Artigo Destaque dos editores

Responsabilidade civil do médico nas cirurgias estéticas à luz do Código de Defesa do Consumidor

Exibindo página 2 de 4
12/03/2009 às 00:00
Leia nesta página:

2 RESPONSABILIDADE CIVIL

Ultrapassadas as questões preliminares acerca dos aspectos gerais que envolvem a relação de consumo existente entre médico e paciente, importa neste momento a análise do instituto da responsabilidade civil.

2.1 HISTÓRICO

A história da responsabilidade remonta aos primórdios da civilização, época em que o instituto refletia a noção de vingança privada, bem explicada pelo brocado "fazer justiça pelas próprias mãos". Nesse período, o uso da força era exclusivo ao particular ofendido que, diante do dano sofrido, reagia de forma instintiva e brutal. [55] O Estado não intervinha e não havia a noção mínima de culpa. Como bem leciona Gonçalves [56],

Não imperava, ainda, o direito. Dominava, então, a vingança privada, "forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal".

É nesse contexto que se insere a pena de Talião, pela qual o ofensor pagava pelo dano muitas vezes com o próprio corpo, já que vigorava a máxima "olho por olho, dente por dente".

Posteriormente, ganhou espaço a composição voluntária. Nesse estágio, a vítima poderia escolher a substituição da vingança para receber do autor do dano quantia em dinheiro, conhecida como poena. [57]

Sucede tal período a fase em que o Estado passa a impor sua presença, colocando fim à vingança privada e determinando que a compensação fosse obrigatoriamente econômica. "Passa-se, empós, à composição tarifada, prevista na Lei das XII Tábuas, que fixava, para cada caso concreto, o valor da pena a ser paga pelo ofensor." [58]

A usurpação pelo Estado do poder de punir se consolida, então, no Direito Romano, através da Lei Aquília, ocasião na qual se cristaliza a noção de reparação pecuniária do dano [59], de forma que o dever de indenizar possuía como limite os prejuízos econômicos sofridos. Surge também como elemento da responsabilidade civil a culpa.

No que concerne à responsabilidade dos profissionais da ciência médica, objeto deste estudo, a Lei Aquília e outras leis do mesmo período, como a Lei Cornélia, por exemplo, previam diversos delitos médicos, tais como "o abandono do doente, a recusa à prestação de assistência, os erros derivados da imperícia e das experiências perigosas." [60] Importante destacar, ainda, que a falta profissional neste momento histórico podia ensejar a aplicação da pena de morte ou deportação do médico. [61]

As bases da responsabilidade trazidas pelo Direito Romano foram aperfeiçoadas pelo Direito Francês, na doutrina do jurista Domat [62], que esboçou um princípio geral da responsabilidade civil, abolindo com o critério de casos enumerados de reparação obrigatória. [63]

A doutrina francesa passou a configurar a existência da responsabilidade em determinado caso, com base em elementos gerais, tais como a existência da culpa, e determinou a diferenciação entre culpa contratual e culpa delitual, contida no Código de Napoleão. [64] É o que leciona Gonçalves [65]

A noção de culpa in abstracto e a distinção entre culpa delitual e culpa contratual foram inseridas no Código de Napoleão, inspirando a redação dos arts. 1.382 e 1.383. a responsabilidade civil se funda na culpa – foi a definição que partiu daí para inserir-se na legislação de todo o mundo. Daí por diante observou-se a extraordinária tarefa dos tribunais franceses, atualizando os textos e estabelecendo uma jurisprudência digna dos maiores encômios.

O próximo estágio que merece destaque na evolução histórica da responsabilidade civil é marcado pelo surgimento do risco como fundamento para configuração da responsabilidade, ao lado da teoria da culpa.

A criação da teoria do risco se deu em meio à aceleração do desenvolvimento econômico e industrial, que tornava as vítimas dos danos mais vulneráveis e refletia a incompatibilidade da rigidez da teoria da culpa, tendo em vistas os riscos a que estavam sujeitos os cidadãos da sociedade moderna. Neste sentido,

A insuficiência da culpa para cobrir todos os prejuízos, por obrigar a perquirição do elemento subjetivo na ação, e a crescente tecnização dos tempos modernos, caracterizado pela introdução das máquinas, pela produção de bens em larga escala e pela circulação de pessoas por meio de veículos automotores, aumentando assim os perigos à vida e à saúde humana, levaram a uma reformulação da teoria da responsabilidade civil dentro de um processo de humanização. [66]

Na legislação italiana, por exemplo, a teoria do risco se funda no exercício de atividade perigosa, determinando, assim a obrigação de indenizar, independentemente da existência ou não da culpa. [67]

No que concerne às modificações legais que marcaram o momento histórico, merece destaque os ensinamentos de Dias [68], baseados nas idéias dos juristas franceses Josserand e Saleilles:

[...] a lei de acidentes no trabalho; a que estabelece a indenização a terceiros prejudicados com a explosão, deflagração, emanação de substâncias explosivas, corrosivas, tóxicas, nos estabelecimentos do estado ou privados que trabalhem para a defesa nacional, em tempo de paz; a que trata dos danos resultantes dos delitos praticados por força armada, por violência ou por tropa ou ajuntamentos; a da responsabilidade das empresas de navegação aérea.

Todas essas leis realizam verdadeira revolução. Afastando-se da idéia de culpa. Em seu lugar se impõe o princípio do risco: "a força da iniciativa, a ação consideram-se em si mesmas geradoras da responsabilidade".

É neste contexto que se insere também o surgimento das legislações de proteção ao consumidor, estabelecendo a responsabilidade objetiva dos fornecedores, na maioria dos casos, para a reparação dos prejuízos oriundos das relações consumeristas.

Insta salientar, ainda, que, com muita propriedade, ao dispor sobre a evolução da responsabilidade nos tempos modernos, destaca Gonçalves [69] a existência de duas faces da responsabilidade objetiva: "a teoria do risco e a teoria do dano objetivo", que, segundo o autor, refere-se ao dever de indenizar sempre que exista dano, independentemente de culpa.

Desta feita, observa-se que a responsabilidade civil ao longo da história apresentou evolução, notadamente, em relação aos seus fundamentos, representados pela noção de culpa e de risco, e à sua área de abrangência, fazendo aumentar o número de responsáveis por determinados danos e também o número de credores da indenização. [70] Tratam-se, tais modificações, de conseqüências da adequação do direito aos anseios da sociedade em determinada época.

