3. A NECESSIDADE DE VINCULAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DIFUSO E SUA MAIOR COERÊNCIA COM O SISTEMA JURÍDICO.
Atualmente, como vimos, há um predomínio do Poder Judiciário na importante função de interpretação constitucional ao reverso do estabelecido na Carta Imperial, que atribuía tal competência à Assembléia Geral (art. 15, IX, CI). Neste sentido, em tempos hodiernos, a Carta Soberana tem, dentro da estrutura daquele poder, um guardião, o qual exerce em última análise a proteção constitucional.
O Supremo Tribunal Federal, então, tem a atribuição precípua de defender a Lex Legum competindo-lhe o julgamento do controle de constitucionalidade abstrato, cujo efeito é vinculante e para todos bem como do controle difuso definitivamente onde a coisa julgada atinge apenas as partes [53]. Portanto, no Brasil, a última decisão sobre a constitucionalidade ou não das normas é proferida por aquela Corte.
Há de ser ressaltado, outrossim, que em determinadas situações, ainda que a norma seja considerada abstratamente constitucional, à luz da situação concreta sua aplicação seria inconstitucional. Neste sentido, ganha relevância a técnica da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto já que naquela hipótese discutida a aplicação da norma seria inconstitucional.
Assim, é imprescindível a utilização da máxima da proporcionalidade – elevada ao status constitucional – e a lei das colisões estudadas por Robert Alexy. Este autor germânico formulou a citada lei com objetivo de solucionar as antinomias entre princípios. Para ele, inclusive, princípios e regras não se confundem justamente porque em "um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras é declarada inválida"; já "as colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem (...) um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face de outro sob determinadas condições." [54]
Neste diapasão, o mestre de Kiel estabeleceu a lei de colisões com a seguinte fórmula: (P1P P2)C, ou seja, um princípio (P1) deverá prevalecer (P) a outro princípio (P2) em determinadas condições (C). Além disso, estruturou a proporcionalidade e suas máximas parciais (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). A proporcionalidade em sentido estrito, afirma o autor, é justamente a "exigência de sopesamento" – nos termos da lei de colisões -, decorrente da relativização em face das possibilidades jurídicas. Defende a existência de adequação, por sua vez, quando o meio possa atingir determinado objetivo. Por fim, é na máxima da necessidade que o autor trata da impossibilidade de utilização de determinada medida, ainda que adequada. Neste sentido, Alexy traz a seguinte questão:
O Estado fundamenta a persecução do objetivo Z com base no princípio P1 (ou Z é simplesmente idêntico a P1). Há pelo menos duas medidas, M1 e M2, para realizar ou fomentar Z, e ambas são igualmente adequadas. M2 afeta menos intensamente que M1 – ou simplesmente não afeta – a realização daquilo que uma norma de direito fundamental com estrutura de princípio – P2 – exige. Sob essas condições, para P1 é indiferente se se escolhe M1ou M2. Nesse sentido, P1 não exige que se escolha M1 em vez de M2, nem que se escolha M2 em vez de M1. Para P2, no entanto, a escolha entre M1 e M2 não é indiferente. Na qualidade de princípio, P2 exige uma otimização tanto em relação às possibilidades fáticas quanto em relação às possibilidades jurídicas. No que diz respeito às possibilidades fáticas, P2 pode ser realizado em maior medida se se escolhe M2 em vez de M1. Por isso, pelo ponto de vista da otimização em relação às possibilidades fáticas, e sob a condição de que tanto P1quanto P2sejam válidos, apenas M2 é permitida e M1 é proibida [55].
Diante disso, importando esses ensinamentos para o âmbito do controle de constitucionalidade nos casos em que é imprescindível a ponderação para aferir a harmonia constitucional do dispositivo no caso concreto, quando o Supremo Tribunal Federal – repita-se, Guardião Máximo da Constituição – decide pela prevalência de determinado princípio (P1) diante de determinadas condições (C) declarando, pois, a inconstitucionalidade de uma medida (M1) por não ser necessária e, por isso mesmo, desproporcional, estabelece que a outra medida (M2) é a aplicável àquele caso concreto, por ser apenas essa Constitucional (razoável). Evidente, portanto, que em outra demanda, diante das mesmas condições (C), relativa à colisão entre os mesmos princípios (P1 e P2), a medida adequada, necessária e proporcional (M2) é que deve ser aplicada, já que, nestas situações (C), o protetor da Constituição já afirmou a norma que regerá o caso (P1) bem como a inconstitucionalidade da medida não razoável (M1).
Neste sentido, vislumbra-se uma maior coerência do sistema jurídico com a vinculação da fundamentação da decisão do STF em controle de constitucionalidade difuso. Não se pode falar em congruência, nem mesmo em segurança jurídica, se qualquer magistrado, diante da declaração de inconstitucionalidade pela Corte Constitucional de determinada medida (M1) em certas condições (C), a declarasse constitucional naquelas mesmas condições (C). Ademais, sem embargo da forma incidenter tantum da tutela de constitucionalidade ser realizada por qualquer magistrado, como vimos, a última decisão sobre tal harmonia é do Supremo Tribunal de modo que sua decisão deve, sim, vincular todos os magistrados diante das mesmas condições.
