SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 CONSTITUIÇÃO FEDERAL – A MISSÃO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA. 2 A USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE PREVISTA NO ART. 24, INCISO XIII DA CF/88. 3 CNJ, ÓRGÃO COM DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL ESTABELECIDA NO ART. 103-B DA CF/88. 4 O ART. 10 DA RESOLUÇÃO NÃO AFASTA A SUA INCONSTITUCIONALIDADE. 5 DIFICULDADES PRÁTICAS NA OPERACIONALIZAÇÃO DA RESOLUÇÃO 62/2009-CNJ. 5.1 O problema em torno da responsabilidade das instituições de ensino pela adequação de espaços para prestação de AJV. 5.2 A ausência de sanções pelo descumprimento dos deveres previstos na resolução e a qualidade dos serviços prestados. 5.3 A falta de fiscalização da não propositura de ações na AJV. 6 EVENTUAL OPOSIÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA À AJV PODERIA SER VISTA COMO CORPORATIVISMO? . CONCLUSÕES. BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
O CNJ aprovou, pela maioria de seus conselheiros, na sessão plenária do dia 10/02/09, a resolução nº. 62, originada de proposta do conselheiro Antônio Umberto de Souza Júnior, a qual disciplina os procedimentos relativos ao cadastramento e à estruturação de serviços de assistência judiciária gratuita. O início da vigência da resolução ocorreu, nos termos de seu art. 20, na data de sua publicação, qual seja, 12/02/2009.
A rigor, a resolução em análise tem como principal objeto a prestação de assistência jurídica aos cidadãos necessitados, por advogados e estagiários voluntários, estes em conjunto com aqueles, sem a percepção de qualquer contraprestação pecuniária dos assistidos ou do Estado.
Diante disso, busca-se demonstrar, através do presente estudo, o caráter inconstitucional de que se reveste o mencionado ato normativo, na medida em que não apenas constitui usurpação às atribuições da Defensoria Pública, mas também configura invasão à competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre assistência jurídica e Defensoria pública.
Além disso, pretende-se evidenciar as diversas dificuldades práticas na operacionalização da Resolução, as quais decorrem principalmente da inexistência de sanções pelo descumprimento dos deveres previstos na mesma e da ausência de mecanismos eficazes de fiscalização dos serviços prestados pelos advogados voluntários.
1 CF – A MISSÃO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
Consoante estabelece o art. 134, caput, da CF/88, incumbe à Defensoria Pública, enquanto instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°, LXXIV. Tal dispositivo, por seu turno, dispõe no sentido da obrigatoriedade da prestação, pelo Estado, de assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Assim sendo, nítida é a intenção do constituinte originário de atribuir exclusivamente à Defensoria Pública a função de concretizar o direito fundamental esculpido no inciso LXXIV, do art. 5°, da Lei Maior, o que deve ser feito através da orientação jurídica e da defesa, em todos os graus, dos cidadãos necessitados.
Assim, impossível, até mesmo por meio de lei, quanto mais mediante simples resolução, instituir uma espécie alternativa de assistência jurídica integral e gratuita, transferindo à iniciativa privada um serviço público atribuído pela Carta Magna a uma instituição constitucionalmente delineada.
Cumpre memorarmos, ademais, que a Defensoria Pública tem o mesmo status constitucional que, por exemplo, o Ministério Público, estando ambas as instituições, inclusive, previstas no mesmo capítulo do título IV da CF/88, qual seja, aquele que trata das funções essenciais à justiça. Da mesma forma, há de se ponderar, a Defensoria Pública não está em patamar inferior, pelo menos constitucionalmente falando, a outros órgãos como a Advocacia Pública, os componentes do grupo Segurança Pública, bem como ao próprio Poder Judiciário.
As aludidas instituições constitucionais também possuem insuficiência de quadros dentre outras deficiências organizacionais e operacionais, mas não se expediu nenhuma resolução que criasse a magistratura voluntária, a atividade ministerial voluntária, ou que retornasse à época em que existiam delegados de polícia ad hoc. Talvez porquanto, em se tratando de Defensoria Pública, a clientela é a mais carente e, via de regra, a menos instruída, aceitando pacificamente, por esta razão, o que lhe for oferecido pelo Poder Público, como se fosse um ato de gentileza e não uma obrigação imposta pela Constituição Federal.
