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Da mutação jurisprudencial. Da compatibilidade do furto qualificado-privilegiado

27/03/2009 às 00:00
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Um dos pontos controvertidos na individualização da pena no crime de furto sempre foi sobre a compatibilidade das qualificadoras do § 4º do artigo 155 do Código Penal com o privilégio previsto no §2º, sendo que doutrina e jurisprudência sempre divergiram quanto a possibilidade ou não da sua incidência.

A divergência reflete em julgamentos díspares nos Tribunais Estaduais. Basta, para tanto, uma pesquisa no Tribunal de Justiça de Minas Gerais [01] e no Tribunal de Justiça de São Paulo [02]. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, uma das Turmas decidiu ora pela compatibilidade [03] ora pela incompatibilidade [04], sendo que prevalece a impossibilidade, sob o argumento da alegada autoridade da jurisprudência dos Tribunais Superiores [05].

Com efeito, é verdade que mesmo o Superior Tribunal de Justiça sempre teve decisões conflitantes – enquanto a Sexta Turma decidia pela compatibilidade [06], a Quinta Turma decidia pela impossibilidade [07], e é o que prevalecia até há pouco tempo nos precedentes [08]

A doutrina majoritária é pela plena compatibilidade da incidência do privilégio no furto qualificado, entre os favoráveis: Guilherme de Souza Nucci [09], Fernando Capez [10], Àlvaro Mayrink da Costa [11], Rogério Greco [12], Sergio de Oliveira Médice [13], Cezar Roberto Bitencourt [14] e Damásio E. de Jesus [15].

Como relevante, tem-se de considerar que, entre os fundamentos da impossibilidade, na linha de precedentes no Superior Tribunal de Justiça, o Min. Felix Fischer [16] tem asseverado que o desvalor da conduta sobrepõe-se ao desvalor do resultado, que só tem preponderância quando carecer de relevância jurídica. Ou seja, quando o valor da res for irrelevante - e já foi decidido que R$42,00 é irrelevante [17] - mesmo para o furto qualificado, aplica-se o princípio da insignificância para absolver o agente pela atipicidade material. Mas, se de pequeno valor, mesmo quando o agente é primário, deve ser condenado e sofrer os efeitos negativos (estigmas) desta decisão.

Sem levar em consideração os efeitos da compatibilidade, bem como na análise da verificação da ofensa ao bem jurídico (desvalor do resultado) na individualização da pena, há necessidade de verificar um dos precedentes do Supremo Tribunal Federal.

No RE nº 91.788-8/SP - Rel. Carlos Thompson Flores j. 26/02/1980, dando conta da implantação do finalismo (Welzel), onde o desvalor da ação tinha importância preponderante em relação ao resultado, foi decidido pela incompatibilidade do furto qualificado-privilegiado.

Como pontuamos [18], no juízo de valoração negativa do ilícito penal deve-se ter em mente duas análises: o desvalor da conduta e do resultado; e, ao contrário do que sustentava Welzel [19], o desvalor do resultado tem importância fundamental, principalmente no juízo de tipicidade, de reprovação e individualização da pena.

Na oportunidade, com força em vasta doutrina, destacou-se que o injusto penal não é só desvalor da ação, mas também do resultado, e que dependendo do caso, na interpretação teleológica, sem ofensa real e relevante ao bem jurídico, não há injusto penal.

Logo, mesmo quando a ação tenha uma valoração negativa intensa, as condições pessoais do agente podem sofrer valoração significativa na individualização da pena (juízo de reprovação), principalmente quando não há ofensa relevante ao bem jurídico tutelado.

Portanto, na individualização da pena o magistrado deve levar em consideração circunstância favorável ao agente (primariedade), o delito cometido e o dano causado, caso típico do furto qualificado-privilegiado.

Se não é possível a aplicação somente da multa, não há óbice em diminuir até 2/3 sobre a pena-base do furto qualificado, possibilitando em tese a suspensão condicional do processo, instituto apto a creditar na possibilidade de reflexão do ato sem os efeitos da condenação.

O entendimento da impossibilidade deixa de analisar a nova sistemática do direito penal contemporâneo, pois basta uma simples reflexão sobre a incidência da nova causa de diminuição da pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, que mesmo no caso de desvalor intenso da conduta (venda, transporte, depósito e guarda de droga), a pena pode restar, em tese, em 1 ano e 8 meses, considerando circunstâncias favoráveis ao agente.

Porém, os Tribunais Superiores vêm mudando o posicionamento, dando plena compatibilidade do furto qualificado-privilegiado.

No Supremo Tribunal Federal, restou decidido no HC 94765 a compatibilidade do furto qualificado-privilegiado, apenas enfatizou-se a impossibilidade da conversão ou aplicação somente de multa. [20], sendo que recentemente decidiu-se pela plena compatibilidade, como decidido no HC nº96752 [21] e nº 96843 [22].

