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ONGs: relações com o Estado e o novo marco legal

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06/03/2009 às 00:00
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5.A realidade atual: as parcerias com entidades sem fins lucrativos no Brasil.

Sem prejuízo dessa análise ou da escolha de uma ou outra política, que estão longe de serem estanques, as ONGs podem ser e, na prática, são parceiras do Estado para o desenvolvimento de projetos sociais, com ou sem aporte de recursos públicos. Esse aspecto não constitui, por si, fato comprometedor da independência das entidades. É, sem dúvida, de grande valor público que ONGs possam continuar a exercer seu papel de complementar a ação do Estado.

Algumas ONGs preferem recusar parcerias com o Estado, sob o argumento de que elas significariam a perda de autonomia e de sua própria identidade. Para os que sustentam essa tese, manter vínculos muito estreitos com o Estado poderia representar a participação das ONGs em um eventual comportamento de desobrigação governamental com políticas públicas eficazes.

Seja como for, é necessário critérios prévios para a escolha das políticas públicas que serão executadas mediante parcerias com ONGs, bem como das ONGs que serão parceiras e receberão recursos públicos. Além disso, inclusive previamente, é necessária a fiscalização da sociedade e dos órgãos governamentais competentes, para que seja garantida não só a lisura nas aplicações de recursos públicos, a adequação técnica das iniciativas e, sobretudo, para que os objetivos sociais sejam efetivamente atingidos.

Essas afirmações não são originais, já tendo sido constadas em fóruns, seminários e Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) realizadas no âmbito do legislativo federal. Conforme consta do relatório final, a própria CPI criada no Senado Federal pelo Requerimento nº 22, de 19 de fevereiro de 2001, "com objetivo de apurar as denúncias veiculadas pela imprensa a respeito da atuação irregular de Organizações Não-Governamentais – ONGs", verificou que

Há ONGs que sequer possuem sede ou endereço certo e conseguem viabilizar emendas orçamentárias, receber abundantes recursos financeiros do erário e aprovar prestações de contas sumárias junto ao órgão repassador.

E mais:

Cabe enfatizar neste ponto que muitas ONGs são, na verdade INGs. Em vez de serem "organizações não-governamentais", são, isso sim, "indivíduos não-governamentais". São indivíduos que encontraram uma forma criativa de garantir o próprio emprego. Daí a pergunta inevitável: como é possível a alguns indivíduos criar organizações para recepcionar abundantes recursos públicos e, com isso, pagar salários a si e a outrem?

Por ocasião do 2º Fórum Senado Debate Brasil, com o tema "Terceiro Setor – Cenários e Perspectivas", realizado nos dias 29 e 30 de novembro de 2006, foi ressaltado por vários oradores a importância das ONGs como parceira na execução de políticas públicas.

A título de exemplo, o Senador Efraim Morais, após enfatizar que parte significativa do Produto Interno Bruto é gerada por ONGs, concluiu sua explanação com as seguintes palavras:

não temos soluções melhores para pôr fim às desigualdades sociais neste País e retomar o desenvolvimento sem a colaboração das entidades do Terceiro Setor.

Por outro lado, o Ministro Guilherme Palmeira, do Tribunal de Contas da União, após mencionar o incremento de parcerias onerosas entre o Estado e o Terceiro Setor, assim se manifestou:

De outra parte, trago aos senhores a minha preocupação quanto à necessidade de ser discutida e aprovada pelo Congresso Nacional, com a urgência requerida, a legislação que com o rigor devido venha a disciplinar a instituição, o funcionamento e o controle das ONGs.

A esse respeito, interessante as ponderações do Prof. Lucas Furtado, membro do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, em depoimento prestado em 25 de outubro de 2007 à Comissão Parlamentar de Inquérito, criada pelo Senado Federal em virtude do Requerimento nº 201, de 2007 ("CPI das ONGs"), ao criticar o excesso de discricionariedade hoje existente, [08] que é parte do "vazio legislativo" acima mencionado:

O que temos aqui Sr. Presidente, Sr. Relator, é o seguinte quadro: a legislação brasileira define, por exemplo, que para a Administração Pública contratar, por exemplo, computadores no valor de cem mil reais, o que para a Administração Pública Federal seria um contrato considerado muito pequeno, de pequeno porte, é obrigado a publicar edital, a permitir que todos os possíveis interessados apresentem propostas, a julgar essas propostas por meio de critérios objetivos de publicidade. Se invés de falarmos de um contrato para uma compra de cem mil reais falamos aqui de um repasse no valor de dez milhões de reais, de cem milhões de reais para um programa cuja a execução permita uma parceria com uma ONG, eu tenho o seguinte quadro: total e absoluta discricionariedade. Ou seja, se a Petrobrás, se a FUNASA, se o Ministério da Educação ou da saúde dispõe de verbas cuja execução pode ser feita em parceria com uma ONG, escolhe-se a ONG que se quiser. Quem quiser reclamar, reclame, quem quiser achar ruim, que ache. Não há juridicamente, até hoje, como impugnar.