É verdade, conforme enfatiza Canotilho, que "o controle abstrato de normas pressupõe a separação entre Prüfungsrecht («direito de fiscalização») e Verwerfungskompetnz («competência de rejeição»)":
O direito de fiscalização judicial é, no fundo, um poder-dever de todos os tribunais e que consiste em os juízes controlarem a validade das leis na sua aplicação ao caso concreto que lhes compete decidir. A competência para rejeição de normas pressupõe a fixação, com efeitos gerais, da inconstitucionalidade de uma norma, o que, naturalmente, implica um controlo concentrado num tribunal (...) O controlo com efeitos inter partes corresponde à clássica judicial review: os juízes exercem o seu Prüfungsrecht («direito de prova», direito de «fiscalização», direito de «exame») e controlam a validade da norma ou normas incidentes na solução do caso concreto. O controlo com eficácia erga omnes é próprio do controlo concentrado e corresponde ao exercício de uma Verwerfungskompetnz («competência de rejeição») [56].
Ora, sendo, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal o sujeito competente para a realização do controle concreto e abstrato – por isso possuindo tanto o Prüfungsrecht como o Verwerfungskompetnz – a fundamentação da decisão na forma difusa de tutela constitucional, relativa à constitucionalidade da norma, poderá vincular em razão de sua competência de rejeição. Portanto, como o STF pode, em controle de constitucionalidade concentrado dar efeitos erga omnes à sua decisão, nada obsta a vinculação da sua motivação - acerca da constitucionalidade - diante do caso concreto.
Tal entendimento, vale dizer, não seria novidade já que muitos ordenamentos de outros países positivaram expressamente o citado efeito. Assim, a Norma das Normas Lusitana, em seu artigo 281.°/3 estabelece que "o Tribunal Constitucional aprecia e declara ainda, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de qualquer norma, desde que tenha sido por ele julgada inconstitucional ou ilegal em três casos concretos".
Vale ressaltar, por conseguinte, que no Direito Constitucional brasileiro se tem caminhado para uma nova forma de tutela da constitucionalidade das leis e atos normativos: um verdadeiro controle misto. Isso porque a forma incidental tem passado por uma série de transformações aproximando-se da principal. Neste contexto, o recurso extraordinário começa a ser analisado do ponto de vista objetivo diante da significativa importância da função criativa da jurisdição e da teoria dos precedentes mesmo nos países que adotaram o sistema romano-germânico (civil law) – vide as súmulas vinculantes e impeditivas de recurso. Não se pode olvidar, também, do novo pressuposto de admissibilidade deste recurso introduzido pela emenda constitucional n°45, de 30 de dezembro de 2004, (repercussão geral) e a sua contribuição na objetivação do controle difuso. Assim, nítida a maior coerência da vinculação da fundamentação do acórdão do STF neste controle e a "nova" interpretação ao art. 52, X da CR.
3.1. A Função criativa da jurisdição - Refletindo sobre a teoria do precedente (a ratio decidendi):
A jurisdição tem sido caracterizada por imparcial, imperativa, secundária, instrumental; contudo, atualmente, a função que tem ganhado maior relevância no estudo da atividade jurisdicional, sem dúvidas, é a criatividade. Com o neoconstitucionalismo o paradigma estatal deixou de ter como centro o Poder Legislativo (Estado Legislativo de Direito) possuindo, na realidade, a Constituição. Diante disso, a função jurisdicional, como vimos, ganhou significativa importância de modo a criar a norma jurídica do caso concreto bem como, em certas hipóteses, a sua regra abstrata.
Vale destacar, também, que o Poder Judiciário não pode se eximir de julgar os conflitos – princípio da inafastabilidade (Verbot der Justizverweigerung). Sendo impossível admitir a possibilidade de previsão de todos os litígios pelo legislador, portanto, em certas situações, ao lado da norma individual do caso concreto presente no dispositivo da sentença, é a atividade jurisdicional que estabelece a norma geral para tutelar esses casos. Essa norma geral do caso concreto, que está na fundamentação da decisão, é a regra que sustenta o julgado, ou seja, alcança-se a norma individual por derivação dela. Ela é geral porque pode ser utilizada, inclusive, em outras situações semelhantes (precedente judicial). Nas hipóteses levadas ao judiciário relativas à homoafetividade, por exemplo, é o próprio Poder Judiciário que cria a norma jurídica geral do caso concreto que será utilizada noutros casos semelhantes, principalmente, em razão do silêncio legislativo.
Diante disso, o magistrado, após examinar a viabilidade da aplicação da lei, verificar a sua compatibilidade constitucional e realizar a regra de sopesamento dos direitos fundamentais utilizando a máxima parcial da proporcionalidade em sentido estrito, cria a tese jurídica a qual fundamenta o decisum. Neste passo, os motivos determinantes desse julgamento, como vimos, é a norma jurídica geral criada, a qual pode ultrapassar aquela relação processual atingindo outros casos. Assim, atualmente a função jurisdicional não apenas identifica a lei reguladora do caso e a aplica; na realidade, elabora a norma jurídica. Neste caminhar, "se nas teorias clássicas o juiz apenas declarava a lei ou criava a norma jurídica individual a partir da norma geral, agora ele constrói a norma jurídica a partir da interpretação de acordo com a Constituição, do controle de constitucionalidade e da adoção da regra do balanceamento (ou regra da proporcionalidade em sentido estrito dos direitos fundamentais do caso concreto)" [57].
É importante conferir os escólios do professor baiano Fredie Didier Jr. acerca dessa criatividade jurisdicional:
Quando o juiz dá uma interpretação à lei conforme à Constituição ou reputa inconstitucional, ele cria uma norma jurídica para justificar sua decisão. A expressão "norma jurídica" aqui é utilizada num sentido distinto daquele utilizado linhas atrás. Não se está referindo aqui à norma jurídica individualizada (norma individual) contida no dispositivo da decisão, mas à norma jurídica entendida como resultado da interpretação do texto da lei e do controle de constitucionalidade exercido pelo magistrado.