No Superior Tribunal de Justiça, o informativo nº0379, de 1º a 5 de dezembro de 2008, traz decisão da Quinta Turma, no HC 96.140/MS – Rel. Jorge Mussi, j.2.12.2008, no sentido de ser possível a aplicação simultânea do privilégio e da citada qualificadora.

Portanto, esperamos que estas decisões efetivamente sirvam de fonte para modificação do entendimento da incompatibilidade, em plena ascensão do status constitucional do princípio da justa individualização da pena, e na possibilidade de creditar ao agente (primário) a proposta de suspensão condicional do processo.

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Notas

  1. Compatível: TJMG – Apelação Criminal nº1.0024.06.309161-5/001 – 5º Câmara Criminal, Rel. Alexandre Victor Carvalho, j.14.10.2008; Incompatível: TJMG – Apelação Criminal nº 1.0525.04.063554-8/001 – 1º Câmara Criminal, Rel. Judimar Biber, j.29.07.2008.
  2. Compatível: TJSP – Apelação Criminal nº993060033166 – 5º Câmara Criminal B, Rel. Benedito Roberto Garcia Pozzer, j.17.11.2008; Incompatível: TJSP – Apelação Criminal nº993060683497 – 6º Câmara Criminal, Rel. José Raul Gavião de Almeida, j.27.11.2008.
  3. TJMS – Apelação Criminal nº 2006.011463-7/000-00, Primeira Turma Criminal, Rel. Gilberto da Silva Castro, unânime. j. 29.8.2006. No mesmo sentido: TJMS – Apelação Criminal nº 2007.012295-0/0000-00, Primeira Turma Criminal, Rel. Gilberto da Silva Castro, unânime. j.  19.6.2007.
  4. TJMS – Apelação Criminal nº 2006.019267-9/0000-00, Primeira Turma Criminal, Rel. Marilza Lúcia Forte, unânime. j. 13.2.2007.
  5. TJMS – Apelação Criminal nº 2008.024262-6/0000-00, Primeira Turma Criminal, Rel. Marilza Lúcia Forte, j. 07.10.2008; No mesmo sentido: TJMS – Apelação Criminal nº 2008.016238-0/0000-00, Segunda Turma Criminal, Rel Carlos Eduardo Contar, j. 06.10.2008.
  6. REsp 237.918/SP, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 06/08/2002, DJ 04/08/2003 p. 445; Idem: REsp 292.438/MG, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 16/04/2002, DJ 06/05/2002 p. 334.
  7. REsp 479.695/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/11/2003, DJ 01/12/2003 p. 393.
  8. HC 102.863/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 25/09/2008, DJe 20/10/2008; REsp 736.340/SP, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 17/12/2007, DJe 04/08/2008; REsp 931.733/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 28/06/2007, DJ 01/10/2007 p. 365.
  9. NUCCI, Guilherme de Souza, Código Penal Comentado, 4ª ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.522.
  10. CAPEZ, Fernando, Curso de Direito Penal, Parte Geral, V.2, São Paulo: Saraiva, 2003, p.362.
  11. COSTA, Álvaro Mayrink, Direito Penal, Parte Geral, v.1, 7ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.480.
  12. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial, V. III, 2ª Ed. Impetus, 2006, p.25.
  13. MÉDICI. Sérgio de Oliveira. Teoria dos Tipos Penais. Parte Especial do Direito Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.98.
  14. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Especial, v.3, São Paulo: Saraiva, 2003, p.25.
  15. JESUS. Damásio E. Direito Penal. V. 2, Parte Especial, 27º Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.324.
  16. REsp 931.733/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 28/06/2007, DJ 01/10/2007 p. 365; REsp 693.158/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 07/04/2005, DJ 06/06/2005 p. 366.
  17. HC 111.037/MS, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA, julgado em 02/10/2008, DJe 20/10/2008.
  18. DUCCINI. Clarence Willians. Novos Rumos do Direito Penal. www.defensoria.ms.gov.br
  19. WELZEL, Hans, O novo Sistema Jurídico –Penal – São Paulo: Revista dos Tribunais 2001.
  20. STF: Informativo nº 519 de, 8 a 12 de setembro de 2008
  21. STF – HC nº96752 – Segunda Turma - Rel. Eros Grau, j. 17.03.2009.
  22. STF – HC nº 96843 – Segunda Turma – Rel. Ellen Gracie, j.24.03.2009.
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Sobre o autor
Clarence Willians Duccini

Defensor Público no Estado de Mato Grosso do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUCCINI, Clarence Willians. Da mutação jurisprudencial. Da compatibilidade do furto qualificado-privilegiado. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2095, 27 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12540. Acesso em: 5 nov. 2024.

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