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Uso, para outros fins, de áreas recebidas pelo Município em processos de loteamento

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Deve-se entender como possível a desafetação de áreas recebidas pelos Municípios em processos de loteamento, se presente o interesse público, em face da autonomia municipal e diante da inexistência de impedimento da Lei Federal.

Anota Fábio Nadal Pedro que "O tema se situa numa zona de incerteza (L. A. Hart), havendo, in casu, inegável tensão dialética (Sérgio Ferraz) sobre a questão (possibilidade de desafetação versus impossibilidade de desafetação)." (In Possibilidade de alteração da qualificação jurídica de bem público municipal face ao disposto no art. 180, inciso VII, da Constituição do Estado de São Paulo, publicado no sítio Jus Navigandi, da internet, em http://jus.com.br/artigos/2014).

Quando a Lei nº 6.766/79 exige, nos loteamentos, a destinação de áreas para a implantação de sistemas de circulação, de equipamentos urbanos e comunitários, bem como de espaços livres de uso público, proporcionais à densidade de ocupação da gleba, tal como previsto no plano diretor ou na lei referente à zona de situação do imóvel (art. 4º), impõe uma regra cuja intenção é garantir condições adequadas de urbanização. Deseja, de um lado, obrigar o cumprimento da legislação urbanística existente e, de outro, proteger os interesses dos que vão residir no loteamento, aos quais são devidas condições básicas para o exercício da vida comunitária, da cidadania e da inserção no meio urbano.

A alteração da categoria de uso das áreas só pode ser realizada mediante lei. Neste sentido é a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

"Administrativo. Desafetação de bens públicos. Art. 17 da Lei nº 6.766/79. O comando contido no art. 17 da Lei nº 6.766/79 dirige-se ao loteador, proibindo-o de alterar a destinação dos espaços livres de uso comum. A municipalidade poderá fazê-lo, desde que por regular autorização legal." (Negrito acrescido, RESP nº 33.493-SP, 1ª T., Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, in DJU de 13.12.93).

O art. 17 da Lei, com efeito, reza:

"Art. 17. Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a aprovação do loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da licença ou desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas as exigências do art. 23 desta Lei".

A regra é endereçada ao loteador, tal como consta do grifo acrescido. Se geral fosse a regra, dirigida a todos ou dirigida, também, ao Município, a expressão "pelo loteador" seria desnecessária, sendo certo que as leis não possuem palavras ou expressões desnecessárias, inócuas, sem sentido. Se, na hipótese presente, diz a norma "pelo loteador", a proibição contida no artigo é destinada, única e exclusivamente, ao loteador.

Apesar disso, alguns interpretam que a autorização legal para a desafetação da categoria de bem recebido pelo Município, para o fim de lhe dar destinação diferente da originalmente prevista, necessária em todos os casos, pode não ser suficiente com relação às áreas transferidas em processos de loteamento. Nessa alternativa, pode ser exigível a prévia concordância dos adquirentes de lotes (art. 28 de Lei nº 6.766/79).

Diz o mencionado art. 28: "Qualquer alteração ou cancelamento parcial do loteamento registrado dependerá de acordo entre o loteador e os adquirentes de lotes atingidos pela alteração, bem como da aprovação pela Prefeitura Municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, devendo ser depositada no Registro de Imóveis, em complemento ao projeto original, com a devida averbação".

Impõe-se a regra diante do fato de que, ao adquirir o lote, o comprador torna-se titular do uso e gozo de uma parcela de terras inserida num conjunto, o loteamento, que segundo o projeto, aprovado pela Prefeitura e inscrito no Registro de Imóveis, contém áreas verdes, áreas destinadas a equipamentos públicos e comunitários e um arruamento pré-definido. Qualquer alteração no loteamento afeta, desse modo, o direito de cada qual dos adquirentes, conforme ensina José Afonso da Silva:

"A inscrição do loteamento produz os seguintes efeitos urbanísticos: a) legitima a divisão da gleba em lotes, com a «perda da individualidade objetiva do terreno loteado e a aparição das individualidades objetivas dos lotes»; b) «torna imodificável unilateralmente o plano de loteamento e o arruamento»; c) transfere para o domínio público do Município e torna inalienáveis, por qualquer título, as vias de comunicação, e os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes dos planos de arruamento e loteamento e do memorial, independentemente de qualquer outro ato alienativo.

(...)

As modificações no plano de loteamento... são geralmente admitidas, mediante autorização da Prefeitura, desde que se observem as normas vigentes sobre o assunto, bem como do adquirente de lote...". (In Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, pp. 391-3).

Veja-se, contudo, que a lei fala dos "adquirentes de lotes atingidos pela alteração". Não de todos os adquirentes de lotes, salvo se todos forem atingidos, o que não corresponde ao intuito ou à previsão da lei, que os individualiza.

Só em casos muito específicos pode a desafetação ser anulada, como ocorreu no seguinte caso:

"Ação popular. Área de lazer de loteamento doada pelo Município, com aprovação da Câmara, para construção de escola de natação, com subseqüente obstrução da via pública pela construção. Desafetação que não atende ao interesse público, descumprimento das normas constitucionais e infraconstitucionais. Ilegalidade. Desvio de finalidade.

Lesividade ao patrimônio público. Área verde e institucional desrespeitada. Anulação da legislação municipal pertinente. Garantia de livre acesso à via pública. Ação procedente. Sucumbência dentro dos parâmetros legais. Recursos improvidos." (TJSP, Ac. 024.180.5/4, 7ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Jovino de Sylos Neto, j. em 02.04.01, in Interesse Público, ano 3, nº 10, abril/junho de 2001, Sapucaia do Sul: Notadez, 2001, p. 219).

Na hipótese acima, estava em jogo regra específica da Constituição do Estado de São Paulo, que dispõe: "Art. 180. No estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano, o Estado e os Municípios assegurarão: (...) VII – as áreas definidas em projetos de loteamento como áreas verdes ou institucionais não poderão, em qualquer hipótese, ter sua destinação, fim e objetivos originalmente estabelecidos alterados".

Ou seja: a decisão estava escudada em regra somente válida para o Estado de São Paulo. Mas cumpre transcrever, também, a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

"Administrativo. Loteamento. Logradouros públicos incorporados ao patrimônio Municipal (Lei nº 6.766/1979 – art. 22). Alienação. Hipótese em que é possível. I – O Município não pode alienar livremente os logradouros incorporados a seu patrimônio, por efeito de loteamento (Lei nº 6.766/1979 – art. 22). Tal alienação pressupõe consentimento favorável dos adquirentes dos lotes atingidos (art. 28). À mingua de concordância, o Município só pode consumar a alienação indenizando os adquirentes prejudicados. (...)". (RESP 95.300-SP, 1ª T., Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, in DJU de 18.11.96, p. 44.849).

Da análise das decisões acima, pode-se dizer, em primeiro lugar, que as eventuais alterações de uso das áreas recebidas pelo Município, destinadas a equipamentos públicos ou áreas verdes, devem atender ao interesse público, e, de modo especial, devem atender aos reclamos e necessidades dos adquirentes dos lotes.

Há casos, contudo, em que os loteamentos já se encontram ou passam a ser servidos pelo conjunto das facilidades urbanas referentes à saúde, educação, lazer e demais exigências, não se justificando o uso das áreas reservadas ao uso público, para a implantação de novos equipamentos. De outro lado, pode ocorrer que as áreas recebidas pelo Município não se prestem aos fins originalmente previstos, em face de sua posição ou características físicas ou em face de suas dimensões.

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Em tais hipóteses é razoável admitir a desafetação das áreas e sua alienação ou permuta, de modo a permitir, ao Poder Público, melhor organizar o uso do solo da cidade e atender aos interesses públicos da coletividade.

Ao mesmo tempo, se não ocorrer prejuízo para os adquirentes de lotes, incabível a indenização, posto que esta só é válida, só se justifica na ocorrência de danos. Inexistindo esses, não cabe cogitar-se de indenização.

Cabe, por isso , trazer a lume as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:

"Administrativo. Ação Civil Pública. Loteamento Urbano. Desafetação dos espaços públicos. Alegação de ofensa ao Art. 17 da Lei N. 7.347/85. Inexistência. Art. 1° da Lei N. 7.347/85. Matéria probatória. Recurso não conhecido." (REsp nº 28058, Relator Ministro Adhemar Maciel, Segunda Turma, DJU de 18.12.98, p. 314).

"Recurso ordinário. Mandado de segurança. Registro de imóveis. Matrícula. Bem público. Desafetação. Permuta. 1. O imóvel foi adquirido pelo Poder Público de forma originária, por afetação decorrente da implantação de loteamento aprovado. Após, houve a desafetação do bem em regular processo legislativo, tornando-o bem dominical, passível de alienação. 2. Da escritura pública de permuta constou expressamente que as partes contratantes autorizam o Oficial do Registro de Imóveis "a promover abertura de matrícula do imóvel dado em permuta a Orlando Anteghini e sua Mulher, como de origem no loteamento mencionado". Assim, a abertura de matrícula do imóvel em nome do Município de Leme/SP e o posterior registro da permuta celebrada entre o referido Município e Orlando Anteghini e sua mulher atende ao disposto no artigo 228 da Lei nº 6.015/73, não se ferindo o princípio da continuidade, além de evitar a restrição ao negócio regularmente celebrado, obedecidos os preceitos legais pertinentes. A escritura de permuta, portanto, não contém qualquer vício que impeça o registro da transação, revelando-se claro o direito do impetrante a obter junto ao Cartório do Registro de Imóveis a matrícula do imóvel em questão e o conseqüente registro da permuta. 2. Recurso ordinário conhecido e provido." (RMS 12958/SP - Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito - Terceira Turma, DJU de 31.03.03, p. 213).

Em suma: o art. 17 dirige-se, tão somente, ao loteador e o art. 28 é restrito aos adquirentes de lotes atingidos pela alteração.

Nada há que possa impedir o Município de continuar a, nos casos em que for julgado necessário e com a devida justificativa, autorizar e executar a desafetação de áreas de loteamentos, recebidas para a implantação de equipamentos comunitários ou áreas verdes, e sua venda ou permuta, mesmo porque a lei não impede tais atos, tendo elas sido admitidas por decisões do Superior Tribunal de Justiça. Argumentar ao contrário significa dizer que a sociedade não progride, que os comportamentos são imutáveis, que as necessidades de hoje serão as mesmas no final da próxima década.

Cabe, por último, dizer que a Constituição de 1988 concedeu plena autonomia ao Município (art. 18), assim explicitada por Hely Lopes Meirelles:

"a autonomia administrativa confere ao Município a faculdade de organizar e prover seus serviços públicos locais, para a satisfação das necessidades coletivas e pleno atendimento dos munícipes, no exercício dos direitos individuais, e no desempenho das atividades de cada cidadão. Essa autonomia abrange a prerrogativa de escolha das obras e serviços a serem realizados pelo Município, bem como do modo e forma de sua execução, ou de sua prestação aos usuários." (in "Estudos e Pareceres de Direito Público, cit. por Fábio Pedro Nadal, opus cit.)

E aduz Fábio Pedro Nadal: "Logo, a destinação dos bens públicos integrantes do patrimônio municipal possuem destinação cambiável, segundo os superiores interesses da comuna. Com efeito, Alfredo Buzaid, citado pelo Des. Oetterer Guedes, ensina :"O bem público de uso comum pode sofrer modificações em sua qualificação jurídica, e tornar-se alienável, sempre que a Municipalidade, para atender a fins urbanísticos, lhe retire a condição de bem de uso comum, por lei especial devidamente sancionada pelo Chefe do Executivo." (TJ/SP – ADIn nº 39.949-0/0-00 – São Paulo – voto nº 17.309)

Na mesma trilha, Vicente Ráo consigna : "É preciso considerar-se que os bens públicos conservam sua qualificação peculiar, enquanto realizam o destino correspondente à sua respectiva categoria, perdendo-a, conseqüentemente, quando, por determinação legal, receberem destino outro ou diverso." (in "O Direito e a Vida dos Direitos" apud, Des. Oetterer Guedes, TJ/SP, ADIn nº 39.949-0/0-00 – São Paulo – voto nº 17.309)".

Em face de sua autonomia; diante da Lei de Loteamentos (Lei Federal nº 6.766/79); e em face dos entendimentos do Superior Tribunal de Justiça, nada há, repita-se, que possa impedir o Município realizar a desafetação de áreas de loteamentos, recebidas para a implantação de equipamentos comunitários ou áreas verdes, e sua venda ou permuta.

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Sobre o autor
Affonso de Aragão Peixoto Fortuna

Consultor Jurídico do IBAM, Procurador-Geral Adjunto do Município de Joinville,SC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FORTUNA, Affonso Aragão Peixoto. Uso, para outros fins, de áreas recebidas pelo Município em processos de loteamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2094, 26 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12528. Acesso em: 29 mar. 2024.

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