A respeito da existência de controles e da questão da diferença de critérios e mecanismos de controle exercidos pelos vários Ministérios, o Ministro Jorge Hage assim se manifestou, por ocasião da 6ª Reunião da "CPI das ONGs", realizada em 30 de outubro de 2007, ocasião em que destacou a necessidade de aprimoramento dos mecanismos atuais:

Existe controle sim, com todas as fragilidades e deficiências da máquina pública que sempre existiram e vem melhorando sim a olhos vistos os controles existentes, embora ainda muito longe de chegar ao ideal que nós queremos. Existem tantos controles que o mais freqüente que nós ouvimos das ONGs são reclamações quanto aos excessos de exigências. Um dos tipos de audiência que eu mais concedo é a dirigentes de ONGs que vêm reclamar das excessivas exigências de alguns auditores ou de alguns gestores em Ministérios. (...) De modo que não é verdade que não há controle algum. Há controle sem a menor dúvida que precisa ser aperfeiçoado e está sendo.


6.A nova regulamentação efetuada pelo Poder Executivo Federal para aprimorar o regime atual: a Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008.

De fato, um certo aperfeiçoamento dos mecanismos de controle preconizado pelo Ministro Jorge Hage ocorreu. Em 2008, foi editada a Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 127, de 29 de maio de 2008, que estabelece normas para a execução do Decreto nº 6.170, de 25 de julho de 2007, a respeito das parcerias e transferências de recursos para entidades sem fins lucrativos.

O grande mérito da Portaria nº 127/2008 foi ter incorporado no texto várias decisões e recomendações do Tribunal de Contas da União (TCU). Sob esse aspecto, a Portaria nº 127/2008 tem vários pontos em comum com anteprojeto do novo marco regulatório das relações entre o Estado e o Terceiro Setor, que foi apresentado pelo Relator da "CPI das ONGs", Senador Inácio Arruda, em 1º/4/2008.

A Portaria nº 127/2008 estabelece a necessidade de existir pertinência temática entre as atividades a serem executadas em parceria com as finalidades da ONG constantes de seus estatutos e descrição pormenorizada de cláusulas obrigatórias (art. 30). Aumenta o nível de transparência quanto aos atos e procedimentos de formalização, alteração, execução, acompanhamento, liberação de recursos e prestação de contas dos convênios e contratos de repasse, mediante utilização do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse (SICONV), disponível para consulta pública (art. 3º e 34).

Exige a Portaria nº 127/2008 justificativa para celebração da parceria, com descrição do objeto a ser executado, metas a serem atingidas, etapas ou fases de execução definidas com respectivo cronograma de transferência dos recursos (art. 21), bem como deve ser demonstrada a regularidade fiscal, perante o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e em relação a recursos anteriormente recebidos da União (art. 24).

A Portaria nº 127/2008 estabelece balizas para utilização dos recursos públicos em despesas administrativas da ONG (art. 39, parágrafo único) e dispõe de forma mais clara quanto à contratação de terceiros por parte da ONG que receber verbas públicas: necessidade, como regra geral, de cotação prévia de preços, observados os princípios especificados, ou de pesquisa de mercado, bem como de inclusão no SICONV dessas operações (arts. 45 a 47 e 50). Impõe responsabilidade do agente público pela fiscalização e execução da parceria (art. 51), bem como pela exigência de prestação de contas (art. 60).

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Infelizmente, porém, a Portaria nº 127/2008, não abrange os termos de parceria celebrados com Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), nem o contrato de gestão celebrado com Organização Social (OS). Isso não é nenhuma novidade, já que predominava o entendimento de que a mencionada Instrução Normativa STN nº 1/1997 também não se aplicava a essas modalidades de parceria com regime jurídico previsto nas leis específicas acima mencionadas.


7.O que ainda precisa ser feito: a necessidade de uma lei nacional. Perspectivas.

A Portaria nº 127/2008 somente se aplica à Administração Federal. É preciso que seja editada lei de caráter nacional a respeito de normas gerais para parcerias entre o Poder Público e as entidades do Terceiro Setor, que também serão aplicáveis aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Além disso, há outros aspectos que devem constar da nova lei, que não foram abordados pela Portaria nº 127/2008.

Em primeiro lugar, a criação de um marco abrangente para as parcerias celebradas com ONGs deve incluir os termos de parceria celebradas com OSCIPs, sob pena desse regime continuar com as regras flexíveis atuais, que comprovadamente são ineficazes para a proteção do dinheiro público e obtenção dos resultados almejados.

É preciso estabelecer, como regra geral, que a realização de chamamento público ou concurso de projetos para celebração de parceria com ONG é obrigatória e não apenas facultativa.

Deve estar expresso na lei a possibilidade de a Administração Pública assumir a execução e os contratos relativos à atividade que, embora tenha sido objeto de parceria, não está sendo corretamente executada pela entidade parceira ou por pessoa por ela contratada para atividades relacionadas.

É necessário estabelecer critérios definidores de responsabilidade civil para as ONGs e para os dirigentes de ONGs que descumprirem as regras estabelecidas ou não executarem a parceria pactuada, bem como criar mecanismos processuais para aumentar o grau de efetividade da cobrança judicial dessa responsabilidade, fazendo com que o dinheiro que foi indevidamente utilizado seja ressarcido aos cofres públicos.

Esses aspectos estão contemplados no anteprojeto apresentado pelo Senador Inácio Arruda no dia 1º/4/2008, por ocasião da 16ª Reunião da "CPI das ONGs".


8.Conclusões.

No que se refere à organização e funcionamento das entidades sem fins lucrativos, matéria de direito privado, é possível avançar quanto a aspectos pontuais ou excepcionais. Exemplos disso é a possibilidade de criação de regras específicas para o funcionamento de ONGs estrangeiras ou controladas por estrangeiros, ou para atuação de qualquer ONG em setores estratégicos para o Brasil, como pesquisas em terras indígenas, reservas ecológicas ou faixas de fronteira; ações de educação, inclusive catequização, ou certos tipos de assistência social, assessoria ou organização de índios, de grupos ou de povos indígenas. Porém, não há necessidade de criação de um marco regulatório novo ou uma regulação abrangente ou revolucionária, pois a matéria já se encontra disciplinada de forma ampla e genérica no Código Civil.

Por outro lado, no tocante à relação das entidades sem fins lucrativos com o Poder Público, que é matéria de direito administrativo, a questão é grave, inexistindo regulação geral adequada.

É preciso avançar na estruturação e na criação de mecanismos para que o Estado possa conseguir fiscalizar e verificar a efetividade dos convênios celebrados (incluindo no alcance do vocábulo "convênio" as modalidades com regramento específico, como "Termo de Parceria" e "Contrato de Gestão"), o que também depende de um marco regulatório novo e abrangente.

A legislação atual não prevê a existência de mecanismos eficazes de controle prévio e de seleção pública das entidades que receberão recursos públicos, de regras detalhadas para elaboração e aprovação de plano de trabalho, de meios de fiscalização da execução do objeto da parceria com a entidade, de sanções para agentes públicos e dirigentes de entidades que derem causa a malversação de recursos públicos, bem como de meios mais efetivos para a recuperação das verbas indevidamente utilizadas.

Essa normatização é urgente e deve contemplar esses diversos aspectos, para que seja atingido o interesse público que deve fundamentar a ação das ONGs em parceria com o Estado. A despeito dos grandes avanços na área federal com a Portaria nº 127/2008, a necessidade de uma lei nacional permanece, inclusive porque certos aspectos somente podem ser objeto de lei geral de caráter nacional.

Portanto, é preciso que seja criado um marco regulatório abrangente das relações entre o Estado e as ONGs, na forma de uma lei nacional. Isso foi levantado pelo Senador Inácio Arruda, relator da "CPI das ONGs", que apresentou no dia 1º/4/2008 um anteprojeto para servir de base para a necessária discussão aprofundada do tema.


Notas

  1. SILVA, Bruno Mattos. Direito administrativo para concursos. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 196.
  2. "As distorções e ineficiências, que daí resultaram, deixaram claro, entretanto, que reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado. Daí, a generalização dos processos de privatização de empresas estatais. Neste plano, entretanto, salientaremos um outro processo tão importante quanto, e que, entretanto, não está tão claro: a descentralização para o setor público não-estatal da execução de serviços que não envolvem o exercício do poder de Estado, mas devem ser subsidiados pelo Estado, como é o caso dos serviços de educação, saúde, cultura e pesquisa científica. (...) Desse modo, o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor destes, principalmente dos serviços sociais como educação e saúde (...) Como promotor desses serviços, o Estado continuará a subsidiá-los (...), buscando, ao mesmo tempo, o controle social direto e a participação da sociedade." (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília, 1995, p. 4 e 5)
  3. Vide: http://www.brunosilva.adv.br/subprime_sfh_brasil_posse.htm
  4. CAMPOS, Roberto. Antologia do bom senso. Rio de Janeiro: Topbooks, Bolsa de Mercadorias & Futuros, 1996, p. 154.
  5. CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: a história que vivi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 563.
  6. CARDOSO, Fernando Henrique. A arte da política: a história que vivi. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 564.
  7. CAMPOS, Roberto. Antologia do bom senso. Rio de Janeiro: Topbooks, Bolsa de Mercadorias & Futuros, 1996, p. 266.
  8. SILVA, Bruno Mattos. Direito administrativo para concursos. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 200.
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Sobre o autor
Bruno Mattos e Silva

Bacharel em Direito pela USP. Mestre em Direito e Finanças pela Universidade de Frankfurt (Alemanha). Foi advogado de empresas em São Paulo, Procurador-chefe do INSS nos tribunais superiores, Procurador Federal da CVM e Assessor Especial de Ministro de Estado. Desde 2006 é Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de direito empresarial, de regulação, econômico e do consumidor. Autor dos livros Direito de Empresa (Ed. Atlas) e Compra de Imóveis (Edi. Atlas/GEN).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Bruno Mattos. ONGs: relações com o Estado e o novo marco legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2074, 6 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12408. Acesso em: 19 abr. 2024.

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