Como se disse, ao se deparar com os fatos da causa, o juiz deve compreender o seu sentido, a fim de poder observar qual a lei que se lhes aplica. Identificada a lei aplicável, ela deve ser conformada à Constituição através das técnicas de interpretação conforme, de controle de constitucionalidade em sentido estrito e de balanceamento dos direitos fundamentais. Nesse sentido, o julgador cria uma norma jurídica (= norma legal conformada à norma Constitucional) que vai servir de fundamento jurídico para a decisão a ser tomada na parte dispositiva do pronunciamento. É nessa parte dispositiva que se contém a norma jurídica individualizada, ou simplesmente norma individual (= definição da norma para o caso concreto; solução da crise de identificação). A norma jurídica criada e contida na fundamentação do julgado compõe o que se chama de ratio decidendi, as razões de decidir (...) Trata-se de "norma jurídica criada diante do caso concreto, mas não uma norma individual que regula o caso concreto", que, por indução, pode passar a funcionar como regra geral, a ser invocada como precedente judicial em outras situações. [58]
Assim, em sede de controle de constitucionalidade difuso, quando as técnicas de interpretação conforme são realizadas pelo Protetor Supremo da Constituição (STF) a sua decisão acerca da (in)constitucionalidade é a norma jurídica criada. Esta regra – oriunda da função criativa da jurisdição do órgão de cúpula do Poder Judiciário e guardião máximo da Constituição – funcionará como regra geral, devendo (este precedente) vincular as demais situações diante das mesmas condições. Ora, tendo a norma jurídica sido criada pelo Supremo Tribunal Federal, os magistrados, diante de casos semelhantes, deverão utilizá-la, já que esta regra foi gerada pelo Tribunal que tem atribuição fundamental de aferir a constitucionalidade das leis e atos normativos. Deste modo, não poderia um juiz, diante de um caso concreto equivalente, ignorá-la decidindo sobre a constitucionalidade de modo diverso daquele julgado pelo STF, pois isso geraria insegurança jurídica e incoerência do ordenamento. Não há como imaginar ser uma lei inconstitucional para o Guardião Supremo da Constituição (STF) e constitucional para um magistrado de primeiro grau.
Neste diapasão, esta "decisão judicial tomada à luz do caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos" [59] proferida pela Corte Constitucional, conforme a doutrina especializada, pode ser criativo, quanto ao conteúdo, porque além de aplicar a norma jurídica, a cria. De outro lado, existem os precedentes declarativos que apenas constatam a pré-existência de uma norma jurídica e a aplica – é o que ocorre, e.g., quando a sentença está em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal o que viabiliza, inclusive, o não recebimento do recurso de apelação (vide art. 518, §1°, CPC).
Já quanto aos efeitos, o precedente do STF, diante de todo exposto, deve ser entendido como vinculante/obrigatório, pois é o órgão último responsável pela guarda da proeminência constitucional. Nesta esteira, em casos semelhantes, essa decisão sobre a harmonia constitucional deverá prevalecer em razão de sua força obrigatória (binding autority). Há de ser ressaltado que binding precedent não é novidade na ordem jurídica nacional, neste sentido dispõe o art. 544, §3° [60] bem como o art. 557, §1° [61] sem falar no já citado §1° do art. 518 [62], todos do Código de Processo Civil. Ressalte-se, também, que o Supremo Tribunal Federal já firmou entendimento no sentido de dispensar o procedimento do art. 97, CR (princípio da reserva do plenário) se a decisão do Tribunal tiver fundamento em precedente do excelso Pretório (jurisprudência, inclusive, positivada no art. 481, parágrafo único, CPC [63]).
Por outra banda, os precedentes persuasivos (persuasive precedent) são apenas indícios de uma solução racional e socialmente adequada [64], não estando nenhum magistrado obrigado a segui-lo. Tradicionalmente, em que pese os prejuízos desse entendimento, parte da doutrina constitucional tem sustentado que a fundamentação daquela decisão apenas tem essa natureza convincente. Todavia, como vimos, essa opinião, justamente por não ser coerente nem muito menos segura, tende a ceder de modo a prevalecer a binding autority dos precedentes do Supremo Tribunal Federal ainda que em controle difuso.
É importante notar que as proposições sobre a (in)constitucionalidade das normas, quando realizadas em controle por exceção, encontrar-se-ão na motivação da decisão. Portanto, fazem parte da ratio decidendi, ou seja, "os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi; (...) tese jurídica acolhida pelo julgador no caso concreto". [65] Diante disso, nada obsta a extração das razões de decidir do Supremo Tribunal Federal proferidas incidentalmente para sua aplicação em outros casos equivalentes.
Note-se que enquanto a coisa julgada alcança apenas a parte dispositiva da decisão – por isso no controle de constitucionalidade difuso será inter partes – a força vinculante dos precedentes está, justamente, na fundamentação, ou seja, nas teses jurídicas (abstratas) que servem de respaldo à conclusão. Portanto, a norma jurídica geral do caso concreto criada pelo STF, que soluciona a dúvida sobre a constitucionalidade ou não da lei – extraída da ratio decidendi –, mesmo em controle de constitucionalidade incidenter tantum, tem o condão de vincular em outras situações similares.