Cabe observar, ainda, que a Resolução em testilha utiliza, aparentemente sem critério, ou talvez propositalmente, não se sabe, as expressões assistência jurídica (art. 1º e primeiro parágrafo dos consideranda) e assistência judiciária (último parágrafo dos consideranda), malgrado estas não configurem conceitos idênticos. Como se sabe, a assistência jurídica integral é bem mais ampla, compreendendo, além da assistência judiciária, que está relacionada à isenção das custas processuais e honorários de advogado, outras atividades, tais como a promoção extrajudicial da conciliação entre as partes em conflitos de interesses e a orientação jurídica em geral (art. 4° da LC 80/94).
O fato é que a utilização das expressões de forma indiscriminada oferece margem a uma exegese no sentido de que a finalidade do ato normativo questionado, mascarada sob o pretexto de resolver o problema carcerário no país, é justamente transferir à iniciativa privada um serviço público destinado exclusivamente à Defensoria Pública enquanto instituição essencial à função jurisdicional do Estado, nos termos da Constituição.
Ademais, não se deve olvidar que a assistência jurídica integral e gratuita de qualidade para os que não dispõem de recursos financeiros suficientes, por ser um direito individual, não pode ser abolida nem mesmo por emenda constitucional (art. 60, §4°, da CF/88). Destarte, tendo em vista, sobretudo, a referência expressa do art. 134, caput, ao inciso LXXIV, do art 5°, ambos da CF/88, cláusula pétrea, não é possível sequer ao poder constituinte reformador deliberar no sentido da supressão, alteração para pior, como no presente caso, através de simples transferência à iniciativa privada, da atribuição constitucional exclusiva da Defensoria Pública. Em outras palavras, só mediante a instauração de nova ordem constitucional é que se pode atribuir, seja a outro órgão público, seja à iniciativa privada, a função de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.
2 A USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE PREVISTA NO ART. 24 DA CF
A CF/88, em seu art. 24, inciso XIII, enuncia caber à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre assistência jurídica e Defensoria pública.
É de clareza solar, pois, a invasão à competência do Poder Legislativo para regrar o assunto relativo à prestação de assistência jurídica. Nesse sentido, data vênia, andou mal o Conselho, extrapolando os limites de sua competência, a qual, conforme será demonstrado a seguir, sequer abrange a atividade jurisdicional, restringindo-se às funções de controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário, bem como de fiscalização do cumprimento dos deveres funcionais pelos magistrados.
Saliente-se, por oportuno, que a Resolução cuja constitucionalidade se discute não guarda qualquer relação com o já sedimentado sistema de controle recíproco entre os poderes (freios e contrapesos). Isso porque inexiste dispositivo constitucional indicando sequer a fiscalização, pelo Conselho Nacional de Justiça, dos Poderes Legislativo e Executivo, quanto mais autorizando que este Conselho exerça a normatização de matéria que, além de inserida na esfera de competências legislativas do primeiro poder mencionado, integra, em caráter exclusivo, a seara de atribuições de instituição vinculada, em princípio, ao segundo.
Como se evidenciará no item subsequente, tanto a competência fiscalizatória, quanto as demais competências atribuídas constitucionalmente ao CNJ, estão restritas ao Poder por ele integrado, qual seja, o Poder Judiciário.
3 CNJ, ÓRGÃO COM DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL ESTABELECIDA NO ART. 103-B-CF
Preliminarmente, há que se reiterar que a competência atribuída constitucionalmente ao CNJ não abarca a regulamentação do exercício da advocacia, nem tampouco o funcionamento do serviço público de prestação de assistência jurídica aos necessitados, direcionado expressamente à Defensoria Pública.
Dessa forma, a edição da resolução 62/2009-CNJ representa flagrante violação ao princípio da harmonia e separação dos poderes, inserto no art. 2° da CF/88, visto que, como dito, um órgão de gestão e fiscalização administrativa e financeira do Poder Judiciário não pode normatizar atividade que é reservada pela Constituição Federal à instituição que está vinculada, pelo menos em princípio, ao Poder Executivo.
