão de sua constitucionalidade por essa via. Dificilmente poderíamos conceber, legitimamente, outros instrumentos processuais para afastar a eficácia geral da norma municipal inconstitucional. Ações outras de caráter coletivo e legitimação ampla (ação civil pública, mandado de segurança coletivo) não implicariam senão em tentativa ilegítima de burlar a lógica que está a vedar a utilização do instrumento apropriado: o controle em abstrato da constitucionalidade da norma.
A atribuição aos TJs da apreciação da Inconstitucionalidade em tese de lei ou ato normativo municipal de forma ampla, segundo os parâmetros da Carta Estadual e Federal, mantida a legitimação ativa autorizada e condicionada pelo art. 125 § 2º; teria a vantagem de, ali, antes da sujeição da questão ao STF, escoima-la da matéria de competência meramente estadual. Os Tribunais de Justiça seriam instância última, sempre que para supressão do vício, suficiente fosse o quanto dispõe o ordenamento constitucional local. A apreciação pelo Supremo, em grau de recurso, estaria a garantir sua autoridade e competência para interpretação, em última instância, da Carta Magna.
5.3 O recurso ao Supremo Tribunal Federal.
Desafia Recurso Extraordinário a decisão que, a teor do art. 102, III, c, julga válida a lei ou ato normativo do governo local contestado e em face da mesma. O controle concentrado exercido pelos Tribunais locais não está a ele imune.
No entanto, como observa o Ministro Carlos Velloso em seu voto na ADIn 347-SP, em sede do controle direto, melhor caberia um "Recurso Necessário", posto que a apreciação da questão pelo Supremo não poderia ficar a mercê da discricionariedade da parte. Diríamos não apenas da discricionariedade, senão da diligência da parte na observância de todos os pressupostos e requisitos exigidos pelo Recurso Extraodinário na forma como constitucionalmente delineado.
A apreciação do Recurso Extraordinário pelo Supremo, conforme salienta José Augusto Delgado (DELGADO:1995) depende do cumprimento dos pressupostos específicos exigidos pelo art. 26, da Lei 8.038/90 e da sujeição aos princípios e regras adotadas para os Recursos Extraordinários como, a título exemplificatório, tempestividade, entrada na Secretaria do Tribunal, esgotamento dos recursos de natureza ordinária, pre-questionamento. Estaria o Recurso sujeito ainda à restrição imposta na súmula 283 do STF. De forma que, em face do interesse público do "Recurso Necessário", inclusive com fins de preservação da uniformidade de interpretação da Constituição Federal, é provável que merecesse disciplina própria, diversa daquela do Recurso Extraordinário.
Na assunção de um "Recurso Necessário", manifestar-se-ia, convenientemente, uma das características do controle direto: a não disponibilidade do processo pela parte. Aquele que desencadeia a ação direta, o faz em defesa da ordem jurídica. "... o autor não persegue aqui interesse próprio, nem busca a defesa de uma posição jurídica individual" (MENDES: 1995). Não se requer a demonstração de interesse jurídico específico do proponente. Por via de conseqüência, justifica se a inclusão, no impulso oficial, do recurso de que cogitamos.
Quanto ao problema operacional da quantidade de processos no Supremo, a assunção do Recurso que discutimos, longe de inflacioná-la, concorreria para sua redução, na medida em que a decisão em sede de controle direto, fazendo coisa julgada material com eficácia erga omnes, aliviaria o Supremo da apreciação dos Recursos Extraordinários que, mais numerosos na via incidental, emergiriam toda vez que os Tribunais locais tivessem que confirmar a validade da lei ou ato normativo municipal frente a uma não sustentável argüição de inconstitucionalidade frente à Constituição Federal (art. 102, III, c).
E quanto à decisão do Tribunal local que, contemplando o pedido do requerente, proscrevesse norma comunal impugnada por afronta à CF; estaria sujeita ao recurso voluntário ? Não há que se olvidar que o constituinte de 1988, permitiu um certo "contraditório" na via direta ao prever a defesa da norma impugnada pelo Advogado Geral da União (art. 103, § 3º). O Constituinte Estadual, em simetria com o ordenamento Federal, tem, em regra, atribuído a tarefa, no âmbito estadual, ao Procurador Geral do Estado (CE /RS, art. 95, § 4º, CE/SC, art. 85, § 4º, CE/CE, art. 127, § 1º, CE/RN, art. 71, § 5º, CE/SP, art. 90, § 2º, CE/GO, art. 60 , § 1º, para citar algumas das Constituições Estaduais).
Há interesse público em que se estabeleça tal "contraditório". Inclusive, em deferência à autonomia do Município, à representatividade de seus órgãos legislativos e normativos, ou ainda, à presunção de legitimidade e legalidade de que goza respectivamente a produção legislativa e a edição normativa do poder executivo. Cabível, em virtude desse interesse, conceder-se o duplo grau de jurisdição ao controle que na ortodoxia de sua dogmática é concentrado.
Questões outras em derredor haveriam de ser discutidas, como, por exemplo, a do efeito em que se receberá o recurso; porém o enfrentamento das mesmas foge ao escopo deste trabalho.
5.4 Efeitos da decisão no Supremo Tribunal Federal.
A eficácia erga omnes, em todo o território nacional, da decisão do Supremo Tribunal Federal em Recurso Extraordinário (próprio de controle difuso) interposto contra Acórdão de Tribunal de Justiça em sede de controle direto, foi afirmada em recente julgado da Corte Suprema (RE 187.142-RJ, Min. Rel. Ilmar Galvão, 13/08/98). Tal eficácia pode, no entanto, não ser suficiente para viabilizar o controle que preconizamos. O controle direto é em abstrato, porém, da norma concretamente editada. "Inexiste ... em nosso sistema jurídico, a possibilidade de fiscalização abstrata preventiva da legitimidade constitucional de meras proposições normativas pelo Supremo Tribunal Federal" (ADIn 466-DF, Min. Rel. Celso de Mello, RTJ 136-01 pág.-25). É dizer, o controle em tese só pode ser desencadeado em face da existência em concreto de Lei ou Ato normativo. Por outro lado, proscrita a norma comunal concreta por decisão definitiva do Supremo, ainda que tal decisão tenha eficácia geral e em todo o território nacional, os efeitos, do ponto de vista prático, restringir-se-iam ao âmbito da municipalidade onde foi editada.
Face a esta realidade, difícil será escaparmos, na espécie, a alguma forma de efeito vinculatório das decisões emanadas pelo Supremo, se pretendemos evitar a multicitada inflação processual no Órgão de Cúpula.
Difícil também não admitirmos a utilidade de um tal efeito quando contemplamos a proliferação entre os municípios brasileiros de ilegítimos modelos legislativos como, exempli gratia, é o caso das leis municipais instituidoras das famigeradas "taxas" de Iluminação Pública, Coleta de Lixo, Turismo, etc.; ou das leis que, a pretexto do exercício do poder de polícia, são, no fundo, violadoras de direitos individuais de liberdade e privacidade constitucionalmente garantidos.
O recurso à súmula vinculante, no caso específico, poderia ser, ao lado de outras, uma forma de, por um lado, limitar-se a subida ao Supremo de questões já repisadas em seus julgamentos, por outro, evitar-se a adoção de soluções mais autoritárias, como soe acontecer com chamada "questão constitucional incidente", cuja conotação avocatória, normalmente atendem mais de perto aos interesses governamentais do que a uma efetiva e real preservação da segurança jurídica e proteção da Constituição.
Nos requisitos para edição das súmulas é onde poderia residir uma instrumentalização do instituto de forma a que, sem que se iniba a sua utilidade prática, não venha a ensejar centralização demasiada das decisões e conseqüente "engessamento" do Poder Judiciário. Poder, diga-se, que tem, em sua formação plural e na dialética entre suas instâncias, a sede de seus atributos democráticos.