2.2 CONCEITO

O desafio de viver em sociedade, de conviver e respeitar os limites da esfera individual de cada pessoa sugere que cada indivíduo assuma a obrigação geral de comportar-se de forma adequada, de modo a não violar direito alheio, segundo determina as normas morais e jurídicas de determinado grupo social.

Neste sentido, a responsabilidade está relacionada com as conseqüências jurídicas ou morais a que está sujeito aquele que viola direito alheio. Segundo Stoco [71], a idéia de responsabilidade se esgota na origem da palavra, do latim respondere, que significa "responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém por seus atos danosos". Pode-se afirmar que a origem da palavra exprime "a garantia da restituição ou compensação do bem sacrificado" [72].

Para Gonçalves [73], o instituto em apreço se refere à obrigação de indenizar o prejuízo resultante do ato ilícito:

O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal conseqüência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar o dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos. [...] As obrigações derivadas dos "atos ilícitos" são as que se constituem por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, praticadas com infração a um dever de conduta e das quais resulta dano para outrem. A obrigação que, em conseqüência, surge é a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado.

Neste mesmo sentido se manifesta Dias [74], segundo o qual

[...] responsável, responsabilidade, assim como, enfim, todos os vocábulos cognatos, exprimem idéia de contraprestação, de correspondência. É possível, diante disso, fixar uma noção, sem dúvida ainda imperfeita, de responsabilidade, no sentido de repercussão obrigacional [...] da atividade do homem.

Prossegue o mesmo autor no propósito de se individualizar o sentido de responsabilidade, citando a definição elaborada por Marton, ilustre jurista francês:

Marton estabelece com muita lucidez a boa solução, quando define responsabilidade como a situação de quem, tendo violado uma norma qualquer, se vê exposto às conseqüências desagradáveis decorrentes dessa violação, traduzidas em medidas que a autoridade encarregada de velar pela observação do preceito lhe imponha, providências essas que podem, ou não, estar previstas. [75]

A doutrina, de forma geral, como observado, encontra dificuldades em conceituar objetivamente responsabilidade civil, distinguir suas diversas modalidades e singularizar seus pressupostos. Na tentativa de sugerir um conceito, afirma Diniz [76] que

A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal.

De forma geral, pode-se afirmar que a responsabilidade civil é relação jurídica que surge pelo descumprimento de um dever jurídico, em virtude da qual uma pessoa que causou dano injusto a outra fica obrigado a repará-lo.

Para melhor análise do conceito e da própria configuração da responsabilidade civil, necessário se faz o estudo dos seus pressupostos nos diversos regimes jurídicos existentes na legislação brasileira e das suas diversas formas de classificação.

2.3 CLASSIFICAÇÃO

O instituto da responsabilidade, de forma geral, é amplo e ocupa posição de destaque em diversos ramos do direito e em diversas esferas de poder.

Relativamente às áreas do direito, a responsabilidade pode ser civil e penal, distinção que remonta aos tempos mais antigos da história jurídica, e esteia-se nos diferentes interesses que são violados com a prática do ato contrário à ordem jurídica. Ambas são objeto de apreciação do poder judiciário, exclusivamente.

Ainda, a responsabilidade pode ser apurada também no âmbito administrativo, pelas autarquias. Neste estudo, ressalta-se a responsabilidade ética dos profissionais da medicina, cujas sanções são aplicadas pelos Conselhos Regionais e pelo Conselho Federal de Medicina.

A partir do corte metodológico realizado para fins de determinação do tema em análise, concentra-se a atenção no instituto da responsabilidade civil, especificamente, que, por sua vez, classifica-se quanto ao seu fundamento e quanto ao fato gerador.

No tocante ao fundamento, a responsabilidade civil é classificada pela doutrina pátria como subjetiva e objetiva. Já no que concerne ao fato gerador, pode ser contratual e extracontratual. É o que será elucidado nas próximas linhas.

2.3.1 Responsabilidade civil e responsabilidade penal

A diferenciação entre responsabilidade civil e responsabilidade penal se deu a partir da evolução da noção de culpa e da distinção entre a indenização e a pena.

Em primeiro lugar, faz-se mister salientar que a distinção entre a indenização e a pena encontra-se expressamente disposta no texto constitucional, em seu art. 5º, XLV, in verbis,

Art. 5º. [...]

XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação de perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.

A partir de atenta leitura do referido dispositivo legal, forçoso concluir que a pena atinge a própria pessoa e é intransferível, ao passo que a indenização, fruto da responsabilidade civil, atinge o patrimônio do agente e, por essa razão, pode ser transferida aos seus sucessores, no limites legais.

Trata-se a responsabilidade civil e a responsabilidade penal de institutos que se referem à tutela de interesses em situações distintas, embora, como pensado por Miranda, citado Dias [77], ambas afetem o equilíbrio social. Segundo Dias [78], é preciso ponderar que o fundamento desses institutos é praticamente o mesmo;

[...] que o indivíduo é parte da sociedade; que ele é cada vez mais considerado em função da coletividade; que todas as leis estabelecem a igualdade perante a lei, fórmula de mostrar que o equilíbrio é interesse capital da sociedade.

Para fins de distinção, importante pontuar que a responsabilidade penal está voltada à proteção da ordem social diretamente considerada, do interesse público, submetendo o agente à punição estabelecida pelo Estado, enquanto que a responsabilidade civil relaciona-se à reparação dos danos sofridos pelo lesado, individualmente considerado, em seus interesses privados.

Acerca do tema, leciona Gonçalves [79], que

No caso da responsabilidade penal, o agente infringe uma norma de direito público. O interesse lesado é o da sociedade. Na responsabilidade civil, o interesse diretamente lesado é o privado. O prejudicado poderá pleitear ou não a reparação.

Merece destaque também os ensinamentos de Dias [80], segundo o qual,

Para efeito de punição ou reparação, isto é, para aplicar uma ou outra forma de restauração da ordem social é que se distingue: a sociedade toma à sua conta aquilo que a atinge diretamente, deixando ao particular a ação para restabelecer-se, à custa do ofensor, no statu quo anterior à ofensa. Deixa, não porque se não impressione com ele, mas porque o Estado ainda mantém um regime político que explica a sua não-intervenção. Restabelecida a vítima na situação anterior, está desfeito o desequilíbrio experimentado.

