INTRODUÇÃO
A edição da Lei Complementar nº. 123, de 14 de dezembro de 2006, implantou no ordenamento jurídico brasileiro o novo Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.
O Estatuto redefiniu as regras aplicáveis às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, estabelecendo como principal critério de enquadramento a receita anual das empresas. Assim, para efeitos da Lei, será considerada Microempresa a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 do Código Civil, devidamente registrados, que possuam receita máxima anual de até R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais); já a Empresa de Pequeno Porte é a que, nas mesmas condições acima, possua receita anual entre R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).
O legislador pátrio também buscou atender a previsão da Constituição da República de 1988, a qual assegurou o tratamento diferenciado e favorecido às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (arts. 170, inc. IX e 179), principalmente, na tentativa de impulsionar a atuação das pequenas empresas no mercado.
Desta forma, além de pertencer essencialmente ao ramo do direito comercial, haja vista disciplinar o regime jurídico das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, o novo Estatuto também adentrou na esfera do direito administrativo, sobretudo por promover uma série de alterações nas regras gerais das licitações públicas, as quais serão discutidas no presente estudo.
Ocorre que o direito administrativo está alicerçado em princípios basilares que sistematizam todo o funcionamento da Administração Pública, notadamente quando se trata da polêmica que envolve as "Licitações Públicas". Neste tema, é fundamental que a sociedade esteja atenta aos comandos legais introduzidos, haja vista significar a gestão administrativa dos recursos públicos arrecadados com inegável sacrifício dos contribuintes.
Sendo assim, não se pode renegar a segundo plano o objetivo primordial da atuação Estatal, qual seja, a satisfação do interesse público, este deve balizar toda a atuação da Administração Pública.
Da análise da Lei Complementar nº. 123/2006, verifica-se a opção legislativa de promover o incentivo às micro e pequenas empresas, por intermédio da execução das despesas públicas, porém, o fato de que tais despesas alcançam vultosos recursos públicos os quais são custeados pela sociedade não deve ser negligenciado.
Com isso, pretende-se despertar o debate acerca da atuação do legislador, no tocante a política empreendida no sentido de incentivar as pequenas empresas e a necessidade de harmonização entre o tratamento diferenciado e favorecido dispensado a este segmento empresarial e os princípios que regem as Licitações Públicas.
Para tanto, será traçado um paralelo entre as Licitações Públicas e o tratamento diferenciado e favorecido às pequenas empresas, de modo a demonstrar se a Lei Complementar nº. 123/2006 apresenta-se como uma alternativa efetiva de desenvolvimento econômico e social, sobretudo por intermédio das contratações realizadas pelo Poder Público.
1. Fundamentos do Sistema Jurídico
É importante delimitar que o sistema jurídico é fundamentado por princípios que constituem o alicerce da construção jurídica positiva, funcionando como estrutura de todo o sistema normativo.
Em um momento posterior, as normas são editadas seguindo as diretrizes traçadas pelos princípios gerais e pela norma fundamental do ordenamento jurídico, de forma que a harmonia do sistema jurídico pressupõe seu fundamento de validade. [01]
Os princípios fundamentam o sistema jurídico, servindo de idéias básicas para a formação das regras do direito positivo e ocupam três funções relevantes: fundamentação, base de interpretação e fonte de supressão de lacunas.
Com isso, pode-se afirmar que todo o Direito Administrativo deverá guardar estreita consonância com os princípios constitucionais dos quais este ramo do Direito é originado, haja vista que toda a construção jurídica e doutrinária deverá estar pautada nas disposições constitucionais que fundamentam o sistema. Da mesma forma, as licitações públicas, além de seguirem as diretrizes constitucionais, ainda deverão estar submetidas aos princípios específicos que orientarão a realização dos processos licitatórios.
2. A Licitação Pública
A construção do conceito de Licitação Pública está pautada inicialmente pelos princípios constitucionais da Administração Pública, quais sejam: Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência.
Nas palavras de Bandeira de Mello [02] a licitação pode ser definida como:
Licitação é o procedimento administrativo pelo qual uma pessoa governamental, pretendendo alienar, adquirir ou locar bens, realizar obras e serviços, outorgar concessões, permissões de obra, serviço ou de uso exclusivo de bem público, segundo condições por ela estipuladas previamente, convoca interessados na apresentação de propostas, a fim de selecionar a que se revele mais conveniente em função de parâmetros antecipadamente estabelecidos e divulgados.