Ademais, a própria CF/88, ao delimitar o plexo de atribuições do CNJ no art. 103-B, §4°, alínea "i", dispõe que tal órgão pode expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências.
Certamente que as providências a serem recomendadas também devem estar compreendidas no âmbito da competência daquele conselho, sob pena de invalidade. Assim estabelece o aludido dispositivo constitucional, verbis:
art. 103-B (...)
§ 4º compete ao conselho o controle da atuação administrativa e financeira do poder judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo estatuto da magistratura:
(...)
i - zelar pela autonomia do poder judiciário e pelo cumprimento do estatuto da magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
Não obstante essa expressa delimitação das competências do Conselho, o quarto parágrafo dos consideranda da resolução aduz no sentido da importância da ação conjunta de órgãos que compõem o que ali se designou "sistema de justiça".
Neste particular, partindo da premissa de que o "sistema de justiça" é composto não somente pelo Judiciário, mas também pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelas polícias civil e federal e pelas Advocacias pública e privada, forçoso reconhecer que o CNJ está, de certo modo, se auto-atribuindo a função de emitir regras sobre o funcionamento de cada uma destas instituições, ignorando a determinação constitucional de que tal regulamentação deve se limitar ao corpo de servidores do Poder Judiciário.
Sim porque, se entendermos que o "sistema de justiça" mencionado nos consideranda da resolução compreende todas estas instituições e seus serviços e que o CNJ pode regrá-los como fez com a assistência jurídica neste caso, então o Conselho realmente se transformou num órgão supra-constitucional que, sobrepujando o constituinte originário, vem disciplinar a seu bel prazer instituições de status constitucional, bem como se imiscuir no gerenciamento de suas atividades, que lhes foram acometidas pela Lei Maior.
A extrapolação de competências pelo CNJ é tão absurda que o art. 17 da Resolução 62/2009 chega a estabelecer que as disposições desta aplicam-se, no que couber, ao voluntariado nas áreas de assistência social, psicologia, medicina, contabilidade e pedagogia, o que torna clara a pretensão do Conselho de regular não apenas a assistência jurídica, mas toda e qualquer atividade voluntária.
Ora, se o próprio STF não reconhece nem mesmo a possibilidade jurídica do CNJ intervir na função jurisdicional do Poder Judiciário, instituição à qual pertence e à qual tem a função de reger e fiscalizar administrativa e financeiramente, como se poderia admitir a intervenção na prestação de assistência jurídica gratuita que, frise-se, ainda outra vez, não é atribuição daquele poder, mas da Defensoria Pública? O trecho selecionado do julgado abaixo transcrito bem retrata a interpretação da excelsa corte sobre os limites de atuação do CNJ:
CNJ - Natureza Jurídica - Controle da Função Jurisdicional – Inadmissibilidade (Transcrições) MS 27148 MC/DF* RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
(...) Não se desconhece que o Conselho Nacional de Justiça – embora incluído na estrutura constitucional do Poder Judiciário – qualifica-se como órgão de caráter administrativo, não dispondo de atribuições institucionais que lhe permitam exercer fiscalização da atividade jurisdicional dos magistrados e Tribunais.** Esse entendimento – que põe em destaque o perfil estritamente administrativo do Conselho Nacional de Justiça e que não lhe reconhece competência constitucional para intervir, legitimamente, em matéria de índole jurisdicional (SERGIO BERMUDES, "A Reforma do Judiciário pela Emenda Constitucional nº 45", p. 19/20, item n. 2, 2005, Forense) – foi bem sintetizado na lição de NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY ("Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional", p. 302, item n. 2, 2006, RT): "Conselho Nacional de Justiça. Natureza jurídica. O CNJ é órgão do Poder Judiciário (...), mas ‘sem jurisdição’, vale dizer, é órgão judicial mas não jurisdicional. Órgão administrativo de controle externo do Poder Judiciário e da atividade da Magistratura (...), o CNJ não tem função jurisdicional, cabendo-lhe fiscalizar a gestão financeira e administrativa do Poder Judiciário e o cumprimento do dever funcional dos juízes (...). Ao CNJ não cabe controlar a ‘função jurisdicional’ do Poder Judiciário e de seus membros, razão por que não pode rever nem modificar decisão judicial, isto é, não tem competência recursal (...)."** Essa orientação doutrinária, por sua vez, fundada no magistério de autores eminentes (UADI LAMMÊGO BULOS, "Curso de Direito Constitucional", p. 1.089/1.094, item n. 6.8.1, 2007, Saraiva; NAGIB SLAIBI FILHO, "Reforma da Justiça", p. 283/284, item n. 3, 2005, Impetus; ERIK FREDERICO GRAMSTRUP, "Conselho Nacional de Justiça e Controle Externo", "in" "Reforma do Judiciário: primeiros ensaios críticos sobre a EC n. 45/2004", coordenação de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, LUIZ RODRIGUES WAMBIER, LUIZ MANOEL GOMES JR., OCTAVIO CAMPOS FISCHER e WILLIAM SANTOS FERREIRA, p. 193/194, item n. 4, 2005, RT; SYLVIO MOTTA e GUSTAVO BARCHET, "Curso de Direito Constitucional", p. 733, item n. 6.2, 2007, Elsevier; WALBER DE MOURA AGRA, "Curso de Direito Constitucional", p. 471/474, item n. 26.18, 2007, Forense), tem o beneplácito da jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou a propósito da matéria ora em exame (...) Ministro CELSO DE MELLO Relator
*decisão publicada no DJE de 26.5.2008
**grifou-se
4 O ART. 10 DA RESOLUÇÃO NÃO AFASTA A SUA INCONSTITUCIONALIDADE
O art. 10 da Resolução em análise aduz literalmente: "O exercício da advocacia voluntária, nos termos desta resolução, dar-se-á na ausência de atuação de órgão da defensoria pública".
Sugere a norma que a AJV somente ocuparia espaços onde a Defensoria Pública não estivesse presente, ou nas localidades em que não tivesse estrutura para absorver a demanda por assistência jurídica, de forma que, dentro desta visada, não existiria usurpação das atribuições da Defensoria Pública por pessoas estranhas aos seus quadros.
Ocorre que criar esse mecanismo de suprimento da ausência de Defensores Públicos não implicará, necessariamente, como demonstrado acima, no atendimento de boa qualidade das necessidades da população mais carente, seja por falta da devida capacitação dos profissionais e estudantes que prestarão a AJV, seja pela ausência de mecanismos de controle e fiscalização eficientes dos atendimentos iniciais realizados, quando o advogado entender não ser o caso de ingressar com ação judicial, ou de recorrer em favor do assistido.
Nem se argumente que a OAB exercerá a contento o papel de órgão fiscalizador da AJV, visto que não tem esta importante instituição de índole constitucional cuidado sequer de fiscalizar a qualidade dos cursos jurídicos, que proliferam de forma descontrolada por todo o território nacional, formando diuturna e precariamente novos bacharéis, que não logram sequer aprovação nos exames para adquirir o status de advogado.
De mais a mais, permanece a inconstitucionalidade da norma editada por falta de competência do CNJ para disciplinar a matéria, bem como em razão de usurpar competência legislativa da União, dos Estados e do Distrito Federal, assim como já se demonstrou.
5 AS DIFICULDADES PRÁTICAS NA OPERACIONALIZAÇÃO DA RESOLUÇÃO 62/2009-CNJ
Além do ato normativo em discussão, como já se evidenciou, revestir-se de caráter flagrantemente inconstitucional, são inúmeras as dificuldades práticas na operacionalização do mesmo, entre as quais se destaca a incerteza acerca de quem atribuir a responsabilidade pela reparação de eventuais danos sofridos pelos assistidos em decorrência de assistências prestadas de forma insatisfatória.
No afã de se eximir de tal responsabilidade e, até mesmo por comodidade, as instituições de ensino provavelmente não contratarão advogados, cuja capacitação desconhecem, para a prestação da assistência jurídica voluntária, assim como sugere o art. 6º, §1º da Resolução 62/2009-CNJ. Pelo contrário, lançaram mãos dos professores que já ministram as aulas de prática forense em seus quadros.
A instituição de ensino, certamente, não correria o risco de admitir que advogado estranho aos seus quadros de pessoal prestasse serviços nas dependências de seus estabelecimentos, podendo atrair para si responsabilidade civil por ato danoso causado aos assistidos.
Oportuno indagar: será que tal postura tem o condão de afastar das instituições de ensino a responsabilidade pela reparação das lesões sofridas pelos assistidos? Nesse caso, a quem então deveria ser atribuída a responsabilidade?
É certo que a malsinada resolução não possui qualquer disposição nesse sentido, nem tampouco, consoante se demonstrará, estabelece sanções pelo descumprimento dos deveres nela contidos. O Código Civil de 2002, por sua vez, dispõe, em seu art. 932, inciso III, que o empregador ou comitente é responsável pela reparação dos danos causados por seus empregados ou prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. Por outro lado, não se pode esquecer que a instituição de ensino atua por delegação constitucional, uma vez que o ensino superior constitui típico serviço público. Do mesmo modo, a assistência jurídica gratuita aos necessitados, enquanto dever do Estado (art. 5º, inciso LXXIV, da CF/88), ensejaria a responsabilização objetiva do Poder Público pelas lesões eventualmente causadas aos assistidos.
O fato é que, no caso das Defensorias, havendo dano ao assistido em decorrência de ação/omissão do defensor, não há dúvidas de que a responsabilidade pela reparação do mesmo recai sobre o Estado/União (art. 37, parágrafo 6º, da CF/88).
5.1 O PROBLEMA EM TORNO DA RESPONSABILIDADE DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO PELA ADEQUAÇÃO DE ESPAÇOS PARA PRESTAÇÃO DE AJV
Outro empecilho na implementação das disposições do ato normativo em questão está relacionado à necessidade de disponibilização de espaços, pelas instituições de ensino, para a prestação de AJV.
Convém lembrar que a União e os Estados mal cuidam de organizar como deveriam os espaços para funcionamento das unidades judiciárias (os juizados especiais são exemplo disso e mesmo as varas comuns dos fóruns estaduais e federais), pelo que se supõe que as instituições de ensino não terão qualquer auxílio do Poder Judiciário na estruturação dos espaços para a prestação de AJV e que, por conseguinte, não conseguirão cumprir a contento as determinações feitas nesse sentido pela Resolução 62/2009 – CNJ.
5.2 A AUSÊNCIA DE SANÇÕES PELO DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES PREVISTOS NA RESOLUÇÃ O E A QUALIDADE DOS SERVIÇOS PRESTADOS
Nos exatos termos do art. 12 da resolução sob análise, "O descumprimento das condições estabelecidas nesta resolução, pelo advogado ou estagiário voluntário, no patrocínio dos interesses do assistido, ensejará a exclusão do cadastro, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei".
O transcrito dispositivo, forçoso admitir, é claro quanto a sanção a que se submetem os advogados e estagiários voluntários quando do descumprimento das condições impostas pela resolução, qual seja, a simples exclusão do cadastro. Isso sem mencionar o fato de que nenhum órgão é designado para exercer a fiscalização da atuação dos advogados e estagiários enquanto prestadores da AJV, o que torna a mencionada sanção, além de pouco rigorosa, totalmente inócua.
Diante de tais circunstâncias, mister ressaltar que o constituinte originário, ao reservar para o Estado, por intermédio da Defensoria Pública, a tarefa de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem insuficiência de recursos, foi motivado não apenas pelo fato de que uma atividade sem fins lucrativos não fomenta a atuação da iniciativa privada, mas também pela razão de que pessoas carentes geralmente são menos instruídas, tendo menos condições de constatar eventuais lesões a seus direitos, o que impõe um sistema de fiscalização mais incisivo e melhor estruturado através do Poder Público.
Outra questão que não merece ser aviltada concerne à qualidade dos serviços a serem prestados na AJV. Neste passo, é sabido que durante anos o serviço público de assistência jurídica aos necessitados fora abandonado exclusivamente aos cuidados de advogados dativos que nem sempre se mostraram devidamente qualificados para tal mister.
Ao contrário, os Defensores Públicos são submetidos a rigoroso concurso público de provas e títulos, sendo certo que apenas os melhores candidatos ingressam nos quadros da Defensoria Pública, o que garante aos assistidos a qualidade dos serviços prestados.