Por oportuno, vale destacar que um mesmo fato pode ensejar a responsabilidade civil e penal e, neste caso, deverá o agente responder em ambas as esferas, a fim de reparar o dano e se submeter à pena. É o que ressalta Lyra, citado por Gonçalves [81]:

Se, ao causar dano, [...], o agente transgride, também, a lei penal, ele se torna, ao mesmo tempo, obrigado civil e penalmente. E, assim, terá de responder perante o lesado e perante a sociedade, visto que o fato danoso se revestiu de características que justificam o acionamento de mecanismo recuperatório da responsabilidade civil e impõem a movimentação do sistema repressivo da responsabilidade penal.

Como exemplo de tal situação tem-se a hipótese em que o dano estético indenizável, fruto de erro médico e caracterizador do inadimplemento contratual, coincide com a lesão corporal de que trata o tipo penal descrito no art. 129 e parágrafos, do Código Penal Brasileiro.

No que concerne à lesão corporal, trata-se de delito comum que pode ser praticado por qualquer pessoa, inclusive pelo médico. Existem ainda os delitos próprios, que devem, necessariamente, ser cometidos por profissionais da medicina. É o caso dos tipos penais trazidos pela Lei de Transplantes de órgãos e pela Lei de Engenharia Genética, Leis 9434/97 e 8974/95, respectivamente. [82]

Ainda relativamente à diferenciação entre responsabilidade civil e penal, pode-se distingui-las quanto às características do fato ensejador. Não obstante constituir semelhança entre ambos os institutos o fato de que o ato ilícito sempre se caracteriza pela violação do direito posto [83], importante destacar que enquanto o elemento da tipicidade exige para a configuração do crime a exata adequação da conduta ao tipo penal, na esfera cível, de forma genérica, qualquer ação ou omissão que viole direito e cause dano pode ensejar a responsabilidade civil do agente. [84]

2.3.1.1 Responsabilidade Ética e Administrativa

No que concerne aos profissionais da medicina, especificamente, importante se mostra o estudo de sua responsabilidade relativa às questões éticas, apurada no âmbito administrativo, pelos Conselhos Regionais de Medicina e pelo Conselho Federal de Medicina.

O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina, a partir da Lei 3.268, de 30 de setembro de 1957, passaram "[...] a constituir em seu conjunto uma autarquia, sendo cada um deles dotado de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira." [85]

Na lição de Domingos & Ramos Filho [86],

Os conselhos de Medicina, Regionais e Federal, com fundamento nos art. 5º, alínea "i" e 15, alínea "d", da Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, formam um sistema corporativo de fiscalização e normatização profissional, dotado de competência expressa para, através da via do processo administrativo, apurar e eventualmente punir os médicos que venham a cometer infrações ao Código de Ética Profissional, constituindo assim uma jurisdição ética, a partir da atuação dos assim denominados Tribunais de Ética e Tribunal Superior de Ética Médica, respectivamente.

A função destes entes de zelar pela ética no exercício da profissão médica está contida no art. 2º do mesmo diploma legal, que dispõe:

Art. 2º O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Medicina são os órgãos supervisores da ética profissional em toda República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.

A responsabilidade, nesta hipótese, decorre da inobservância da ética médica concernente ao exercício da profissão segundo os deveres disposto no Código de Ética Médica, Resolução nº 1.246 de 08 de janeiro de 1988, do Conselho Federal de Medicina.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A ética, entendida como "teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade" [87], no âmbito da profissão da medicina caracteriza o

[...] somatório de deveres e direitos que determinam as normas de conduta do médico no desempenho de suas atividades e em suas relações com o paciente e todas as demais pessoas com quem possa ter tratado. [88]

Em seu capítulo III, o Código de Ética Médica trata da responsabilidade profissional, estabelecendo quais as condutas vedadas aos médicos, e, em seu preâmbulo, como conseqüência do exercício do poder disciplinar que possui os Conselhos Regionais, determina que os infratores deverão se sujeitar às penas disciplinares previstas em lei.

As referidas penas estão elencadas no art. 17, do Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958 [89], in verbis:

Art. 17 – As penas disciplinares aplicáveis aos infratores da ética profissional são as seguintes:

a) advertência confidencial, em aviso reservado;

b) censura confidencial, em aviso reservado;

c) censura pública em publicação oficial;

d) suspensão do exercício profissional, até 30 (trinta) dias; e

e) cassação do exercício profissional.

Insta salientar, ainda, que a aplicação de tais sanções decorre de processo administrativo a que deverão ser submetidos os profissionais que faltarem com os deveres éticos. Destaca-se que o processo ético, apesar de ser de cunho administrativo, pode ser contestado judicialmente. [90]

Assim como ocorre com os códigos de processo civil e penal, os procedimentos administrativos para apuração da responsabilidade profissional são regulados pelo Código de Processo Ético Profissional [91], Resolução nº 1.617, de 16 de julho de 2001, do Conselho Federal de Medicina.

O processo ético-profissional tramita em sigilo e é precedido de uma sindicância, que pode ser instaurada de ofício, pelo Conselho Regional, mediante denúncia ou, ainda, mediante informação prestada pela comissão de ética médica, delegacia regional ou representação.

No que diz respeito à sindicância, importante elucidar que,

[...] por sua própria natureza, é um instrumento de que se serve os órgãos administrativos ou de caráter administrativo, para clarificar uma situação de lesão a direitos de terceiros, pela elucidação preliminar do fato lesivo e a provável individualização do autor. É, assim, um procedimento preliminar, não terminativo, cujo objetivo é respaldar uma decisão administrativa. [92]

Vale pontuar que, consoante dispõe o código de processo, ante o relatório de fatos que conclui a sindicância, pode-se determinar o arquivamento da denúncia, homologar conciliação ou instaurar o processo ético-profissional. No entanto, uma vez instaurado o processo, é defeso às partes desistir do mesmo.

Outra característica relevante do processo disciplinar é o julgamento colegiado proferido pelas câmaras do Conselho Regional. Deste julgamento, caberá recurso ao Conselho Federal de Medicina.