Vale dizer, ainda, que somente numa análise apressada poder-se-ia defender o engessamento do sistema pelos binding precedents. Isso porque eles não são institutos perenes e absolutos, ao revés, podem ser superados pelas técnicas do distinghishing, overruling e overriding. Na primeira, o magistrado vinculado ao precedente não o aplica porque não há semelhança entre os fatos do caso examinado e aquele que formou a ratio decidendi do julgamento modelo. Ou seja, não há subsunção entre o litígio a ser julgado e a regra geral criada pelo Poder Judiciário no caso paradigma. Já o overruling assemelha-se com a ab-rogação, i.e., o precedente dá lugar a outro de modo que perde sua força obrigatória. Neste caso, assim como a decisão sobre a inconstitucionalidade de lei pode ter força retroativa ou prospectiva, a superação do precedente pelo overruling também pode ser retrospective e prospective overruling. Será retrospective overruling quando o precedente perde sua força não sendo mais aplicado, nem mesmo para os fatos ocorridos antes da sua superação. Por outro lado, será prospective overruling quando a ratio decidendi - do julgamento padrão -, ainda que ultrapassada, é aplicada aos casos anteriores a sua modificação. Por fim, o overriding aproxima-se com a derrogação, já que ambos tratam de superação parcial. Portanto, quando apenas se restringe o alcance de um precedente estar-se-á diante do overriding.
Nítido, então, que os precedentes judiciais são fontes do Direito. Além disso, é mister reconhecer a sua grande contribuição para elaboração das normas jurídicas. É oportuno diferenciar o texto do dispositivo legal com a norma propriamente dita. Para construção daquele, basta os esforços do Poder Legislativo elaborando as redações legais; contudo, norma não é apenas isso. Essa distinção é a primeira premissa da teoria dos princípios do professor Humberto Ávila afirmando a existência de normas "mesmo sem dispositivos específicos que lhes dêem suporte físico" bem como a possibilidade de haver dispositivos sem normas [66].
Para o autor, "normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado" [67]. Também para Peter Häberle, destaca-se, "não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Eis gibt keine Rechtsnormen, Es gibt nur interpretierte Rechtsnormen)" [68]. Justamente por isso, sendo o Poder Judiciário responsável pela aplicação/interpretação do Direito, ao fazê-lo, sem dúvidas, constrói, a partir dos dispositivos legais, sentidos a eles, ou seja, reconstrói a própria norma jurídica. Assim, é importante conferir as lições de Humberto Ávila em sua teoria dos princípios:
É preciso substituir a convicção de que o dispositivo identifica-se com a norma, pela constatação de que o dispositivo é o ponto de partida da interpretação; é necessário ultrapassar a crendice de que a função do interprete é meramente descrever significados, em favor da compreensão de que o intérprete reconstrói sentidos, quer o cientista, pela construção de conexões sistemáticas e semânticas, quer o aplicador que soma àquelas conexões as circunstâncias do caso a julgar; importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto. [69]
Deste modo, no processo de construção da norma jurídica – que tem como marco inicial o próprio dispositivo legal – surgindo discussões acerca da sua constitucionalidade, visível que seu conteúdo estará definido com a manifestação do Supremo Tribunal Federal. Neste diapasão, reconstruída a norma jurídica com o caminho hermenêutico percorrido, claro é que a manifestação do Tribunal Máximo é o resultado desse processo de modo que estabelece a própria norma, principalmente acerca da celeuma constitucional. Portanto, é a manifestação do Supremo - tendo interpretado por derradeiro e com competência própria para tanto - que estabelece o conteúdo do dispositivo (norma).
Sendo assim, sobre a problemática da constitucionalidade da regra, tendo se manifestado pela sua harmonia com a Lei Maior, evidente que a norma, diante daquelas condições, tem sentido constitucional, não podendo mais ser declarada inconstitucional por outro juízo noutra demanda equivalente. O mesmo ocorre, principalmente, em sentido diverso, ou seja, caso o Supremo entenda que não há compatibilidade constitucional, não poderá outro magistrado afirmar ser constitucional. Isso porque, sendo, como é, a norma produto daquele processo de hermenêutica, naquela situação o que ocorreria, na realidade, seria a não aplicação da própria norma. Assim, a não utilização do precedente do STF acerca da compatibilidade constitucional viola o próprio sentido da interpretação final (norma) dos dispositivos examinados.
É importante trazer à baila, a fim de corroborar com este posicionamento, a situação julgada pela colenda Corte Constitucional no Mandado de Segurança 21.322- DF. Saliente-se que no passado existiam dúvidas sobre necessidade de concurso público para a contratação de pessoal das empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras da atividade econômica. Isso porque a regra do art. 37, II – exigência de aprovação em concurso para investidura em emprego público -, seria excepcionada pelo exposto no art. 173, §1°, CR – submissão destas estatais ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas [70]. Neste contexto, inúmeras contratações foram realizadas sem tal requisito de modo que o Supremo foi chamado a se manifestar no citado Mandado de Segurança. Com efeito, entendeu a excelsa Corte que "pela vigente ordem constitucional, em regra, o acesso aos empregos públicos opera-se mediante concurso público, que pode não ser de igual conteúdo, mas há de ser público. As autarquias, empresas publicas ou sociedades de economia mista estão sujeitas a regra, que envolve a administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Sociedade de economia mista destinada a explorar atividade econômica está igualmente sujeita a esse princípio, que não colide com o expresso no art. 173, § 1°".
Nesta porfia, aquele Tribunal, noutras demandas, fixou entendimento que as contratações realizadas entre 05.10.1988 (promulgação da Constituição) e 23.04.1993 (data da publicação daquela decisão) sem observar a formalidade do concurso público estariam estabilizadas em razão da polêmica existente sobre esta viabilidade, do princípio da segurança jurídica e da confiança legítima dos terceiros em face dos comportamentos públicos. Diante disso, somente as contratações realizadas após 23.04.1993 mereceriam a declaração de nulidade por vício de inconstitucionalidade. Portanto, clarividente que o conteúdo daqueles dispositivos passou a ser conclusivo com estes acórdãos. Sendo norma diferente de texto legal, como vimos, ela passou a ser definida naquela data de modo que não se pode imaginar que qualquer juiz entenda em sentido diverso, ou seja, possibilite a contratação sem concurso público após a decisão. Neste caso, então, a aplicação deste precedente judicial é obrigatória já que é a própria afirmação do conteúdo do texto legal (verdadeira norma jurídica). Não se pode olvidar, todavia, das técnicas de superação do precedente, tornando possível a não aplicação deles quando for o caso do distinghishing, overruling e overriding.
