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A Cesare o que é de Cesare

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12/02/2009 às 00:00
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O acerto ou desacerto da decisão ministerial que concedeu o refúgio a Cesare Battisti não se submete a controle judicial, a menos que haja erro grosseiro e violação a direitos fundamentais. Não parece ser esse o caso.

Parece uma injustiça brutal que um condenado por quatro assassinatos não seja extraditado para o país de origem, de modo a cumprir a sua pena. Um homicida frio e cruel que atira pelas costas e descarrega a arma contra um ser humano sem um cenho de pudor, deixando de saldo um pai morto e um filho paraplégico. O mesmo que recentemente declarou a Stefano Rottigni, da agência de notícias ANSA: "São trinta anos de espera (...). Não é pela pessoa de Cesare Battisti, mas para que todos entendam que, cedo ou tarde, quem praticou crimes tão graves deve pagar pela própria culpa". [01] Chi si é macchiato di reati così gravi deve pagare le proprie colpe, Sr. Alberto Torreggiani?. Aqui, na terra da impunidade, um terrorista solto a mais ou a menos, que diferença faz? As perguntas se respondem no eco do senso comum. Se o direito dele se nutre, nele não se resume, todavia. Tampouco a situação de Battisti se contém no direito apenas.


1. O curioso caso de Cesare Battisti

Cesare foi um jovem delinqüente que encontrou no cárcere suas lições de política. Tais lições, sabe-se lá se a título de graduação ou doutoral, convenceriam-no a sair dali, aos vinte e dois anos de idade, disposto a transformar sua arte de pequenos delitos no sonho de transformar a Itália numa sociedade comunista.

Não havia outros meios que não fossem, para ele, a própria reprovação dos poderes constituídos, valendo-se do grupo paramilitar, chamado de "Proletari Armati per il Comunismo", "Proletários Armados pelo Comunismo" ou simplesmente PAC, um entre vários existentes na Itália à época, um dos menos expressivos, com a finalidade de realizar uma série de enfrentamentos à legalidade estabelecida até à desestabilização do regime político e tomada do poder. Na contabilidade oficial, foram quatro homicídios praticados pelos PAC entre 1978 e 1979: Antonio Santoro, um carcereiro que, segundo a organização, torturava prisioneiros; um joalheiro, Pierluigi Torreggiani (o pai do Sr. Alberto), e Lino Sabadin, um açougueiro e simpatizante do neofascismo, que haviam matado um integrante dos PAC em ação; além do policial Andrea Campagna, quem realizara as primeiras detenções no caso Torregiani.

Em 1979, Battisti foi condenado a doze anos de prisão pelo crime de "participação em bando armado". Dois anos depois, fugiu da cadeia e do país. No México trocou as armas pelas letras, conforme confessou autobiograficamente. Um câmbio pouco eficaz para a justiça italiana, entretanto.

No apagar daquele agora aparentemente longínquo 1979, escreveu-se um capítulo a mais na chamada "legislação de exceção", iniciada pelo Decreto-Lei n. 99/1974, com a edição do Decreto-Lei de 15/12/1979, que se converteria na "Lei Cossiga" n. 15/1980. O novo diploma criava novos tipos penais de "conspiração política mediante associação" e de "associação para delinquir", autorizando a prisão cautelar e incomunicável dos suspeitos de suas práticas por até 96 horas. Permitia-se, ademais, que a preventiva se alongasse quase indefinidamente (art. 10). Enquanto isso, o artigo 9º previa buscas domiciliares sem mandados judiciais. De quebra, admitia-se a incidência imediata das novas disposições normativas (art.11). [02]