Faz-se mister ressaltar que a responsabilidade profissional, apurada administrativamente, não exclui a possibilidade de se buscar a responsabilização do médico também no âmbito penal e civil. As naturezas das sanções e obrigações impostas ao agente em decorrência da configuração da responsabilidade, em cada uma das três esferas acima mencionadas, são diversas e as finalidades dos institutos, também.

A responsabilidade ética se presta ao exercício do poder disciplinar das autarquias respectivas, regulando a conduta dos profissionais, ao passo que a responsabilidade penal visa à proteção da sociedade, do interesse público, e a responsabilidade civil, por sua vez, volta-se à reparação dos danos materiais e morais sofridos pela vítima. [93]

Ainda em âmbito administrativo, a análise da conduta do médico pode ser realizada pelos órgãos estatais responsáveis pela defesa do consumidor, sob o prisma da violação das normas concernentes ao CDC.

Consoante dispõe o art. 55, do CDC [94], ao tratar sobre sanções administrativas, órgãos oficiais da União, dos Estados e do Distrito Federal possuem competência para fiscalização e controle das atividades de fornecimento de produtos e de prestação de serviços, a fim de facilitar e efetivar a defesa do consumidor. Diz o aludido dispositivo legal:

Art. 55. A União, os Estados e o Distrito Federal, em caráter concorrente e nas suas respectivas áreas de atuação administrativa, baixarão normas relativas à produção, industrialização, distribuição e consumo de produtos e serviços.

§ 1° A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios fiscalizarão e controlarão a produção, industrialização, distribuição, a publicidade de produtos e serviços e o mercado de consumo, no interesse da preservação da vida, da saúde, da segurança, da informação e do bem-estar do consumidor, baixando as normas que se fizerem necessárias.

§ 2° (Vetado).

§ 3° Os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais com atribuições para fiscalizar e controlar o mercado de consumo manterão comissões permanentes para elaboração, revisão e atualização das normas referidas no § 1°, sendo obrigatória a participação dos consumidores e fornecedores.

§ 4° Os órgãos oficiais poderão expedir notificações aos fornecedores para que, sob pena de desobediência, prestem informações sobre questões de interesse do consumidor, resguardado o segredo industrial.

A função de proteção do consumidor atribuída ao Estado pela norma constitucional (art. 5º, XXXII, da CF/88) teve seu exercício organizado no âmbito administrativo pelo art. 105, do CDC, por meio do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, formado por órgãos administrativos da União, dos Estados e dos Municípios e por entidades privadas que atuem na defesa dos direitos consumeristas. [95]

"Os órgãos administrativos de defesa do consumidor nos Estado e nos Municípios – que titulam com exclusividade a denominação de PROCON [...] – são criados por lei dos respectivos parlamentos da entidade federada a que pertencem." [96]

Cabe ao PROCON a orientação e informação dos consumidores, bem como a fiscalização e aplicação de sanções às praticas de consumo abusivas, no exercício de seu poder de polícia. No que tange às expressões do poder de polícia destes órgãos públicos, importante destacar que se desdobram em atos de prevenção, fiscalização e repressão. Na lição de Marques et al [97],

A defesa administrativa do consumidor comporta as três modalidades de expressão do poder de polícia. Desde seu caráter preventivo, como, por exemplo, na celebração de compromissos de ajustamento (art. 6º do Dec. 2.181/1997) ou mesmo nas iniciativas de educação do consumidor (art. 6º, II, do CDC e art. 3º, IV, do Dec. 2.181/1997, e.g.), à fiscalização do cumprimento das disposições do Código de Defesa do Consumidor e legislação correlata (arts. 9º a 11 do Dec. 2.181/1997) e à repressão às infrações às normas de proteção ao consumidor (art. 18 e ss. do Dec. 2.181/1997).

Todos os deveres e poderes do PROCON recaem sobre a prestação de serviços médicos, inclusive os de natureza estética, por configurarem relação de consumo, conforme já observado no capítulo anterior.

Neste sentido, ante a insatisfação com o procedimento cirúrgico realizado, deve o consumidor procurar o aludido órgão administrativo a fim de buscar esclarecimento, e, se for o caso, instaurar procedimento administrativo, buscando apurar a responsabilidade do fornecedor de serviços, e aplicar-lhe as devidas punições, na forma preconizada pelo Código de Defesa do Consumidor. [98]

Oportuno pontuar, por fim, que a instauração de procedimento administrativo junto ao PROCON, assim como ocorre com o processo disciplinar médico, não impede o acesso à via jurisdicional para a solução do conflito.

2.3.2 Responsabilidade Subjetiva e Responsabilidade Objetiva

Quanto ao fundamento, a responsabilidade civil pode ser classificada em responsabilidade objetiva e subjetiva.

A responsabilidade subjetiva se fundamenta na culpa lato sensu, que abrange tanto o dolo, quanto a culpa stricto sensu, à luz da teoria subjetiva [99], adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim, a fim de alcançar a reparação dos danos sofridos, em regra, deve a vítima provar que o agente agiu com dolo ou culpa, ou seja, que além de ilícita, sua conduta revela-se qualificada, respectivamente, pela vontade de lesionar ou pela imprudência, negligência e imperícia.

Neste sentido, segundo Gonçalves [100],

Diz-se, pois, ser "subjetiva" a responsabilidade quando se esteia na idéia de culpa. A prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Dentro desta concepção, a responsabilidade do causados do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa.

No tocante à questão, oportuno destacar as lições de Kfouri Neto [101], ao destacar a importância do elemento culpa para a configuração da responsabilidade, em se considerando a consciência do agente:

Os partidários da culpa como elemento fundamental da responsabilidade civil afirmam que a culpa possui lastro moral, daí não se poder conceber a responsabilidade senão nela fundada. O homem se sente responsável – e obrigado – a reparar dano causado por um ato culposo seu, o que não ocorre em relação a eventuais danos a que haja dado causa de modo absolutamente imprevisível, e pelos quais não se reconhece responsável, pois, como disse Ripert – lembrado por Serpa Lopes -, "não os causou verdadeiramente".

Consoante observado quando do estudo da evolução histórica da responsabilidade civil, a culpa representa grande marco na sistematização do instituto em apreço e foi a primeira teoria acerca do fundamento da responsabilidade.

No entanto, a fim de se ampliar a abrangência da responsabilidade, a fim de fazer incidir a obrigação de reparação ao maior número possível de hipóteses lesivas, inseriu-se na ciência do direito novo fundamento para a responsabilidade: o risco. Contribuiu historicamente para essa transformação a necessidade de proteção às vítimas de acidentes de trabalho, que exerciam a profissão sem qualquer meio de segurança. [102]

Faz-se mister destacar os dizeres de Kfouri Neto [103] sobre o "princípio social da reparação":

O intuito de abranger todos os casos de dano e atender ao princípio social da reparação, em todas as circunstâncias em que ele possa vir a se produzir, são os argumentos principais esgrimidos pelos objetivistas.

Trata-se da chamada responsabilidade objetiva, que dispensa a presença do elemento culpa e se fundamenta no risco. Esteia-se na idéia de que "[...] todo o dano é indenizável, e deve ser reparado por quem a ele se liga por um nexo de causalidade [...]" [104]

Segundo Diniz [105],

Na responsabilidade objetiva, a atividade que gerou dano é lícita, mas causou perigo a outrem, de modo que aquele que a exerce, por ter a obrigação de velar para que dela não resulte prejuízo, terá o dever ressarcitório, pelo simples implemento do nexo causal. A vítima deverá pura e simplesmente demonstrar o nexo de causalidade entre o dano e a ação que o produziu.

A responsabilidade dita objetiva encontra previsão no art. 927, parágrafo único, do Código Civil [106], in verbis:

Art. 927. [...]

Parágrafo único. Haverá obrigação de repara o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Não obstante a regra no ordenamento jurídico brasileiro seja pela responsabilidade fundada na culpa, como destaca a maioria dos autores, é notória a expansão da responsabilidade objetiva. Suas muitas suas hipóteses de incidência e, ainda, muitos outros casos tendem a dispensar o elemento culpa, igualmente. É o que se percebe das disposições do Código de Defesa do Consumidor, como será ilustrado mais adiante.

Consoante se observa da disposição do texto legal supracitado, a teoria do risco que justifica a responsabilidade objetiva determina ser responsável todo aquele que exerce atividade que oferece risco aos direitos de terceiros. Tal teoria pode ser interpretada sob dois pontos de vistas: ora como "risco-proveito", já que o responsável se beneficia com a atividade que causou dano a outrem; ora como "risco-criado", pois expõe as supostas vítimas a atividade de risco. [107]

Neste sentido, na lição de Lopes, citado por Kfouri Neto [108],

Essa teoria objetivista [...] é dividida em duas modalidades: a) a teoria do risco proveito – é justo que aquele que obtém proveito de uma empresa, o patrão, venha a se onerar com a obrigação de indenizar os que forem vítimas de acidentes durante o trabalho; b) a teoria do risco criado – pelo simples fato de agir, o homem cria riscos para os demais, por isso deve responder em caso de dano.

Ainda, importante pontuar que a responsabilidade objetiva do agente só pode ser afastada mediante prova produzida por este no sentido de que o dano se deu por culpa exclusiva da vítima ou por caso fortuito ou força maior.

Não obstante a existência de fundamentos distintos para a configuração da obrigação de indenizar, no ordenamento jurídico brasileiro, como regra geral, a responsabilidade será subjetiva, de acordo com o art. 927, caput, c/c art. 186, ambos do Código Civil. É o que destaca Reale, em supervisão à elaboração do projeto do Novo Código Civil, citado por Gonçalves [109]:

Responsabilidade subjetiva, ou responsabilidade objetiva? Não há que fazer essa alternativa. Na realidade, as duas formas de responsabilidade se conjugam e se dinamizam. Deve ser reconhecida, penso eu, a responsabilidade subjetiva como norma, pois o indivíduo deve ser responsabilizado, em princípio, por sua ação ou omissão, culposa ou dolosa. Mas isso não exclui que, atendendo à estrutura dos negócios, se leve em conta a responsabilidade objetiva. Este é um ponto fundamental.

Dias [110], por sua vez, ao citar Nonato e ao elucidar as conclusões do estudo do civilista português Guilherme Moreira, ressalta a complexidade que envolve o instituto da responsabilidade civil e a impossibilidade de se impor soluções simplistas e rígidas:

"O problema da responsabilidade não se resolve, assim, mediante dados escasos e simplistas, mas pela contribuição de fatores múltiplos, de ordem moral e de ordem política [...], é comum conciliarem-se na aplicação doutores que defendem na doutrina concepções polarmente opostas, como a da culpa subjetiva e a do risco criado".

[...]

Nem em um extremo nem em outro, proclama corretamente o estudo, sustentando que a responsabilidade pessoal e a culpa subsistirão, mas sem prescindir da revisão exigida pelo reconhecimento e pela integração no sistema das várias formas de responsabilidade objetiva ou da socialização dos riscos, no roteiro da proposta de W. Wilburg, há quase três décadas, no sentido do abandono do sistema axiomático – dedutivo em favor de um sistema móvel.

Considerando as ponderações mencionadas acima, importante esclarecer que o Código Civil de 2002 inovou ao trazer hipótese ampla de reparação de dano, independentemente da culpa, determinando que assim será quando este sobrevier de atividade naturalmente de risco. É o que se extrai do texto expresso do parágrafo único do art. 927, do aludido diploma legal.

Nitidamente, o legislador concede mais liberdade ao julgador [111] na apreciação do caso concreto a fim de se determinar se a responsabilidade será subjetiva ou objetiva, permitindo que avalie a situação levando em conta os fatores diversos que a envolvem.

2.3.3 Responsabilidade Contratual e Responsabilidade extracontratual

Quanto ao fato gerador, a responsabilidade civil se divide em responsabilidade extracontratual e responsabilidade contratual.

A responsabilidade extracontratual, também conhecida como responsabilidade aquiliana, possui como fato gerador o ato ilícito decorrente de ação ou omissão do agente que, como se observa da redação do art. 186 do Código Civil [112], viola direito e causa dano a outrem. Diz o aludido dispositivo legal:

Art. 186. Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

O dever jurídico, neste caso, "[...] consiste no cumprimento da lei [...]. Se a hipótese não estiver prevista na lei [...], haverá ainda o dever indeterminado de não lesar a ninguém [...]" [113]. Esta última noção de não lesar direito alheio é bem exposta na definição de ato ilícito trazida pelo art. 187, do Código Civil, que trata do excesso no exercício de determinado direito:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Importante esclarecer que, conforme destaca Dias [114], com base na doutrina de Pontes de Miranda, o ato ilícito não deve ser equiparado à mera violação ou perda de direito, porquanto a sua existência pressupõe condições impostas por lei, quais sejam, a ofensa a direito e a ação ou omissão dolosa ou culposa, de forma a estabelecer o vínculo de obrigação.

Por sua vez, a responsabilidade contratual importa na violação de dever oriundo de negócio jurídico válido firmado entre as partes, que caracteriza o inadimplemento. Esta espécie de responsabilidade encontra-se regulada pelos artigos 389 e seguintes do Código Civil [115], que trata do inadimplemento das obrigações, in verbis:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Dispõe também sobre a responsabilidade resultante do inadimplemento contratual o art. 475, do Código Civil de 2002 [116]:

Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.

Por inadimplemento, portanto, entende-se o descumprimento de uma obrigação contratual. Ressalta-se que tal descumprimento deve ser culposo, em sentido amplo, ou seja, deve ser qualificado pelo dolo ou culpa. Em assim sendo, via de regra, não há que se falar em responsabilidade quando o inadimplemento se der por caso fortuito ou força maior, pois nestes casos o cumprimento da obrigação tornou-se impossível por circunstâncias alheias à vontade das partes.

Uma das principais diferenças estabelecidas entre a responsabilidade contratual e extracontratual diz respeito ao ônus da prova. Enquanto na extracontratual a vítima deve, em regra, provar que o evento lesivo se deu por culpa do agente, na contratual, incumbe-se apenas de provar que o dano resulta do descumprimento do avençado. Caberá ao agente, por conseguinte, a contraprova de uma das excludentes da responsabilidade.

2.4 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Diz o art. 186 do Código Civil de 2002, ao tratar de atos ilícitos, que "aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou impudência, violar direito ou causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito" [117].

Pela dicção do dispositivo legal é responsável civilmente aquele que comete ato ilícito. Por ato ilícito entende-se aquele capaz de causar danos a outrem. Complementando tal conclusão, determina o art. 187 do mesmo diploma legal que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."

A configuração da responsabilidade civil está condicionada à presença de certos elementos. É a partir da comprovação destes pressupostos que se identifica a obrigação de indenizar pelos danos decorrentes da prática do ato ilícito.

O primeiro elemento da responsabilidade civil é a ação ou omissão do agente. A ação ou omissão considerada ato ilícito corresponde à violação de um dever jurídico.

Em assim sendo, caso a responsabilidade seja extracontratual, ou aquiliana, o dever jurídico, neste caso, corresponde a regra expressamente prevista em lei ou a dever de não invadir a esfera de direitos de terceiros.

Por sua vez, caso a responsabilidade seja contratual, o dever jurídico violado decorre de negócio jurídico firmado entre as partes, que caracteriza o inadimplemento.

Contudo, o ato ilícito, por si só, não enseja a obrigação de indenizar. Necessita estar qualificado pela culpa. Assim a responsabilidade pela realização de ato ilícito depende da culpa, ou seja, a conduta voluntária, negligente ou imprudente que infringe um direito de outrem deve ser reprovável ou censurável, já que, diante da situação concreta, o comportamento poderia ou deveria ter sido outro. [118]

De acordo com os ensinamentos de Gonçalves [119],

Para que haja obrigação de indenizar, não basta que o autor do fato danoso tenha procedido ilicitamente, violando um direito (subjetivo) de outrem ou infringindo uma norma jurídica tuteladora de interesses particulares. A obrigação de indenizar não existe, em regra, só porque o agente causador do dano procedeu objetivamente para o mal. É essencial que ele tenha agido com culpa: por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência [...].

Destaca-se que é imprescindível que o autor do fato lesivo tenha consciência acerca da ilicitude de sua conduta. Dessa forma, se agir voluntariamente ou intencionalmente, estar-se-á diante do dolo, ao passo que, se agir com imperícia, imprudência ou negligência, restará configurada a culpa. É o que, de fato, ressalta Diniz [120], segundo a qual "...o ilícito tem duplo fundamento: a infração de um dever preexistente e a imputação do resultado à consciência do agente".

A análise que permite afirmar se há ou não culpa se faz a partir do paradigma do homem médio, ou seja, deve-se constatar que o comportamento do agente extrapolou aos limites esperados para um indivíduo normal.

Em se tratando de culpa contratual, caberá ao lesado a prova apenas e tão somente do inadimplemento, uma vez que é atribuído ao devedor o ônus de demonstrar a ausência de culpa. De outro lado, ante a culpa extracontratual ou aquiliana, o lesado deverá comprovar que a conduta do lesante foi imperita, negligente ou imprudente.

Em regra, a configuração da culpa é essencial para a responsabilidade civil. No entanto, com o desenvolvimento da sociedade moderna, de que já se falou no inicio deste estudo, a teoria da responsabilidade passou por um processo de evolução, através do qual a culpabilidade foi substituída pela causalidade, ou seja, o responsável passou a ser aquele causador do dano, independentemente de ter agido com culpa ou não. [121]

É a chamada teoria do risco que dá ensejo à responsabilidade objetiva e que surgiu com o propósito de permitir ao lesado uma facilitação na busca pela reparação dos danos sofridos, notadamente em virtude da dificuldade deste em comprovar a culpa do lesante, conforme já analisado anteriormente.

Diz-se teoria do risco, pois a obrigação de indenizar, independentemente da configuração da culpa, existe em função da natureza da atividade exercida pelo agente. Assim, "[...] aquele que, no seu interesse, criar um risco de causar dano a outrem, terá de repará-lo, se este dano sobrevier." [122]

Além da prática do ato ilícito e da existência ou não da culpa, a responsabilidade civil possui como elemento o nexo de causalidade entre a conduta do agente e os danos sofridos pelo lesado, ou seja, é necessário que o dano possua como causa a ação ou omissão daquele sobre quem recairá a obrigação de indenizar.

A doutrina enfrenta grandes dificuldades na distinção da relação de causalidade quando o dano é resultado de várias causas, quando várias circunstâncias concorrem para a ocorrência do dano.

Na tentativa de superar tal questão, identificam-se três principais teorias: teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade adequada e teoria da causa próxima [123], também denominada teoria dos danos diretos e imediatos. [124]

A primeira teoria considera como causa todos os fatores que contribuíram para o resultado danoso, ou seja, todos aqueles sem os quais o prejuízo não teria se efetivado. É também conhecida como teoria da condição sine qua non. Todas as circunstâncias são consideradas causas na medida em que, caso "[...] suprimida uma delas, o dano não se verificaria." [125]

A aplicação desta teoria não é bem acolhida no âmbito cível, pois pode dar ensejo a conclusões absurdas como a de se considerar como causas fatos irrelevantes, que, apesar de serem antecedentes, não possuem qualquer valor para a efetiva configuração do resultado. [126]

Pela segunda teoria, reputa-se causa aquela condição que se mostra adequada à produção do evento danoso, quando analisada de forma abstrata. O objetivo desta teoria é disponibilizar fundamentos para se limitar a definição jurídica de causa, bem como conter os exageros da teoria da equivalência das condições. [127] Segundo Gonçalves [128],

[...] se tal relação de causa e efeito existe sempre em casos desta natureza, diz-se que a causa era adequada a produzir o efeito. Se existiu no caso em apreciação somente por força de uma circunstância acidental, diz que a causa não era adequada.

Parte da doutrina entende ser vantajosa a conjugação das duas teorias. Ao propor uma interpretação conjunta, dispõe Sanseverino [129] que "[...] só é possível considerar como causa adequada a condição que se mostra imprescindível para a ocorrência de determinado resultado".

Já a terceira teoria "[...] considera causa o fator que tenha condicionado, mais proximamente no tempo, o resultado, de modo que o mais próximo exclui o mais remoto." [130]

Neste sentido, entende-se que o ato ilícito a ser considerado causa para determinado dano deve manter com este relação direta e imediata. Conforme leciona Alvim [131],

É indenizável todo o dano que se filia a uma causa, ainda que remota, desde que ela lhe seja causa necessária, por não existir outra que explique o mesmo dano. Quer a lei que o dano seja o efeito direto e imediato da inexecução.

Esta ultima teoria foi a adotada pelo Código Civil de 2002, como resta disposto em seu art. 403 [132], in verbis,

Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.

Importante ressaltar que existem certas situações nas quais o nexo causal será excluído. São as chamadas "excludentes da responsabilidade" [133]. O nexo de causalidade não se configura quando o dano se der por culpa exclusiva da vítima, por culpa concorrente ou comum, tanto da vítima quanto do agente, por culpa de terceiro, por força maior ou por caso fortuito. [134]

Destaca-se que, como bem ensina Gonçalves [135], as causas ditas preexistentes não são aptas a afastar a responsabilidade do agente. Circunstâncias tais como as condições pessoais de saúde da vítima que, muitas vezes, chegam a agravar o dano, não excluem nem amenizam a responsabilidade do ofensor.

Neste sentido, caso a vítima "A" se submeta a uma cirurgia plástica, cujo processo de cicatrização é agravado por força de problemas cogentes de seu organismo, que não foram levados em consideração pelo cirurgião, vindo a deixar marcas profundas em sua pele, deverá o agente responder pelo resultado mais gravoso.

Como pressuposto da responsabilidade civil, o nexo de causalidade deve ser provado por aquele que se diz lesionado, ressalvadas as hipóteses previstas no ordenamento jurídico pátrio de inversão do ônus da prova.

Por fim, insta examinar o último elemento configurador da responsabilidade, qual seja, o dano. Responsabilidade civil ou obrigação de indenizar significa reparar prejuízos sofridos pela vítima. Em assim sendo, ilógico é pensar na configuração da responsabilidade, ou seja, do dever de indenizar, quando ausente o dano a ser ressarcido.

O conceito de dano é trazido pela doutrina ora como lesão a bem juridicamente protegido, ora como mera lesão de conteúdo econômico. Acerca do tema, bem disserta, mais uma vez, Gonçalves [136], segundo o qual

[...] enquanto o conceito clássico de dano é o de que constitui ele uma "diminuição do patrimônio", alguns autores o definem como a diminuição ou subtração de um "bem jurídico", para abranger não só o patrimônio, mas a honra, a saúde, a vida, suscetíveis de proteção.

Assim, os danos que se caracterizam por lesões de ordem econômica são conhecidos como danos materiais. De outro lado, aqueles que se relacionam com a violação de atributos da personalidade do indivíduo, são denominados danos morais.

Neste estudo, merece destaque também o chamado dano estético, mormente quanto mantém nexo de causalidade com o inadimplemento do cirurgião em procedimentos cosméticos de natureza cirúrgica.

O dano estético é conceituado pela doutrina ora como um dano moral originado pela lesão estética, ora como a própria lesão estética capaz de causar dor moral [137]. Segundo Lopez [138], define-se dano estético

[...] como qualquer modificação duradoura ou permanente na aparência externa de uma pessoa, modificação esta que lhe acarreta um "enfeamento" e lhe causa humilhações e desgostos, dando origem, portanto, a uma dor moral.

Importante destacar que a jurisprudência mais atual do Superior Tribunal de Justiça é uníssona no sentido de ser possível a cumulação das indenizações pelos danos materiais, morais e estéticos, quando presentes justificativas autônomas para cada um deles. [139]

Além do Código Civil, a responsabilidade também é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, cujos pressupostos são objetos de análise do tópico a seguir.

2.5 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

A responsabilidade regulada pela Lei 8.078/90 deve ser estudada à luz das regras e dos princípios informadores do sistema de proteção e defesa do consumidor, que, por serem normas de ordem pública e de interesse social, devem prevalecer sobre as normas de natureza privada fundadas na autonomia da vontade.

Distingue o CDC a responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço e pelo vício do produto ou do serviço. Na primeira modalidade, enfatiza-se a presença do defeito ou do acidente de consumo, ou seja, a violação dos deveres anexos ao fornecimento de produtos ou serviços gera falha na segurança dos mesmos e ocasiona danos ao consumidor, que podem ser tanto de natureza moral, como patrimonial. Já na segunda modalidade, a configuração do dano ao consumidor propriamente dito não é necessária, basta a prova de que o fornecedor não cumpriu com seus deveres impostos pelo CDC e que tal descumprimento potencialmente pode culminar em um acidente de consumo. As falhas no caso dos vícios estão relacionadas à qualidade e quantidade dos produtos e serviços.

Em suma, pode-se afirmar que a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto ou do serviço possui como pressuposto o defeito, enquanto que a responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço possui como pressuposto o vício, como a própria nomenclatura utilizada pelo legislador já indica. A diferença entre ambos os pressupostos, conforme já mencionado acima, é bem elucidada pelo ilustre autor Sanseverino [140], segundo o qual

Enquanto os defeitos são falhas do produto ou do serviço que afetam a segurança legitimamente esperada pelo consumidor, causando-lhes danos pessoais ou patrimoniais, os vícios são falhas, ocultas ou aparentes, que afetam, via de regra, apenas o próprio produto ou serviço, tornando-os inadequados ao uso a que se destinam por não apresentarem a qualidade ou quantidade esperada pelo consumidor, inclusive por deficiência de informação. Ou seja, o produto ou serviço defeituoso é aquele que se mostra perigoso, colocando em risco a segurança do consumidor, enquanto o produto ou serviço viciado é aquele que não apresenta a qualidade esperada, mostrando-se inadequado ao uso a que se destina.

Além da configuração do defeito ou do vício, a responsabilidade do fornecedor, à luz do CDC, exige a presença da imputabilidade e do nexo de causalidade.

Relativamente à imputabilidade em acidentes de consumo, importa observar que os artigos das seções II e III, do CDC, ampliaram o rol dos responsáveis perante o consumidor lesado. Assim, a partir da dicção do dispositivo legal, imputa-se o dever de indenizar não só àquele que, de fato, causou o defeito no produto ou no serviço, mas também a todos que estão envolvidos na cadeia de produção, quais sejam, o fabricante, o construtor, o prestador de serviços, o distribuidor, o importador, o comerciante, ressalvado o direito de regresso. [141]

A responsabilidade dos fornecedores envolvidos nesta cadeia causadores do dano é solidária, por força do disposto no art. 25, §§ 1º e 2º, do CDC [142], in verbis:

Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.

§ 2° Sendo o dano causado por componente ou peça incorporada ao produto ou serviço, são responsáveis solidários seu fabricante, construtor ou importador e o que realizou a incorporação.

No que tange ao nexo de causalidade, este deve ser estabelecido entre o dano sofrido pelo consumidor e o defeito no produto ou serviço, ou seja, os danos a serem indenizados devem ser frutos do produto ou serviço defeituosos. Nas palavras de Sanseverino [143],

[...] deve-se estabelecer uma relação de causa e efeito entre o defeito do produto ou do serviço e os danos sofridos pelo consumidor. O nexo de causalidade constitui exatamente essa relação de causa e efeito que deve existir entre o dano e o defeito do produto ou do serviço.

Por último, importante destacar que também constitui pressuposto da responsabilidade do fornecedor em acidentes de consumo o dano, que, conforme já analisado alhures, pode ser de natureza moral ou patrimonial. Ademais, ressalta-se que é exatamente a figura da vítima do acidente de consumo, ou seja, da vítima dos danos gerados pelo serviço ou produto defeituosos, que delimita, juntamente com as diversas circunstâncias já estudadas, o conceito de consumidor. Quanto à responsabilidade pelo vício, o dano se dá em esfera contratual.

Diferentemente do que ocorre na responsabilidade civil regulada pelo Código Civil de 2002, o sistema de proteção e defesa do consumidor dispensa a presença da culpa para que reste configurado o dever de indenizar. Portanto, em regra, a responsabilidade civil oriunda de relações de consumo é de natureza objetiva. Na realidade, fala-se em responsabilidade legal, já que esta é estipulada pelo CDC como decorrente da violação dos deveres gerais atinentes à relação de consumo.

Segundo Lopez [144],

A responsabilidade legal exclui a responsabilidade contratual, pois tem como fundamento as relações de massa, a vulnerabilidade e a hipossuficiência da vítima e, principalmente, o risco que pesa sobre essa atividade, que tem que ser absorvido pelas pessoas jurídicas.

O Código de Defesa do Consumidor, entretanto, ressalva a responsabilidade dos profissionais liberais, porquanto exige a existência do elemento culpa. É o que se observa das disposições do art. 14, §4º, da Lei 8078/90:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

§ 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.

Trata-se de uma exceção à responsabilidade objetiva do fornecedor. Tal exceção deve-se, principalmente, à proximidade que se espera existir entre o profissional liberal e o consumidor. Como já dito linhas acima ao se analisar o conceito de fornecedor, a relação de consumo, neste caso, é personalíssima, não há a figura do fornecedor desconhecido que controla a produção em massa. É o que ensina Romanello Neto [145], segundo o qual

Explica-se a diversidade de tratamento em razão da natureza intuitu personae dos serviços prestados por profissionais liberais. De fato, médicos e advogados – para citarmos alguns dos mais conhecidos profissionais – são contratados ou constituídos com base na confiança que inspiram aos respectivos clientes. Assim sendo, somente serão responsabilizados por danos quando ficar demonstrada a ocorrência de culpa subjetiva, em quaisquer de suas modalidades: negligência, imprudência ou imperícia.

Cumpre esclarecer, contudo, que, não obstante a exigência da configuração da culpa para a responsabilidade do profissional liberal, aplica-se a tais casos a regra insculpida pelo art. 6, VIII, do CDC, que trata da inversão do ônus da prova como direito básico do consumidor. E isto porque, como dono de todo o conhecimento técnico necessário à execução do serviço ou fabricação do produto, o profissional liberal possui mais condições de demonstrar a ausência de culpa do que o consumidor, desconhecedor da técnica, de provar a sua presença. [146]

Assim, em regra, uma vez verificada a verossimilhança das alegações e a vulnerabilidade do consumidor, que, nesta hipótese, é técnica e quase sempre marcante, deve o juiz inverter o ônus da prova, atribuindo-o ao fornecedor.

Até este ponto, realizou-se um estudo geral sobre a responsabilidade civil. Importa, a partir de então, focalizar a responsabilidade civil do médico a fim de se identificar suas peculiaridades.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Juliana Carrareto Favarato

Bacharel em Direito pelas Faculdades de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAVARATO, Juliana Carrareto. Responsabilidade civil do médico nas cirurgias estéticas à luz do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2080, 12 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12449. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos