Em seu romance Ensaio sobre a cegueira, José Saramago descreve uma cegueira metafórica, onde alguns cegos não o são apenas dos olhos, também o são do entendimento e assim difundem o seu mal como ocorre quando um olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê.
Pois nesse mundo, agora no nosso, alguns (ou muitos!) querem impor um novo padrão contábil – NPC a todas as sociedades brasileiras, em que pese inexistir norma jurídica dispondo nesse sentido (seria o olho cego transmitindo a cegueira?).
Nesse fluxo, há que se anotar que não é permitido a quem quer que seja aplicar as leis em sua literalidade, mesmo que por amor. Há que investigar seu significado contextual, ou melhor, é preciso examinar todos os seus cantos, analisando todos os seus recantos, perscrutamos todas as suas sombras; passando pelo texto sim, mas muito além, mergulhando fundo e demoradamente no seu contexto.
Afinal, esse desarrazoado NPC é aplicável a todas as empresas nos termos da LEI?
Como elemento inicial nossa Magna Lex autoriza que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ou seja, se a lei não obrigar a adoção do NPC...
Dando um passo adiante, a Lei 6.404/76, com alteração pela Lei 11.638/07 e realteração pela MP 449/08, positivou no direito pátrio as novas práticas contábeis, (ou NPC).
Esse NPC, complexo e carente, de acordo com autores de escol só se aplica as S/A, as LTDA de grande porte e as LTDA tributadas pelo Lucro Real, estas últimas independentemente se de grande, médio ou pequeno porte.
No que diz respeito às LTDA tributadas pelo Lucro Real, para legitimar a adoção compulsória deste NPC, aqueles se socorrem no inciso XI, art. 67 do Decreto-lei nº 1.598/77, assim ementado: O lucro líquido do exercício deverá ser apurado, a partir do primeiro exercício social iniciado após 31 de dezembro de 1977, com observância das disposições da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
Legitimar a vigência deste dispositivo é enterrar o Código Civil Brasileiro e fazer tábula rasa da Lei de Introdução ao Código Civil.
Ora, o Direito de Empresa, inserido no Código de 2002, encontra-se completamente articulado pela imputabilidade deôntica do dever-ser, qual seja, as sociedades empresárias são obrigadas a possuir contabilidade. Cumpre acrescentar, é neste Código que as LTDA encontram a incidência jurídica da contabilidade, bastando, para isso, verificar que o art. 1.179 deste diploma prescreve que as sociedades empresárias são obrigadas a possuir contabilidade, e a levantar anualmente balanço patrimonial e o de resultado econômico.
Mantendo-se nessa linha de raciocínio, vejamos que o art. 176 da Lei das S/A dispõe que ao fim de cada exercício social, a diretoria fará elaborar com base na escrituração mercantil da companhia, o balanço patrimonial, a demonstração de resultado do exercício, e outras.
Fácil verificar que as LTDA encontram-se obrigadas a manter contabilidade em decorrência do Código Civil, não pelo dispositivo contido na Lei das S/A.
Com reflexo imediato, a vigência do Código Civil Brasileiro derrogou (não confundir com revogação) o inciso XI, art. 67 do DL nº 1.598/77.
Aplica-se, no caso concreto, o princípio da especialidade, critério elementar de solução de antinomias (aparentes) entre regras jurídicas.
Em estreita síntese, é preciso deixar claro, que o inciso XI, art. 67 do DL nº 1.598/77, descrito como fonte de obrigação do NPC para as LTDA tributadas pelo lucro real, não é válido para juridicizar seus fatos, pois está derrogado.
Com efeito, é no Código Civil, não na Lei das S/A, que se encontra a incidência jurídica da contabilidade, e do lucro líquido, para as LTDA.
Desprezar as normas do Direito de Empresas, prescritas no Código Civil, é reduzi-las a inutilidade, observando que à regra hermenêutica nos ensina que: prefira-se a inteligência dos textos que torne viável a sua finalidade, em vez daquela que os reduz à inutilidade.
Dando um passo à frente, é importante notar que o lucro líquido, apurado com base nas normas jurídicas (não confundir normas jurídicas com leis), deverá ser ajustado, para que se encontre o lucro real, ou lucro tributável, nos termos do que determina o art. 37 da Lei nº 8.981/95.
No plano do dever-ser, essa determinação de apuração do lucro real, em nenhum momento, remete as LTDA ao cumprimento de obrigações da Lei das S/A, inclusive daquele NPC.
Nesse encalço, em respeito ao Princípio da Legalidade, como forma de preservação da segurança jurídica, não há qualquer enunciado prescrito positivado que dê suporte à obrigação de adoção do NPC às sociedades LTDA, tributadas ou não pelo Lucro Real.
Patente, pois, a falácia da Resolução CFC 1.159/09 ao dispor que todos estão obrigados a este NPC. Ou como bem anota a doutrina, é país em deterioração todo aquele em que os homens passam acima das leis, e todo esforço é pouco para se salvar o Brasil da onda de desrespeito às leis.
Por derradeiro, fico com as palavras de Ricardo Mariz de Oliveira, para quem "se não tomadas determinadas medidas [sobre o NPC], poder-se-á chegar ao absurdo de nossos balanços serem entendidos lá fora e não serem entendidos aqui dentro".