Um Decreto-Lei de 1982, convertido na Lei n. 304 ("Legge sui Pentiti"), previa a "delação premiada", possibilitando a coautores confessos de tais crimes, que prestassem informações sobre a existência e o destino de seus comparsas, a redução de suas penas (arts. 2o e 3º) e, em certas circunstâncias, a exclusão da punibilidade (art.1º). [03] A autorização de julgamento à revelia veio a enfraquecer ainda mais a garantia de ampla defesa, combalida desde a aprovação da "Lei Reale" (n. 152/1975) e da Lei 534/1977, a ponto de despertar a crítica dos defensores da Constituição e das garantias processuais. [04] Sem embargo, a Corte Constitucional foi econômica: "Diante de uma situação de emergência (...), o Parlamento e Governo têm não só o direito e o poder, mas também o preciso e indeclinável dever de agir (provvedere), adotando uma especial legislação de emergência." O que era ainda mais grave, possuíam o direito "di non ritenersi strettamente vincolati alla Costituzione"(Sentenza 15/1982).

A delação premiada foi a pá-de-cal que faltava aos restos da utopia comunista italiana. Companheiros e camaradas, "arrependidos", entregaram camaradas e companheiras, presos ou foragidos, para se livrarem dos crimes cometidos. Ou para transitarem livres pelas ruas de Milão ou Roma.

Pietro Mutti, um dos fundadores dos PAC e preso em 1982, resolveu colaborar com a justiça, implicando Battisti nos quatro homicídios cometidos pela organização. Em 1987, os processos contra Basttiti foram retomados à revelia do acusado e levaram à sua condenação simultânea como autor dos homicídios de Torregiani e Campagna, e na qualidade de cúmplice nos assassinatos de Santoro e Sabbadin.

Confiante na doutrina Mitterand, que acolhera os italianos de esquerda, supostos ou reais autores de atos violentos durante os anos 1970, Battisti resolveu mudar-se para a França em 1990. [05] Após rápida passagem pela prisão, conseguiu da Corte de Apelação de Paris sentença que recusava o pedido de extradição feito pela Itália. Livre e em Paris, Battisti escreveu seu primeiro romance, Les Habits D''Ombre, seguindo sua atividade autoral e quase monotemática: a vida dos sonhadores de armas durante os anos de chumbo italianos (argumento de seu "Dernières Cartouches") e de seus destinos depois deles ("Buena Onda", por exemplo).

Mas os ventos mudariam de novo a direção, contrariando nosso personagem. Na Itália, seus processos transitaram em julgado com a sentença de condenação à prisão perpétua com isolamento diurno nos primeiros seis meses. Não adiantaram seus apelos, em conjunto com outros refugiados italianos, por anistia pelos crimes praticados na Itália, em relação aos quais se dizia inocente. Pelo menos, dos "crimes de sangue". Mas foram efetivos os esforços italianos para reverter a "velha doutrina Mitterrand".

O Conselho de Estado francês, em março de 2005, negou o pedido de Cesare no sentido de anular o decreto do Primeiro Ministro, datado de 23 de outubro de 2004, autorizando a sua extradição à Itália. Argumentou-se que a Itália não visava persegui-lo politicamente, tampouco lhe faltara o direito de defesa nas ações penais que correram na justiça italina, uma vez que havia inclusive nomeado advogado para defendê-lo. Em sendo assim, "M. BATTISTI, qui s''est évadé de prison et est longtemps resté introuvable, doit être regardé comme ayant manifesté, de manière non équivoque, sa volonté de renoncer à comparaître en personne devant ses juges et de se soustraire à la justice". [06] Logo em seguida, o então presidente Jacques Chirac manifestou-se no sentido do cumprimento da decisão extraditante, pondo fim à doutrina Mitterand. [07] O pior estaria por acontecer: em 2006, a Corte Européia de Direitos Humanos não viu qualquer vício na decisão francesa. O réu sabia da acusação que pesava contra ele na Itália e preferiu não se defender adequadamente. Não havia agora como alegar violação do direito de defesa no julgamento à revelia. [08] O sonho perdera de vez a possibilidade de vir a ser algo real. A democracia cristã triunfara, inclusive sobre a social democracia rendida.

Se a Europa fechava as portas ao escritor, abrindo apenas grades, ele, com a ajuda do serviço secreto francês, não viu outra opção a não ser tomar o rumo de um país conhecido por seu "liberalismo" na concessão de asilos. Concedera-o, por exemplo, a Georges Bidault, ministro francês envolvido em atentado contra a vida do presidente De Gaulle. Fizera assim também com diversos ditadores sul-americanos, depostos de seus cargos, além de outros tantos perseguidos por questões mais nobres.

Desembarcou no Rio de Janeiro em 2004, sob um silêncio planejado, um velho jovem, sua mulher e duas filhas. Quem o visse não diria que se tratava de Cesare Battisti. Nem do sonhador combatente ou terrorista simplesmente dos anos 1970, nem do escritor razoavelmente bem sucedido depois disso. Não sabia, entretanto, que estava sendo, em silêncio também, monitorado. Em fevereiro de 2007, a Itália protocolizou no Supremo Tribunal Federal pedido de prisão preventiva em extradição que seria requerida em maio seguinte. Antes disso, já estava recolhido no Presídio da Papuda em Brasília.

Preso e com destino encaminhado para voltar à Itália, tentou se apegar ao resíduo de esperança que o mantinha alerta. Foi assim que pediu, em junho de 2008, ajuda ao Comitê Nacional para os Refugiados, o Conare, mas três meses depois sofreu outro revés pelo apertado placar de 3 a 2. Recorreu ao Ministro da Justiça como lhe facultava a Lei n. 9.474/1997.

Em polêmica decisão e sob pressão de todos os lados (Carla Bruni foi a mais, digamos, branda), o Ministro considerou procedente o pedido de refúgio em 13 de janeiro de 2009. Em seus argumentos, pôs em dúvidas a efetividade do exercício do direito de defesa de Battisti nos processos italianos, referindo-se inclusive ao fato de o advogado que o defendera ter-se valido de procuração falsificada. Também recusou a tese de que não havia indícios de fundado temor de perseguição ao postulante, por fatos e circunstâncias que enumerou em seu despacho, mas principalmente pelo "conteúdo das acusações e das movimentações políticas que ora deram estabilidade, ora movimentação" à persecução criminal contra ele, realizada pela Itália, de acordo com os humores "da situação política" naquele país.

Não em vão. A imprensa européia noticiava, há tempos, a existência de uma organização denominada "Departamento de Estudos Estratégicos Antiterrorismo", em italiano abreviado: DSSA, fundada pelo presidente do partido ultradireitista italiano "Destra Nazionale", Gaetano Saya, e por líderes da União Nacional das Forças Policiais, que, segundo interceptações telefônicas, tinha planos para seqüestrar Cesare Battisti. Era nada mais e nada menos este o título da reportagem do correspondente do "The Independent", na Itália, John Philips, publicada pelo jornal britânico em 5/7/2005: "Mais de 200 policiais italianos ‘funcionaram como uma força paralela antiterror’". [09] A leitura atenta dos jornais da Itália e do pronunciamento público de suas autoridades revelavam a necessidade de punição do delinqüente foragido. A qualquer custo. Battisti era a expiação dos males passados e o placebo ao inconformismo público no presente.

O Ministro poderia ter falado ainda sobre o atual estado de saúde do escritor, acometido de hepatite B, para realçar seu caráter humanitário. Não o fez. Sua decisão está, juridicamente, incorreta como dizem tantos? Não. Para o direito, basta a validade do ato com a resposta afirmativa dada à pergunta sobre a competência da autoridade que o adotou e sobre o atendimento dos requisitos exigidos, no caso, para o benefício do "refúgio". E esse tal refúgio não se trata de uma invenção brasileira.


2. Refúgio e asilo: distinção preliminar

Desde a Antiguidade, existem registros de pessoas que eram obrigadas a se deslocar de sua pátria ou morada, por catástrofes e perseguições, bem como do acolhimento e proteção de criminosos comuns por nação estrangeira. A partir do século XVIII e especialmente no XIX, é que se firmou a distinção entre a extradição de delinqüentes comuns e o abrigo, refúgio ou asilo de criminosos políticos. O domínio do arbítrio em boa parte da Europa e a história de terror na II Guerra Mundial inspiraram a comunidade internacional a instituir em 1950 o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, ACNUR.

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No ano seguinte, foi aprovada pela ONU a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, definindo como tal a pessoa que estivesse fora de seu país e que não pudesse ou não desejasse a ele regressar por causa de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião, nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política. [10] Na América Latina o termo preferido pelos tratados regionais tem sido "asilo", a significar o acolhimento de um estrangeiro que esteja sofrendo perseguição política no país de origem. Basta lembrar das Convenções Interamericanas sobre Asilo Diplomático e sobre Asilo Territorial de 1954, promulgadas no Brasil em 1965, além de previsão específica na Constituição brasileira (art. 4º, X). [11] A Convenção da ONU sobre Refugiados foi ratificada pelo Brasil em 1960. Em 1997, foi aprovada a citada Lei n. 9.474/1997 para estabelecer os meios de sua exeqüibilidade.

Foi nessa Lei que o Ministro da Justiça se baseou para rever a negativa do Conare. Seu poder de revisão final do processo está previsto pelos artigos 29 e 31 da Lei. O único senão à integridade da decisão ministerial se encontra na exclusão expressa de seu âmbito de aplicação a atos terroristas (art. 3o, III). Battisti praticou ou não terrorismo? Quem responde? O Ministro da Justiça neste caso.

O Judiciário o pode corrigir? Somente em caso de flagrante contrariedade à Convenção e à Lei sobre o Refúgio. Em que pese a Constituição garantir o acesso amplo à prestação jurisdicional a quem quer que tenha direito seu ameaçado ou violado, o que inclui obviamente os interesses da República Italiana, o tema tem índole política, pura ou quase pura. Não estamos a lidar com matéria relacionada a direitos fundamentais, a não ser os de Cesare Battisti. Em se tratando da Itália, há um interesse juridicamente relevante sim, mas que não retira a imunidade do ato político de concessão do refúgio à revisão judicial.

Lembremos que o ato político não encontra parâmetro legal objetivo, ainda que precisa seja a definição da autoridade competente para adotá-lo. Pois bem, é tradição, no direito comparado, a ampliação da discricionariedade (liberdade de decisão), especialmente do Executivo, nos assuntos de política externa, cabendo ao Judiciário intervir apenas em caso de desrespeito aos direitos fundamentais ou de erro grosseiro.


3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Élio Gaspari, em sua coluna dominical em "O Globo" de 8 de fevereiro de 2009, escreveu que o Supremo Tribunal Federal deverá extraditar Cesare Battisti para a Itália. Se o fizer, será um retrocesso muito grande no âmbito do direito e da política. Antecipadamente, quero deixar claro que não tenho alinhamentos político-partidários para defender a tese, faço-a por convicção do que deva ser direito e política. Tampouco aprovo a violência como meio adequado de tornar dominante uma dada visão de mundo. Cada vez que agimos com a força, ganhamos quilos de gordura trans e perdemos um pouco de nossa humanidade. Vamos ao ponto.

O STF para atender ao pedido italiano, terá de vencer dois grandes obstáculos criados pela sua própria jurisprudência: a constitucionalidade da Lei 9.474/1997, que prevê a concessão do refúgio como impedimento à extradição; e a motivação política como elemento de definição do crime político, proibindo a extradição de seu autor.