Diante do exposto, o precedente do STF em controle de constitucionalidade difuso deve vincular (binding precedent). Isso, todavia, não significa que os motivos determinantes da decisão do Tribunal Constitucional (ratio decidendi) se perpetuarão no tempo. Portanto, assim como as leis gozam de força obrigatória e, em regra, vigência indeterminada – podendo ser revogada -, os precedentes do STF em controle de constitucionalidade difuso também vinculam por tempo indefinido, i.e., é possível sua reforma pelo próprio excelso Tribunal.
3.2. A repercussão Geral como pressuposto de admissibilidade do Recurso Extraordinário [71] e a objetivação (dessubjetivação ou abstração) do controle "concreto":
O Recurso Extraordinário, construção do Direito Processual Civil brasileiro inspirado pelo writ of error Norte-Americano, está previsto no Art. 496 do CPC. Entretanto, seu cabimento vem disposto na Carta Política no trato da competência do STF (Art. 102, III). Este meio de provocar o reexame de uma decisão com escopo de reformar, modificar ou invalidá-la tem por finalidade a manutenção da autoridade da Constituição Federal do Brasil.
Por esta tese ora ventilada, verifica-se, da análise do artigo 102, III, o cabimento deste recurso. Com nítida clareza, percebe-se que este instituto de direito constitucional processual, como salientado, visa tutelar a supremacia da Lei Maior. Para isso, re-analisa a matéria de direito não conhecendo profundamente as discussões acerca dos fatos nem, muito menos, da justiça ou não da decisão impugnada. Assim, ao recurso extraordinário "cabe, em princípio, o exame não dos fatos controvertidos, nem tampouco das provas existentes no processo, nem mesmo da justiça ou injustiça do julgado recorrido, mas apenas e tão-somente a revisão das teses jurídicas envolvidas no julgamento impugnado" [72].
Para o processamento deste "meio impugnativo", a parte sucumbente deverá, no prazo de 15 dias, o interpor direcionando ao Presidente ou Vice-Presidente do Tribunal que prolatou a decisão (vide Art. 541, CPC). Ao recorrido é dado mesmo prazo para pronunciamento de contra-razões e, após isso, o deferimento ou indeferimento do seguimento do recurso. Feito o prévio juízo de admissibilidade, pelo órgão judicante a quo, e sendo admissível, os autos serão encaminhados ao STF, caso contrário, se ao recurso não for dado seguimento, caberá à parte Agravo de Instrumento, no prazo de 10 dias. Saliente-se, ainda, que o Recurso Extraordinário gera efeitos de natureza apenas devolutiva e, por isso mesmo, é suscetível à execução provisória do acórdão impugnado.
Além dos requisitos gerais (intrínsecos e extrínsecos) de admissibilidade a todos os recursos, tais como cabimento, legitimação para recorrer, interesse em recorrer, tempestividade, preparo, regularidade formal e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer, a parte deverá demonstrar os pressupostos específicos para o Recurso Constitucional Extraordinário. Sendo assim, imperiosa é a atenção do interessado para as hipóteses de cabimento previstas na Magna Carta, com objetivo de atender, não somente aos preceitos da teoria geral dos recursos, como também, e principalmente, às condições prévias estabelecidas pela Constituição.
Torne-se clarividente, ainda, que a questão constitucional já deve ter sido discutida, não podendo, deste modo, ser levada a análise inicialmente no Recurso Extraordinário. Ou seja, é conditio sine quo non para o sucesso deste meio impugnativo em comento o prequestionamento – só será julgado o mérito caso a questão nele discutida já tenha sido objeto de apreciação em instâncias inferiores.
Com a emenda constitucional n° 45, de 30 de dezembro de 2004, um novo requisito constitucional foi implantado para este Recurso destinado ao Supremo Tribunal Federal, qual seja: a repercussão geral. Assim, novo parágrafo terceiro foi aditado à Lei Máxima impondo o ônus à parte recorrente em demonstrá-la. Dispõe o citado Artigo: "§ 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros".
O autor do recurso, diante dos novos regramentos, haverá de, além de motivar sua peça processual com uma das tipificações de cabimento do Art. 102, III, expressar a repercussão geral em tópico específico de suas razões recursais, sob pena de não ser admitido o extraordinário. A análise e julgamento deste recurso constitucional especialíssimo competem às turmas do STF, no entanto, esta questão preliminar será apreciada pelo Pleno que receberá os autos para este fim.
Diante da leitura do citado parágrafo terceiro, verifica-se a necessidade de quorum qualificado para a rejeição do recurso com razões fundadas neste novo pressuposto. Por esta esteira, "somente poderá recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros" e por isso, segundo a doutrina do ilustre Fredie Didier Jr. fazendo alusão à Lênio Streck, "é razoável afirmar, assim, que existe uma presunção em favor da existência da repercussão geral" [73]. A mencionada emenda n° 45, que instituiu o referido §3º ao Art. 102, III da CF estabelecendo a repercussão geral, não definiu este novo requisito preliminar de admissibilidade do Recurso Extraordinário, ficando a cargo da lei infraconstitucional. Em 20 de dezembro de 2006, publicou-se a Lei Ordinária n° 11.418 a qual acrescentou à Lei n° 5.869/73 - Código de Processo Civil - dispositivos que regulamentam aquele parágrafo da Constituição.
Para não deixar lacuna legal em torno deste instituto novo, preliminar para admissibilidade recursal, o legislador infra-constitucional, de modo subjetivo e sintético – sem qualquer tipificação legislativa – prescreveu no sentido de ser questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, superiores aos interesses individuais das partes [74]. Esta lei sob exame também trouxe casos onde será desnecessária a remessa dos autos ao pleno. Isto ocorrerá em atenção ao Art. 543-A, § 4º: "se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário". Por óbvio, já que a Constituição Federal, no tão comentado § 3° do Art. 102, III, estabeleceu o quorum qualificado de rejeição do recurso – sendo onze ministros, e oito é o mínimo de votos para negar a existência de repercussão geral, é razoável dispensar a remessa ao plenário se quatro ministros já admitem o recurso extraordinário [75].
A fim de melhor esclarecer o conceito de repercussão geral socorremo-nos, mais uma vez, aos argumentos dos ilustres Fredie Didier Jr. e Leonardo José Carneiro da Cunha:
Como foi visto, o legislador valeu-se, corretamente, de conceitos jurídicos indeterminados para a aferição da repercussão geral. É possível vislumbrar, porém, alguns parâmetros para a definição do que seja "repercussão geral":
i) questões constitucionais que sirvam de fundamento a demandas múltiplas, como aquelas relacionadas a questões previdenciárias ou tributárias, em que diversos demandantes fazem pedidos semelhantes, baseados na mesma tese jurídica. Por conta disso, é possível pressupor que, em causas coletivas que versem sobre temas constitucionais, haverá a tal "repercussão geral" que se exige para o cabimento do recurso extraordinário. ii) questões que, em razão da sua magnitude constitucional, devem ser examinadas pelo STF em controle difuso de constitucionalidade, como aquelas que dizem respeito à correta interpretação/aplicação dos direitos fundamentais, que traduzem um conjunto de valores básicos que servem de esteio a toda ordem jurídica dimensão objetiva dos direitos fundamentais. [76]
Ressalte-se, ainda, a previsão legal de uma presunção absoluta da existência deste requisito preliminar de repercussão geral da matéria constitucional. Deste modo, traz à lume o Art. 543-A, § 3°: haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. Este posicionamento normativo reforça as súmulas simples, as súmulas vinculantes, bem como a jurisprudência dominante da Suprema Corte (binding precedent).
Vistos esses aspectos processuais do recurso extraordinário bem como de seu novo requisito de admissibilidade, é importante conferir as modificações na percepção do controle de constitucionalidade concreto. Verifica-se, como vimos, que esta forma incidenter tantum de se aferir a harmonia constitucional das leis e atos normativos, quando chega ao Supremo Tribunal, principalmente após a positivação da repercussão geral, transcende os interesses subjetivos das partes litigantes (Art.543-A, § 1°, CPC, in fine) [77]. Portanto, a compreensão do recurso extraordinário ultrapassa aqueles entendimentos acerca do interesse individualista das partes. Sendo assim, este recurso destinado à Corte Constitucional ganha contornos objetivos quanto ao exame da constitucionalidade da norma impugnada.
O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, como já salientado, passa a ser verdadeiramente híbrido pois mistura características do controle incidenter tantum – realizado à luz do caso concreto – bem como, quando chega ao STF através do citado recurso especialíssimo, do controle abstrato das normas – a questão acerca da constitucionalidade examinada abstratamente na ratio decidendi tem objetivo imediato de preservar a ordem constitucional e não, pelo menos de forma direta, a proteção do interesse egoístico da parte. Antes dessa visão pós-moderna, vale dizer, o Brasil tinha duas formas de controlar a constitucionalidade (difuso e concentrado) e não um verdadeiro controle misto como hoje é demarcado.
É imperioso conferir, no trato da objetivação do controle concreto, as lições do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, no Processo Administrativo n° 318.715/STF, ao tratar dessa tendência dos recursos extraordinários:
O recurso extraordinário "deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). (...)
A função do Supremo nos recursos extraordinários — ao menos de modo imediato — não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via Recurso Extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos". [78]
Clarividente, portanto, as fortes influências da doutrina constitucional estrangeira principalmente da Espanha e da Alemanha no que concerne aos seus recursos de amparo [79] e constitucional [80] respectivamente. Frise-se, ainda, que o próprio Ministro já utilizou as palavras do professor Peter Häberle para fundamentar este seu posicionamento. Assim, parafraseando o autor alemão asseverou que "‘a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo’, dotado de uma ‘dupla função’, subjetiva e objetiva, ‘consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo’". [81]
Essa compreensão contemporânea do recurso extraordinário traz inúmeros reflexos na ordem jurídica constitucional. Assim, em razão da introdução da repercussão geral e das elucubrações atuais sobre o citado instrumento de impugnação das decisões, tem-se afirmado, por exemplo, a possibilidade da causa de pedir aberta nestes recursos. Por esta esteira, o STF já decidiu, no RE 298694-SP, que "o Supremo pode decidir com inovação de fundamento. Nada na Constituição, nada na lógica jurídica autoriza a inaplicabilidade do iura novit curia às decisões da Casa, em sede de recurso extraordinário" [82]. Com significativa percuciência, inclusive, votou o Ministro Cezar Peluso:
E, no juízo do mérito, também penso que o Tribunal não está vinculado ao fundamento que o recorrente invoque no recurso extraordinário. E, aqui, a segunda questão, que me parece importantíssima, suscitada no voto do eminente Relator. Considero que interpretação restritiva quanto à profundidade do efeito devolutivo do extraordinário implica duas graves contradições, muito bem percebidas por S. Exa.. A primeira é a contradição imediata com a função constitucional precípua do Supremo, que é a de valer pela mesma Constituição, na sua inteireza. Não é possível, sem renúncia a tal função, admitir que esta Corte esteja impedida de reconhecer a incidência de certa norma constitucional, sob singelo fundamento de que não teria sido invocada nas razões ou nas contra-razões do recurso extraordinário. (...)