Por outro lado, é imperioso reconhecer que os advogados que se predisporão a prestar a chamada AJV certamente não serão aqueles que se encontram estabelecidos no mercado com escritório próprio ou como advogado empregado. Ou seja, inevitavelmente, a AJV será, via de regra, prestada por profissionais que se encontram à margem do mercado de trabalho, porque não encontraram colocação no mesmo e que têm como desiderato o recebimento de honorários sucumbenciais, cuja percepção não é vedada pela resolução.
Isto não torna certo que a qualidade dos serviços prestados na AJV serão de menor qualidade sempre, mas é um indicativo de que, na maioria das vezes, os melhores profissionais da área jurídica não estarão à frente das causas de interesse das pessoas necessitadas.
Obviamente que se poderá argumentar no sentido de que é melhor ter algum advogado, independentemente de sua qualificação, do que não ter advogado nenhum. Ocorre que tal raciocínio é perigoso. Quem milita no foro sabe que a perda de um prazo, ou a condução equivocada do processo, por exemplo, pode, na prática, retirar o direito de quem em tese o tem.
A parte que tem ao seu lado um profissional devidamente selecionado e capacitado tem maiores chances de obter um resultado mais proveitoso, ainda mais se considerarmos o quão intrincado e amplo é nosso ordenamento jurídico.
Apenas para se ter idéia, no último concurso para preencher 61 vagas de Defensor Público da União, apresentaram-se 13.193 candidatos, resultando numa concorrência de 216,28 candidatos por vaga, conforme dados constantes do site da Defensoria Pública da União na internet.
Nessa perspectiva, não há dúvidas de que o processo seletivo é rigoroso e que o candidato ao final aprovado dispõe de qualidade profissional devidamente aferida, estando, portanto, apto a representar judicial e extrajudicialmente os interesses dos assistidos.
Igualmente, os estagiários que laboram nos quadros da Defensoria Pública da União são selecionados mediante processo seletivo de caráter público, o que garante a qualidade do trabalho desenvolvido sempre sob a supervisão do Defensor Público.
Sem querer desmerecer os advogados e estagiários que se habilitarem à prestação da AJV, é forçoso concluir que tal fórmula de prestação de assistência jurídica aos necessitados nem de perto se compara, em termos de garantia de qualidade, ao sistema de "staff" adotado pelo constituinte de 1988, com a instituição da Defensoria Pública como órgão responsável pela assistência jurídica integral aos necessitados.
5.3 FALTA DE FISCALIZAÇÃO DA NÃO PROPOSITURA DE AÇÕES NA AJV
Consoante estabelece o art. 11 da Resolução 62/2009-CNJ, o advogado voluntário, quando entender que não cabe a propositura de determinada ação, tem o dever de apresentar ao assistido justificação própria, por escrito.
Ora, a supracitada norma só faz reforçar o argumento de que não há qualquer mecanismo efetivo de fiscalização das atividades a serem desenvolvidas pelos advogados voluntários, seja porque nenhuma instituição ou órgão é designado para realizar a análise da aludida justificação, seja porque o assistido, em função de sua pouca instrução, muitas vezes nem mesmo será capaz de identificar lesões aos seus direitos.
Na Defensoria Pública da União, por exemplo, existe um rigoroso controle de arquivamentos em que o Defensor Público, ao indeferir o pedido de assistência jurídica que lhe fora apresentado pelo cidadão e arquiva-lo, deve levar o respectivo ato ao conhecimento do Defensor Público Geral da União – DPGU - para que este possa analisá-lo.
Caso o ato de indeferimento não seja referendado, o DPGU devolve o caso aos cuidados da unidade da Defensoria de origem para prestar a assistência jurídica nos termos que forem estabelecidos, respeitada a independência funcional do Defensor que indeferiu a assistência originalmente.
No caso da AJV, tendo em vista os termos em que a resolução se encontra redigida, parece mesmo que o assistido ficará sem propor a ação pretendida, muitas vezes possível e viável do ponto de vista jurídico, porquanto não há qualquer ato de revisão do atendimento inicial realizado por advogados e estagiários voluntários.