3.1. A constitucionalidade da Lei 9.474/1997

O julgamento da constitucionalidade da Lei ocorreu em 21 de março de 2007 no caso Olivério Medina (Ext. 1008/Colômbia). Ficou vencido, na oportunidade, apenas o Ministro Gilmar Mendes. Não votaram, a considerar os atuais membros, Ellen Gracie, que estava licenciada, e Menezes Direito, que não fazia parte ainda do colegiado. Portanto, mesmo que sejam computados seus votos no sentido da inconstitucionalidade da norma, o placar continuará bem favorável à manutenção do entendimento: 8 a 3. Se não houver mudança de entendimento, claro.

O voto vencido manifestara a convicção de que a Lei 9.474/1997 deveria sofrer uma interpretação conforme a Constituição (art. 5º, LII e art. 102, I, g), para que a extradição somente fosse obstada pelo refúgio nos casos em que se imputasse ao extraditando crime político ou de opinião ou ainda quando as circunstâncias subjacentes à ação do estado requerente demonstrassem uma extradição política disfarçada. Sob quais fundamentos? Basicamente dois. Primeiro, a invasão de competência do Supremo Tribunal Federal, a quem caberia a última palavra sobre a extradição, incluindo, obviamente, o reconhecimento da existência de criminalidade política ou de opinião, com a determinação automática da suspensão ou da extinção do processo extraditante na hipótese de pedido ou concessão de refúgio, respectivamente (arts. 33 e 34, Lei 9.474/1997). Segundo: a jurisprudência do Tribunal a admitir a extradição do asilado (Ext. 232/Cuba e 524/Paraguai), por não haver distinção significativa entre os institutos do asilo e do refúgio de forma a justificar a diferença de tratamento.

Esses dois argumentos foram afastados pelos nove Ministros vencedores. Quem puxou a dissidência foi Sepúlveda Pertence, hoje aposentado. Ao lembrar de manifestação feita em outro caso (Ext. 785/México), Pertence não reconheceu a alegada invasão de poderes do STF pela vinculação do processo extradicional (jurisdicional ou pelo menos judiciário) ao de refúgio (administrativo). O processo perante os tribunais se destinava à composição de conflitos. Se tais conflitos deixassem de existir, não haveria razão para continuar com a demanda judicial. E pouco importava se o prejuízo do processo advinha de outro poder, em decorrência da adoção de um ato para o qual fosse competente.

Bastava lembrar da perda de objeto do mandado de segurança, quando a autoridade coatora desfazia o ato abusivo ou ilegal ou quando o legislativo revogava a lei impugnada numa ação direta de inconstitucionalidade. Suponho não haver dúvida da validade da lei, disse Sepúlveda, pois, "a exemplo da generalidade dos ordenamentos nacionais", a Constituição "reserva ao Poder Executivo – órgão das relações internacionais do Estado – o poder privativo de conceder asilo ou refúgio."

O Tribunal jamais negou à lei o campo de disciplina das condições para extradição, desde que sejam respeitados os parâmetros constitucionais, inclusive a separação dos poderes. E essa atenção foi devidamente dada pelo Congresso e Presidente da República com a Lei 9.474/1997, disseram Cármen Lúcia e Marco Aurélio. Absolutamente não estava em jogo o princípio da separação dos poderes, foi a vez de César Peluso. "Assim como nos outros casos em que a lei disciplina hipóteses nas quais a competência do Supremo está adstrita à observância de certos requisitos legais, não há aqui interferência nenhuma. E cada Poder age dentro da sua esfera de competência. A Lei apenas criou um óbice ao curso do processo, sem qualquer excesso ou invasão de competência".

A extradição passiva, aquela de que tratamos aqui: o envio de criminoso comum para ser julgado pelo país requerente ou para nele cumprir a pena a que foi condenado, não é automática ou indiscriminada, no sentido de que chega o pedido, o Brasil extradita. Há limitações constitucionais expressas (proibição de ser extraditado brasileiro nato e, se naturalizado, por crime posterior à naturalização ou que não seja de tráfico de drogas; e de estrangeiro por crime político e de opinião), além da possibilidade de serem estipuladas outras condições de inadmissibilidade por meio de tratado próprio. Além do mais (e isso foi reconhecido claramente por Sepúlveda, Celso de Mello e Peluso), o pedido é formulado pelo país estrangeiro ao Executivo brasileiro, a quem cabe discricionariamente submetê-lo ao STF, só então se abrindo o processo de extradição.

Se, como disseram os nove, o refúgio podia ser legitimamente um obstáculo à extradição, como ficava o entendimento do Tribunal no sentido de que o asilado poderia ser extraditado, a considerar a indistinção entre asilo e refúgio? Em primeiro lugar, não há coincidência necessária entre um e outro. A começar pela diferença de fontes e pela abrangência maior de causas de perseguição no refúgio. A inexistência de previsão legal para o asilo obstar a extradição é outro elemento importante de diferença. Depois, o sistema jurídico brasileiro confere maior proteção ao refugiado do que ao asilado. Ou, como defendeu Carlos Britto, em "Olivério", o refúgio é um "plus" protetivo que vigora paralelamente ao asilo, atentando sempre para o princípio do Direito Internacional dos Direitos Humanos no sentido de que o sistema de garantias dos direitos, de refúgio inclusivamente, não pode sucumbir à interpretação mais restritiva em caso de dúvidas fundadas, tampouco à dualidade de institutos. [12]

A admitir a distinção, é preciso concluir, como fizera Ricardo Lewandowski, que o ato de concessão de refúgio possui natureza político-administrativa, estando no âmbito das competências constitucionais do Executivo. Não admite, por isso, a análise judicial sobre o seu acerto ou desacerto, lembrou Marco Aurélio. Todos manifestados naquela paradigmática decisão.

Parece despropositada, enfim, a tese de que, no caso de Battisti, houve uma decisão monocrática do Ministro da Justiça, reformando o julgamento do Conare. Já afirmamos que esse poder revisional é legalmente previsto (arts. 29 e 31, Lei n. 9.474/1997), não havendo vício de inconstitucionalidade em sua previsão, por se tratar o Comitê de órgão do próprio Ministério.

Imaginemos que o Supremo modifique a jurisprudência por ele firmada, julgando que, em melhor análise, a palavra final sobre a extradição seria dele mesmo, seguindo uma leitura, a meu ver, fragmentada do texto constitucional. Ou em função da especificidade de o ato ter emanado do Ministro e não do Comitê. Ainda assim ele será obrigado a avaliar se os crimes imputados a Cesare foram ou não políticos. Outra vez aqui haverá dificuldades.

3.2. A criminalidade política e terrorismo

Como é sabido, crime político admite uma concepção ampla, também dita mista, relativa ou imprópria, ao lado de outra restrita, pura, absoluta ou própria. Nesta, os atos do agente se destinam diretamente a atingir a ordem constituída ou a personalidade do Estado. Naquela, há a prática de um crime comum, dominado, no entanto, pela intenção político-social de desmantelar aquela ordem. O assassinato de pessoas e o roubo são delitos comuns que podem ou não ser políticos. O que o fazem políticos? O elemento volitivo ou subjetivo, o querer de seus autores. Querem matar e roubar para ficarem ricos: crimes comuns. Praticando-os para obter meios de derrubar o regime político e seus líderes: crimes políticos.

É certo que o Tribunal já se manifestou no sentido de descaracterizar como políticos atos terroristas. Por unanimidade, em 26 de agosto de 2004, decretou que "os atos delituosos de natureza terrorista, considerados os parâmetros consagrados pela vigente Constituição da República, não se subsumem à noção de criminalidade política, pois a Lei Fundamental proclamou o repúdio ao terrorismo como um dos princípios essenciais que devem reger o Estado brasileiro em suas relações internacionais (CF, art. 4º, VIII), além de haver qualificado o terrorismo, para efeito de repressão interna, como crime equiparável aos delitos hediondos, o que o expõe, sob tal perspectiva, a tratamento jurídico impregnado de máximo rigor, tornando-o inafiançável e insuscetível da clemência soberana do Estado e reduzindo-o, ainda, à dimensão ordinária dos crimes meramente comuns (CF, art. 5º, XLIII)" (Ext. 855/Chile).

Entretanto, por mais de uma vez, inclusive na Extradição de Olivério Medina, foi categórico na afirmação de que a proibição constitucional da extradição por crime político compreende a prática de eventuais delitos contra a pessoa ou contra o patrimônio no contexto de um fato de rebelião de motivação política. No caso de Luciano Pessina (Ext. 494/Itália), considerou políticos ilícitos penais como o roubo a bancos e a participação em bando armado, reconhecendo que "os fatos resultaram de um mesmo contexto de militância política, ocorridos que foram poucos meses antes, ou seja, ‘em época anterior e próxima a 09.02.1978’, envolvendo, inclusive, alguns agentes do mesmo grupo". É interessante notar que, em diversas passagens, o Tribunal fez questão de afirmar que não havia sido demonstrado o caráter terrorista da ação nem o atentado contra a vida alheia.

Sem embargo, no caso Fernando Falco (Ext. 493/Argentina), expressamente mencionado em "Olivério Medina", foi mais liberal: "Roubo de veículo utilizado na invasão do quartel, e privações de liberdade, lesões corporais, homicídios e danos materiais, perpetrados em combate aberto, no contexto da rebelião -, são absorvidos, no direito brasileiro, pelo atentado violento ao regime, tipo qualificado pela ocorrência de lesões graves e de mortes (Lei de Segurança Nacional, art. 17). A imputação de dolo eventual quanto às mortes e lesões graves não afasta necessariamente a unidade do crime por elas qualificados. Ditos fatos, por outro lado, ainda quando considerados crimes diversos, estariam contaminados pela natureza política do fato principal conexo, a rebelião armada, a qual se vincularam indissoluvelmente, de modo a constituírem delitos políticos relativos".

Aqui está a tese recorrente de que a prática de crimes comuns em conexão com os políticos depende da avaliação do contexto em que se realizaram, de modo a saber o que prepondera ou prevalece. Se a delinqüência comum for mais expressiva ou subordinante, afasta-se a natureza política. Se, por outro lado, dominar a intenção política, aplica-se a proibição. E na dúvida? A extradição é indeferida. Isso porque, como assinalou o Ministro Joaquim Barbosa, o processo extraditante visa a proteger o extraditado, não o Estado requerente (Ext.1008/Colômbia).

Nem pretendo trazer em socorro a tese de que a exigência da dupla incriminação para deferimento do processo extraditório é desatendida, se no Brasil já tiver ocorrido a extinção da punibilidade do delito, o que teria se dado em face da anistia a brasileiros e estrangeiros que até 28 de agosto de 1979 cometeram crimes políticos e conexos (Lei 6.683/1979, art. 1º). Por certo, os crimes imputados a Cesare são anteriores a essa data. Mas é preciso cuidado com a nota para que não importe generalização e aceite pleno da recepção constitucional da Lei. Tampouco resolve o problema da distinção entre o terror e política, porquanto o § 2º do artigo 1º expressamente ressalva dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. Mesmo argumentando que as condenações ainda não se haviam ocorrido e, portanto, não há de incidir a exceção, o argumento acaba valendo para os dois lados.

Essa discussão apenas revela a dificuldade de caracterizar um ato como terrorista e sem a natureza política. Os laços entre os dois aspectos transcendem o debate jurídico para anuviar a filosofia política, chegando-se a duvidar, como em Jean-François Gayraud, da possibilidade de defini-los separadamente na grande maioria dos casos. [13] Por essa razão, o entendimento de que ato de terror não é ato político é demasiado duvidoso e simplista. Algo que se assemelha à definição dada por Bernard Bouloc ao crime de terrorismo: uma infração comum submetida a um regime jurídico especial. [14] Ou por Mazzanti que o reduz ao emprego de meios destrutivos para espalhar o desespero no meio social como se não houvesse um interesse de acesso ao poder: "o terrorismo é um ataque indiscriminado contra governos, instituições, organizações, caracterizado pelo uso reiterado e sistemático dos meios violentos contra indivíduos ou grupos e destinado a difundir uma situação de terror e medo". [15]

Essas leituras denotam uma visão marcada por uma ideologia conservadora que reduz o conceito de política à mera forma, conduzindo, por efeito, a uma subjetivação da pena que não leva na devida conta a personalidade do autor. E, pior, corre um sério risco de inefetividade da política criminal adotada e às garantias do Estado democrático de direito como bem revelam os estudos de Danièle Mayer [16] e de Philippe Richard. [17]

Os crimes imputados a Battisti estão imersos no clima de rebelião que dominou os "Anos de Chumbo" na Itália. Não podem, por conseguinte, ser tomados isoladamente como se os PAC (Proletários Unidos pelo Comunismo) fossem um bando de criminosos comuns querendo riqueza ou mera vindita privada.

Livros, documentários, peças teatrais e filmes estão à disposição para demonstrar como o ambiente político italiano se degradou no curso dos anos 1970. Há, no mercado, por exemplo, "Amarcord" de Fellini e "Salò" de Píer Paolo Pasolini que, em linguagens bem diferentes (uma otimista e triunfante; outra, sorumbática e mal-humorada), mostram os descaminhos de uma "Itália Primeiro Mundo" naquele tempo. O quadro de violência aparece sem subtexto no filme de Margarethe Von Trotta, "Anos de Chumbo", merecendo uma conferida. Por sua vez, "Il Divo", do Paolo Sorrentino, ao retratar a vida de Giulio Andreotti, dá-nos as informações da visão dos que estavam no poder àquela época e as maquinações de bastidores que levaram à onda da direita nos dias atuais.

Qualquer manual de história geral, no campo das letras, relata as convulsões do "Anni di Piombo". Em italiano, a bibliografia é farta, refletindo os diversos pontos de vista: da curiosidade, à defesa, à crítica e historiografia daquele período. [178 Deixemos a generalidade. Outra vez ao foco.

A leitura das sentenças condenatórias de Battisti denota, claramente, que os crimes, embora tipificados como terroristas, tinham "carattere più strettamente ‘politico’" (o caráter mais estritamente político), movidos "al fine di sovvertire l’ordinamento dello Sttato"(com o fim de subverter o ordenamento do Estado). Nelas também se registra como os PAC planejavam suas ações, avaliando os riscos e as conseqüências políticas esperadas, com a permanente preocupação de reivindicar a autoria de seus feitos perante os órgãos de imprensa.

Como, então, dizer que os crimes de Battisti foram comuns? Claro que os juízes podem e devem mudar de orientação, quando se derem conta de que o entendimento que possuíam estava equivocado ou foi ultrapassado pela tempestuosidade e dinâmica da vida. Mas será que esses ingredientes estão presentes no caso? Juridicamente, não vemos. Do ponto de vista político, há ainda uma fatura a ser paga se houver o deferimento da extradição: o sentimento de que o Supremo sucumbiu à pressão italiana. Duvido que isso tenha sido sequer ventilado no café das 5 que reúne os Ministros do Tribunal. Será uma injustiça à Corte.

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Sobre o autor
José Adércio Leite Sampaio

Mestre e Doutor em Direito. Professor da PUC/MG e ESDHC. Procurador Regional da República.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, José Adércio Leite. A Cesare o que é de Cesare. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2052, 12 fev. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12322. Acesso em: 5 nov. 2024.

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