Além disso, tem-se afirmado, ainda, a possibilidade de intervenção de amicus curie nestes processos constitucionais objetivo-subjetivo. A excelsa Corte "considerando a relevância da matéria, e, apontando a objetivação do processo constitucional também em sede de controle incidental, especialmente a realizada pela Lei 10.259/2001 (arts. 14, § 7º, e 15), resolveu questão de ordem no sentido de admitir a sustentação oral da Confederação Brasileira dos Aposentados, Pensionistas e Idosos - COBAP e da União dos Ferroviários do Brasil". Neste julgamento, RE 416.827/SC, foram "vencidos, no ponto, os Ministros Marco Aurélio, Eros Grau e Cezar Peluso que não a admitiam, sob o fundamento de que o instituto do amicus curiae restringe-se ao processo objetivo".
Outra conseqüência destas evoluções do processo constitucional gira em torno da possibilidade de modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em controle concreto. Assim, imprescindível conferir as lições do Doutor Dirley da Cunha Júnior ao entender aplicável o art. 27 da lei 9.868/99 [83] (que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal) e o art. 11 da lei 9.882/99 [84] (que dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1o do art. 102 da Constituição Federal), senão vejamos:
Neste contexto, em que pese os preceitos acima mencionados constarem de leis reguladoras do processo e julgamento das ações diretas do controle concentrado-abstrato de constitucionalidade, não temos dúvida que eles podem servir de supedâneo para a modulação da eficácia temporal também no âmbito do modelo de controle difuso-incidental de constitucionalidade. [85]
Com essas novas reflexões sobre o controle concreto e sua dessubjetivação, o recurso extraordinário aproxima-se das ações diretas de modo que os motivos determinantes do julgamento (ratio decidendi) devem superar aquele caso concreto. Sendo assim, no que tange à (in)constitucionalidade julgada pela Corte Constitucional – vale dizer, também, que com essas modificações de compreensão passou a ser valorizada essa natureza do STF –, o julgamento deverá produzir efeitos para atingir todas as situações similares – consagração do precedente vinculativo do excelso Tribunal. Somente desta forma o princípio da igualdade e segurança jurídica são respeitados sem falar da melhor uniformização do Direito Pretoriano. Portanto, como o recurso extraordinário atualmente tem essa função típica de manutenção da ordem constitucional, seria despicienda tal natureza não tivesse seu precedente força vinculante. Cumpre ressaltar mais uma vez que as decisões "proferidas pelo Pleno, em controle difuso, ainda não consagradas em enunciado da súmula vinculante", no direito constitucional pátrio, "pode produzir efeitos ultra partes, como precedente jurisprudencial vinculativo, mas pode ser revista pelo Pleno do STF, surgindo novos fundamentos e tendo em vista a evolução do pensamento a respeito do assunto" [86] – superação dos precedentes judiciais (overruling e overriding).
Além disso, tem-se admitido reclamação constitucional da decisão do magistrado que viola a autoridade desses julgados do STF não aplicando tais precedentes. O leading case para tal concepção surgiu com a reclamação n° 4.335 que "foi proposta pela Defensoria Pública da União no Estado do Acre com alegação de descumprimento da decisão do STF no HC 82.959, em que foi declarada inconstitucional a vedação de progressão do regime da pena, prevista na Lei de Crimes Hediondos. Nem a reclamante, nem o reclamado foram partes no HC 82.959 e, a princípio não haveria legitimidade para a propositura da reclamação. Porém, é patente a existência de efeitos transcendentes por parte da decisão proferida pelo STF no caso, pois, não fosse essa a intenção, teria sido totalmente inútil a preocupação de se modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fazendo constar no acórdão que a decisão ‘não gerará conseqüências jurídicas com relação às penas já extintas’" [87].
Neste sentido, clarividente a modificação na percepção do controle de constitucionalidade concreto o que evidencia a necessidade da vinculação das decisões do Supremo Tribunal Federal – Guardião da Constituição e principal legitimado para aferição de sua compatibilidade com as leis e atos normativos. Deste modo, tendo decidido pela (in)constitucionalidade, por evidente, à luz dessas novas compreensões, seu julgamento deverá superar as partes litigantes – principalmente após a positivação da repercussão geral - vinculando outros sujeitos e, inclusive, os juízes e tribunais inferiores bem como a própria Administração Pública em razão do princípio da juridicidade que a vincula.
3.3. A suspensão da execução do ato declarado inconstitucional pelo Senado Federal. A mutação constitucional do art. 52, X, CR:
Outra grande conseqüência desses anseios atuais, claramente, é a proposta de mutação constitucional do art. 52, X, CR. O mencionado preceptivo tem por objetivo a suspensão da execução pelo Senado Federal, no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal. Destaca-se que a gênese deste instituto reporta, como demonstrado, à Constituição de 1934 em seu art. 91, IV [88]. Diante disso, com esta suspensão pelo Senado, tradicionalmente tem se entendido que os efeitos da decisão deixam de atingir apenas as partes para alcançar a todos. É importante enfatizar, contudo, que grandes discussões já envolveram o tema desde sua origem na citada Carta. Assim, questionava-se sobre seu caráter discricionário ou vinculado, sua natureza jurídica, a possibilidade de retroação e, ainda, sua aplicabilidade na representação interventiva. Quanto à primeira porfia, o STF resolveu tal questão, em 23/05/1966, no MS 16.512, decidindo que "o Senado terá seu próprio critério de conveniência e oportunidade para praticar o ato de suspensão" [89]. Diante disso, resolveu-se, no passado, a questão acerca de sua essência de modo que ficou caracterizado como ato político discricionário.
Grande celeuma envolveu, entretanto, as questões relativas aos efeitos retroativos da suspensão do ato pela Alta Casa do Congresso Nacional. As discussões atinentes a esta possibilidade de a suspensão do Senado atingir situações pretéritas turbilhonou a doutrina constitucional da época. Entendendo pela impossibilidade, Themístocles Cavalcanti já afirmava que a "única possibilidade que atende aos interesses de ordem pública é que a suspensão produzirá os seus efeitos desde a sua efetivação, não atingindo situações jurídicas criadas sob a sua vigência" [90]. Neste mesmo sentido, o saudoso Oswaldo Aranha Bandeira de Melo defendia: "a suspensão da lei corresponde à revogação da lei devendo ser respeitadas as situações anteriores definitivamente constituídas, porquanto a revogação tem efeito ex nunc" [91]. Por outro lado, o senador Accioly Filho opinou no sentido de que "essa suspensão é mais do que a revogação da lei ou decreto, tanto pelas conseqüências quanto por desnecessitar da concordância da outra Casa do Congresso e da sanção do Poder Executivo". Continuou asseverando o parlamentar que "em suas conseqüências, a suspensão vai muito além da revogação. Esta opera ex nunc (...) já quando de suspensão se trate, o efeito é ex tunc, pois aquilo que é inconstitucional é natimorto, não teve vida (cf. Alfredo Buzaid e Francisco Campos), e, por isso, não produz efeitos, e aqueles que porventura ocorreram ficam desconstituídos desde as suas raízes, como se não tivessem existido" [92].
Em tempos atuais, acabou por prevalecer o posicionamento no sentido de que com a edição da resolução senatorial os efeitos se manifestarão após sua vigência, respeitando, portanto, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Neste sentido, Alexandre Morais afirma que "ocorrendo essa declaração, como já visto, o Senado Federal poderá editar uma resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, da lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do STF que terá efeitos erga omnes, porém, ex nunc" [93].
Quanto à necessidade da comunicação do STF para o Senado nos casos de decretação de inconstitucionalidade em representação interventiva, somente em 1977 a Corte Constitucional firmou entendimento no sentido de dispensá-la nesta espécie de controle abstrato. Assim, como salienta Gilmar Ferreira Mendes, "passou-se a atribuir eficácia geral à decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de controle abstrato, procedendo-se à redução teleológica do disposto no art. 42, VII, da Constituição de 1967/69". Essa discussão acerca da ocorrência da suspensão em controle de constitucionalidade abstrato não tem mais qualquer sentido em tempos de vigência da Constituição de 1988. Isso porque as leis 9.868/99 e 9.882/99 positivaram o efeito vinculante e eficácia contra todos nestas ações diretas (art. 27 e art. 10, §3° respectivamente).
Este instituto, entretanto, em razão da discricionariedade do Senado Federal para a suspensão da execução da lei declarada inconstitucional não tem grandes relevâncias práticas justamente pela pouca utilização do mesmo. Hoje, todavia, esse dispositivo tem sido revisto de sorte que a interpretação atual caminha para uma evolução da jurisdição constitucional. É impreterível reconhecer a grande contribuição do Ministro Presidente do Supremo, Gilmar Mendes, na formação de sua nova concepção. Verifica-se, então, um caso de mutação constitucional (Verfassungswandlung) a ensejar um novo sentido normativo àquele dispositivo. Portanto, como defende o Ministro, o art. 52, X, apenas tem o condão de tornar pública a decisão do STF. É importante reconhecer e destacar que Lúcio Bittencourt, analisando a Carta de 1967, já afirmava que "o objetivo do art. 45, n° IV [94] é apenas tornar pública a decisão do Tribunal, levando-a ao conhecimento de todos os cidadãos".
Na vigência da atual Constituição da República Federativa do Brasil, contudo, é que é evidente essa melhor interpretação. Ora, esta Carta ampliou as ações diretas de (in)constitucionalidade bem como sua legitimidade de modo a entender o Supremo Tribunal Federal como verdadeira Corte Constitucional. Além disso, verifica-se na própria legislação infraconstitucional o reconhecimento da transcendência das decisões do STF como já salientado supra (art. 481, parágrafo único, art. 518, §1°, art. 544, §3° e art. 557, §1°, CPC). Não se pode olvidar, também, a multiplicação de causas idênticas referente à mesma vexata quaestio constitucional, o que torna imprescindível essa nova interpretação viabilizando uma maior efetividade jurisdicional. Destaca-se, ainda, que nada obsta que Supremo Tribunal Federal, legitimamente confiado pela própria Constituição para protegê-la, exerça o controle de constitucionalidade, tanto concentrado como difuso, sem distinguir os efeitos de sua decisão, id est, utilize a eficácia erga omnes para ambos.
Em suma, utilizando as palavras do professor Gilmar Mendes, "parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, esta decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Assim, o Senado não terá a faculdade de publicar ou não a decisão, uma vez que se não cuida de uma decisão substantiva, mas de simples dever de publicação. A não publicação não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia."