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A incompatibilidade entre a abstrativização do controle difuso e o Estado Democrático de Direito

11/03/2009 às 00:00
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A democracia, nos termos de Norberto Bobbio [01], é caracterizada por "um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e quais os procedimentos".

A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu texto um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, qual seja, o da separação de poderes:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Sabemos hoje que essa separação já não é mais tida como absoluta, como outrora o foi, tendo em vista que se entende agora tal princípio como uma separação de funções, e não de poderes. O Poder é uno, e há divisão somente quanto às funções, que são, conforme o estabelecido em lei, exercidas com preponderância por um ou outro órgão. O Ministro Paulo Brossard, em seu voto como relator no julgamento da ADIN 1105-7, muito bem expressou essa idéia, nos seguintes dizeres:

(...) Como é sabido, cada Poder tem uma atribuição dominante, mas não exclusiva. (BARBALHO, Constituição Federal Brasileira, 1902, p. 48.) Ao Poder Judiciário é atribuído o poder jurisdicional; não obstante, o Senado processa e julga, em caráter privativo e definitivo, determinadas autoridades, nos termos da Constituição. Outrossim, ao Poder Legislativo cabe editar leis, mas, nem por isso, tem ele o monopólio da função legislativa (...) [02].

Dessa forma, cabe ao Poder Legislativo exercer preponderantemente a função normativa, uma vez que a Constituição assim o estabelece, mas os demais poderes também podem fazê-lo, de forma atípica, sempre nos limites traçados pela Constituição.

A grande celeuma se instala quando um dos Poderes extrapola esses limites, desempenhando uma atribuição que claramente não lhe pertence.

É o que tem feito o Supremo Tribunal Federal. Um exemplo disso é a adoção da chamada "abstrativização do controle difuso" (expressão inicialmente cunhada por Fredie Didier Jr. [03]) no âmbito desse mesmo Tribunal.

Como se sabe, no Brasil, o controle de constitucionalidade se faz tanto pela via de exceção (o chamado controle difuso) quanto pela via de ação (o controle concentrado). No primeiro, criado nos Estados Unidos em 1903 por obra do Juiz Marshall, não há previsão de um órgão judicial especialmente destinado ao controle; a competência para realizá-lo é múltipla, a decisão tem eficácia inter partes e é retroativa (ex tunc) [04] . No modelo concentrado, baseado nas idéias de Hans Kelsen, a tarefa de controle de constitucionalidade é reservada somente a um órgão judiciário, um órgão de cúpula, que no nosso caso, é o Supremo Tribunal Federal. Embora originariamente os efeitos da declaração de inconstitucionalidade nesse modelo de controle fossem apenas para o futuro [05], hoje, em regra, os efeitos da mesma retroagem, e essa declaração tem eficácia erga omnes.

Cabe frisar que ao Supremo Tribunal Federal cabe a realização tanto do controle concentrado quanto do difuso. A rigor, os efeitos desse último podem se tornar erga omnes, contanto que a execução da lei declarada inconstitucional seja suspensa pelo Senado Federal, nos termos do artigo 52, inciso X.

"A abstrativização" do controle difuso inverte toda essa lógica, uma vez que propõe que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle difuso, em julgamento de recurso extraordinário, passem a ser erga omnes por si só, independentemente da suspensão da norma pelo Senado Federal; a este caberia, apenas, dar publicidade às decisões do Supremo.

Tal tese foi defendida pelo Ministro Gilmar Mendes na Reclamação 4335/AC [06], na qual foi relator e na qual asseverou a existência de uma mutação constitucional no artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, por concluir que tal dispositivo baseia-se numa concepção de separação de poderes que já se encontra ultrapassada, além do fato de o Senado Federal não executar tal atribuição com a eficiência que deveria.

É passível de concordância de que a antiga idéia inflexível da tripartição de poderes já não mais vigora. Conforme Guilhon de Albuquerque, o próprio Montesquieu já ressaltava:

(...) a interpenetração de funções judiciárias, legislativas e executivas. Basta lembrar a prerrogativa de julgamento pelos pares nos casos de crimes políticos para perceber que a separação total não é necessária nem conveniente [07].

Assim, a própria teoria que originou o princípio que adotamos no artigo 2º da Constituição Federal já não concebia a separação de poderes de forma tão rígida como outrora foi interpretado.

O que não se pode defender, porém, é a usurpação de uma função expressamente reservada a um órgão do Legislativo em norma constitucional por outro órgão do Poder Judiciário. Tal prática vai de encontro à Constituição, e o mais grave consiste no fato de que o órgão violador da mesma é justamente aquele que deveria zelar por sua guarda.

É bem verdade que o Direito é ordenação que dia a dia se renova [08], e muitas vezes o legislador encontra dificuldade em acompanhar a premente necessidade de mudança, mas nada disso justifica que outro órgão cumpra seu papel sem ter legitimidade para tal.

A "abstrativização do controle concentrado" é uma manifestação premente do avanço do Poder Judiciário sobre os demais poderes, afastando a tão cara idéia de Estado Democrático de Direito, que pressupõe "participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo" além do respeito à "pluralidade de idéias" [09].

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O legislador constituinte, quando da elaboração da Constituição, concebeu a idéia de que os efeitos de um controle de constitucionalidade cuja provocação não tenha sido de órgãos dotados de legitimidade para tal (como os legitimados no artigo 103 da Constituição Federal), não poderiam ter efeito contra todos, mesmo porque a inconstitucionalidade, nessa hipótese, seria discutida apenas de forma incidental em relação à demanda do caso concreto. A lei, abstratamente considerada, não seria objeto de discussão. Logo, nada mais sensato que a exigência da atividade de um órgão eleito pela vontade popular para converter tais efeitos em erga omnes.

O Supremo Tribunal Federal, órgão de um Poder Constituído, o Judiciário, se adotar o entendimento do Ministro Gilmar Mendes, estará se sobrepondo à vontade do Poder Constituinte, que consiste na "manifestação soberana da suprema vontade política de um povo social e juridicamente organizado" [10]. Essa prática mostra-se extremamente antidemocrática e viola preceitos constitucionais profundamente caros à sociedade, tais como o princípio da separação de poderes, a soberania popular e a supremacia da Constituição.

Não pode um órgão de cúpula do Poder Judiciário exercer o monopólio de atribuições reservadas constitucionalmente a outros órgãos sob a justificativa da ineficiência destes. Isso seria, em última análise, atentar contra os elementos imprescindíveis do Estado Democrático de Direito, elencados por Lowenstein como "a distribuição e os mecanismos institucionais de controle do poder (...), fazendo com que este seja efetivamente submetido aos seus destinatários, o povo" [11].

O que se propõe é uma reestruturação do sistema já existente e já legitimado pela vontade popular, nunca uma subversão arbitrária do Poder em prol da celeridade processual.

Antes de cogitar quantas demandas deixariam de chegar ao Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário devido aos novos efeitos concedidos a decisões em sede de controle difuso, devemos observar se a celeridade está cumprindo seu papel de meio para atendimento do interesse social ou se não está se tornando a própria finalidade, quando da adoção da "abstrativização do controle difuso".


Notas

  1. BOBBIO, Norberto, O Futuro da Democracia, 8ª edição revista e ampliada, Tradução Marco Aurélio Nogueira, Editora Paz e Terra.
  2. Ação direta de inconstitucionalidade I 105-7, julgamento da medida cautelar.
  3. DIDIER JR., Fredie. Transformações do Recurso Extraordinário. In: Processo e Constituição. Estudos em homenagem a professor José Carlos Barbosa Moreira. Luiz Fux, Nelson Nery Júnior, Teresa Arruda Alvim Wambier (coordenadores). São Paulo: RT, 2006, p. 104 a 121.
  4. BESTER,Gisela Maria, Direito Constitucional, Volume I, Fundamentos Teóricos,Editora Manole.
  5. Idem.
  6. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativos do STF n° 463 e 454, in
  7. ALBUQUERQUE, J.A. Guilhon. Os clássicos da política. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.119. t.1.
  8. REALE,Miguel, Lições Preliminares de Direito, 27ª edição ajustada ao novo Código Civil, 6ª tiragem, 2006, Editora Saraiva.
  9. MORAES,Alexandre de, Direito Constitucional, 21ª edição, Editora Atlas.
  10. MORAES,Alexandre de, Direito Constitucional, 21ª edição, Editora Atlas.
  11. LOEWENSTEIN, Kart, Teoria de la constitución. Barcelona, Editorial Ariel, 1976. (Coleccion Demos).
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Sobre a autora
Fernanda França de Oliveira

Estudante de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Fernanda França. A incompatibilidade entre a abstrativização do controle difuso e o Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2079, 11 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12448. Acesso em: 1 mai. 2024.

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