A Lei Federal nº. 8.666/93 fixou logo em seu Art. 3º que através o procedimento licitatório a Administração Pública busca selecionar a proposta mais vantajosa, senão vejamos:
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Assim, observa-se que a expressa determinação legal conduz no sentido de a licitação ser um procedimento administrativo cujo objetivo é selecionar a proposta mais vantajosa, na iniciativa privada, para celebração do contrato de interesse da Administração Pública, respeitando a isonomia entre quaisquer interessados.
É importante acrescentar que a Administração Pública também é regida pelo Princípio da Eficiência, segundo o qual, deverá agir buscando a maximização dos resultados positivos e a satisfação do interesse público.
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro [03]:
O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público".
Assim sendo, o Poder Público realiza certames licitatórios com o objetivo de, através da disputa entre particulares, conseguir na iniciativa privada o máximo de produtos e serviços com o mínimo de recursos orçamentários, proporcionando, com isso, o benefício da coletividade com maior abrangência.
3. Das prerrogativas estabelecidas para as micro e pequenas empresas
A Lei Complementar nº. 123/2006 estabeleceu na Seção Única, do seu Capítulo V ("Do acesso aos mercados"), intitulada "Das aquisições públicas", condições favorecidas às micro e pequenas empresas para contratações com a Administração Pública, por intermédio de licitações públicas. Sinteticamente, tais prerrogativas estão ilustradas abaixo:
1 – Nas licitações, a exigência de comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte será feita apenas para efeito de assinatura do contrato, sendo que por ocasião da participação em certames licitatórios, caso haja restrições fiscais, será assegurado, às micro e pequenas empresas, o prazo de 02 (dois) dias úteis, prorrogáveis por igual período, para a regularização da documentação fiscal exigida;
2 – Nos processos licitatórios será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. A Lei ainda estabelece que serão consideradas empatadas as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte que sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada (empate ficto), desde que esta última não seja também pequena empresa, já na modalidade pregão o intervalo percentual é de 5% (cinco por cento). Ocorrendo o chamado empate ficto, a microempresa ou empresa de pequeno porte poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame;
3 – Realização de processos licitatórios em que a participação será exclusivamente de microempresas e empresas de pequeno porte, no caso de contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
4 – Exigência dos licitantes de subcontratação de microempresa ou de empresas de pequeno porte em não mais do que 30% (trinta por cento) do total licitado, assim como o estabelecimento de cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível;
Quanto às prerrogativas acima elencadas, pode-se depreender uma série de críticas acerca dos objetivos alcançados pela Lei Complementar nº. 123/2006.
Primeiramente, para regularização da documentação fiscal exigida, a pequena empresa disporá do exíguo prazo de 02 (dois) dias úteis, podendo ser prorrogado por igual período.
A escassez de tal prazo parece não refletir a morosidade da Administração Tributária que será enfrentada pelo empresário para a obtenção da certidão de regularidade fiscal, exigida na licitação. Deve-se atentar que os recursos informatizados para obtenção da certidão estão disponíveis apenas para os contribuintes que não possuem restrições fiscais, os quais serão naturalmente habilitados na licitação. Já as pequenas empresas que possuírem restrições fiscais necessariamente precisarão comparecer perante a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal para regularização da situação, o que certamente demandará ao pequeno empresário enfrentar filas de espera, retirar senhas de atendimento, pagar boletos de débito em bancos, aguardar prazo para emissão da certidão, dentre outros obstáculos burocráticos a serem superados.
Ademais, é importante frisar que as atividades da pequena empresa não poderão ser suspensas, ou seja, os demais compromissos e obrigações deverão continuar a serem cumpridos e tais atividades certamente exigirão o envolvimento do empresário, aquele mesmo empresário que terá 02 (dois) dias úteis para regularizar sua empresa perante o fisco.
Como se pode anotar, certamente a previsão legal encontra-se distante da realidade da pequena empresa brasileira e dos entraves burocráticos existentes na Administração Tributária.
Em segundo lugar, a preferência de contratação de pequenas empresas em caso de empates parece aproveitar apenas as situações em que haveria um sorteio.
Isto porque, tomando como exemplo o Governo Federal, no qual a modalidade de licitação mais utilizada é o Pregão [04], destaca-se que esta modalidade é caracterizada pela oferta de lances sucessivos e inferiores a melhor proposta, ou seja, um típico "leilão ao contrário". Assim sendo, no caso da modalidade Pregão, a disputa de preços é conduzida pelo Pregoeiro até que os licitantes não ofertem lances inferiores ao último menor lance recebido e classificado.
Curioso é que, encerrada a etapa de lances, ou seja, após toda a disputa de preços que culminou com um licitante vencedor, a pequena empresa com preço imediatamente superior, (obviamente superior, posto que senão seria ela a vencedora da disputa de lances), segundo a Lei, é convocada para propositura de novo lance inferior ao melhor colocado para que então seja declarada vencedora.
Em outras palavras, o Pregoeiro, em conformidade com a Lei Federal nº. 10.520/02, abre a oportunidade para que a pequena empresa oferte lance inferior ao melhor lance classificado, a empresa declina da oferta (certamente por já haver atingido o seu limite final de preço), o Pregoeiro então a convoca (caso o último lance da pequena empresa seja superior em até 5% do lance vencedor), em decorrência da Lei Complementar nº. 123/2006, para que a pequena empresa apresente nova oferta inferior ao lance vencedor como forma de desempate do certame.
Pergunta-se: Por que razão a pequena empresa ofertaria lance inferior ao primeiro colocado se teve oportunidade de fazê-lo e não o fez?
Teoricamente, no caso do Pregão, as empresas disputam preços até o limite de cada uma delas. A não ser que a pequena empresa abstenha-se de efetuar lances desde o início da disputa de modo a permanecer com sua proposta em até 5% do lance vencedor. Assim, o licitante detentor do melhor lance não encontrará adversários na disputa e será o vencedor da fase de lances. No entanto, a pequena empresa será convocada para o desempate, segundo o Estatuto, e nesta situação apresentará nova proposta.
Observa-se uma flagrante burla aos objetivos do certame licitatório, posto que não há disputa de preços em virtude da conduta da pequena empresa de evitar a contenda, restando unicamente ao Pregoeiro a adoção de providências imediatas para coibir este tipo de prática, de forma a sempre buscar privilegiar no Pregão a disputa entre os licitantes.
Outra prerrogativa introduzida pela Lei Complementar nº. 123/2006 é a realização de certames licitatórios, no valor até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), em que a participação é exclusiva de micro e pequenas empresas.
Neste ponto, há que se ressaltar que tal previsão legal ensejou que, apenas entre outubro de 2007 e fevereiro de 2008, o Governo Federal contratasse quase R$ 1,3 bilhão, contemplando cerca de 6,3 mil micro e pequenas empresas. É importante citar que a participação das micro e pequenas empresas nas compras do Governo Federal aumentaram de R$ 2 bilhões em 2006 para R$ 9,5 bilhões em 2007 [05].
Em um primeiro momento os números apresentados seduzem o leitor, porém, o Brasil possui 5.564 municípios, segundo o IBGE, além disso, existiam, somente em dezembro 2006, cerca de mais de 5 milhões de micro e pequenas empresas no Brasil, ou seja, cerca de 96% (noventa e seis por cento) das empresas formalmente constituídas no país estão enquadradas como Microempresas e Empresas de Pequeno Porte. [06]
Com isso, pode-se facilmente concluir que o aclamado "acesso aos mercados" beneficiou apenas 0,12% (doze décimos por cento) das pequenas empresas existentes no país, o que pode ser considerado um número irrisório.
Pode parecer que o efeito causado pela Lei Complementar nº. 123/2006 seja exatamente o contrário, qual seja, a limitação do mercado a poucas pequenas empresas que participam de licitações públicas (ou até mesmo que são constituídas apenas com este fim), de tal sorte que a Administração Pública poderá estar suportando o ônus de sacrificar a economicidade em certames licitatórios restritos, sem que esteja alcançando o objetivo de proporcionar o acesso aos mercados às pequenas empresas.
Outra medida apresentada pelo legislador, por intermédio da Lei Complementar nº. 123/2006, é a exigência de subcontratação de micro e pequenas empresas para o cumprimento do objeto do contrato firmado com a Administração Pública.
Tal medida, sequer preocupa-se com as condições a serem subcontratadas, o Poder Público poderá estar diante de preços excessivos e desvantajosos praticados pelas pequenas empresas.
Aspecto importante a ser considerado também diz respeito aos requisitos para que a subcontratação seja efetivada, ou seja, a pequena empresa estaria celebrando um contrato diretamente com a Administração Pública, de até 30% (trinta por cento) do valor do objeto, sem que houvesse participado de uma licitação para tal fim.
Esta subcontratação pode significar milhares de reais e será que não haverão outras pequenas empresas interessadas no subcontrato? Que tipo de negociações paralelas serão empreendidas para a conquista deste subcontrato?
Trata-se de uma previsão legal que expõe demasiada e desnecessariamente os princípios da impessoalidade, da moralidade e da isonomia. Princípios estes basilares na conduta do gestor público e da Administração Pública.
Além disso, a análise das medidas de incentivo às pequenas empresas, contidas na Lei Complementar nº. 123/2006, permitem concluir que em prol das pequenas empresas o Poder Público acaba por se afastar da seleção da proposta mais vantajosa, onerando os cofres públicos em benefício de pequenos empresários, seja por realizar certames licitatórios somente com pequenas empresas, em prejuízo de uma disputa realizada em todo o mercado, ou então por efetuar subcontratações em detrimento de condições mais vantajosas que poderiam ser alcançadas.
Neste diapasão, a contratação de pequenas empresas, com o intuito de incentivar o desenvolvimento das mesmas, não necessariamente poderá representar o alcance dos melhores resultados na prestação do serviço público, sobretudo pelo fato de que a necessidade pública poderá ser complexa e exigir a estruturação tecnológica adequada do empresário para satisfação da demanda da população.
Não é demais relembrar que a Licitação Pública deve ser realizada em proveito da Administração Pública e não com o intuito de financiar o desenvolvimento de determinado segmento empresarial, posto que não se trata de instrumento adequado para o fomento de atividades particulares.
Por todo o exposto, conclui-se que o legislador pátrio não andou bem em estabelecer prerrogativas em licitações públicas, às pequenas empresas, como forma de incentivar o desenvolvimento destas perante a sociedade.
4. Da experiência internacional na promoção de incentivos em licitações para pequenas empresas [07]
A iniciativa da legislação brasileira em promover incentivos e realizar licitações para pequenas empresas não é inédita. A legislação pátria é inspirada no modelo norte-americano do chamado "small business"
Os Estados Unidos da América (EUA) são pioneiros em estabelecer regras para a contratação de pequenas empresas pelo governo. Atualmente, nos EUA, existe uma agência reguladora independente que regula o mercado, a "The U.S. Small Business Administration (SBA)".
A experiência internacional demonstra que o principal problema advindo do estabelecimento de regras de incentivo às pequenas empresas, no que tange às contratações públicas, está relacionado com a criação de empresas de "fachada" para usufruírem os benefícios assegurados em lei.
Pequenos grupos de empresários constituem empresas por intermédio de compra de cotas de capital dentro das pequenas empresas, do desmembramento de uma empresa maior, da inclusão de sócios comuns ou da subcontratação irregular, além de cadastro como pequenas empresas de empresas que não preenchiam os requisitos para tal.
A título de ilustração do problema, nos Estados Unidos, de 2000 a 2005, foram desviados mais de U$ 100 bilhões que seriam oriundos de incentivos destinados às pequenas empresas.
Há que se ressaltar que nos EUA existe uma agência independente com o objetivo de regular este segmento da economia e a Liga da Pequena Empresa Americana (The American Small Business League – ASBL) ainda busca a aplicação de penalidades aos infratores.
Este problema não se encontra resolvido no país mais rico do mundo e o Brasil começa a implementar uma legislação bastante semelhante. Diferenças conjunturais à parte, é de se ter receio de que os problemas enfrentados nos EUA também sejam experimentados pelo ordenamento jurídico pátrio.