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Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová.

Uma gravíssima violação de direitos humanos

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01/04/2009 às 00:00
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15 - PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS DE RESPEITO À AUTONOMIA DO PACIENTE NO EXTERIOR E NO BRASIL

A voo de pássaro, ver-se-á a seguir precedentes jurisprudenciais no exterior e no Brasil em que foi reconhecido o direito de o paciente recusar tratamentos médicos à base de transfusões de sangue. Gize-se que no direito anglo-americano, devido a uma tradição liberal de forte respeito aos direitos individuais, os precedentes dessa natureza abundam, ao contrário do que acontece em países do Terceiro Mundo, em que a tradição é justamente o escasso respeito aos direitos humanos.

a) ESTADOS UNIDOS

Caso Brooks - Devido a uma úlcera, paciente Testemunha de Jeová solicitou atendimento médico. Por repetidas vezes alertou ao médico de sua negativa em receber tratamento com sangue, inclusive firmando um documento de exoneração da responsabilidade do profissional. O médico, sem informar previamente à paciente, transfundiu sangue. Levado o caso à via judicial, o Tribunal de Apelação do Estado de Illinois afirmou que a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos protege o direito de cada indivíduo à liberdade de sua crença religiosa e seu respectivo exercício. Aduziu-se que a ação governamental só poderia embaraçar tal direito quando estivesse em perigo, clara e atualmente, a saúde, o bem-estar ou a moral pública.

Esta foi a primeira decisão de uma corte de apelação nos Estados Unidos em que se reconheceu o direito de um paciente da religião Testemunhas de Jeová a recusar transfusões de sangue não desejadas.

b) CANADÁ

Caso Mallete v. Schulman (Ontario Court of Appeal, 72 O.R 2d 417, 1989) – Em consequência de um acidente automobilístico, uma Testemunha de Jeová sofreu graves ferimentos. Na sala de emergência do hospital foi encontrada uma diretriz médica, por ela firmada, de que não aceitaria tratamento médico à base de sangue, mesmo que em situação de emergência. O médico do turno, de forma deliberada, ignorou tal manifestação de vontade, transfundindo sangue no paciente. A filha adulta da paciente havia objetado energicamente a tal transfusão de sangue, mas mesmo assim o médico não se furtou de fazê-la. Quando a paciente se recuperou, demandou o médico por administrar-lhe sangue sem o seu consentimento. A Corte resolveu o caso em favor da paciente, condenando-lhe ao pagamento de vinte mil dólares canadenses pelos danos ocasionados.

O médico apelou da decisão, mas o Tribunal de Apelação de Ontário rechaçou seus argumentos, reafirmando o direito de o paciente decidir a respeito do seu próprio corpo: ‘Um adulto capaz geralmente tem o direito de recusar um tratamento específico ou qualquer tratamento, ou de selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que essa decisão possa acarretar consigo riscos tão sérios como a morte ou possa parecer equivocada aos olhos da profissão médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o paciente quem tem a palavra final quanto a submeter-se a tratamento’.

Além de confirmar o direito do paciente de decidir sobre o seu próprio corpo em caso de iminente risco de vida, o Tribunal de Apelação destacou que a Diretriz Médica Antecipada é uma forma de comunicar os desejos do paciente em uma emergência quando não possa se expressar.

c) CHILE

No artigo AUTONOMÍA DEL PACIENTE: EJEMPLO DE LOS TESTIGOS DE JEHOVÁ (reimpresso com permissão da Revista Chilena de Cirurgía (2003; 55 (5): 537-542), AVELINO REMATALES nos fornece dois notáveis exemplos de como o princípio da autonomia da vontade do paciente foi respeitada pelo Poder Judiciário chileno:

1) No ano de 1996, foi rejeitado o ‘Recurso de Protección Rol n.º 805-96’ na Corte de Apelações de Santiago. Com o recurso, o Hospital San José pretendia transfundir sangue contra a vontade do paciente, com o argumento que a vida era um bem superior. Ficou decidido de maneira sucinta, mas profunda, que ‘ninguém pode ser forçado a defender seu próprio direito’.

2) No começo de 2001, a Corte de Apelações de Valparaíso encerrou o caso contra um médico e a esposa de um paciente. Ambos haviam respeitado a vontade do enfermo. O paciente, que não era Testemunha de Jeová, padecia de uma hemorragia digestiva e se negou a uma transfusão de sangue. O médico e a esposa do paciente – quem sim era Testemunha de Jeová – respeitaram a vontade expressada. Devido a uma condição hemodinâmica muito complexa, o paciente morreu. Os familiares ajuizaram ação contra o médico e a esposa do paciente. Dois anos mais tarde a Corte absolveu completamente aqueles que respeitaram a vontade do paciente, o consentimento informado, a autonomia, a dignidade e a liberdade. Felizmente, a enfermeira havia escrito na ficha clínica que o paciente não havia consentido com a transfusão de sangue. Assim, se estabeleceu uma vez mais que o único titular da vontade é o paciente, e ainda que no estado de inconsciência.

d) ARGENTINA [50]

Caso Bahamondez (CS, 06.04.93, Medida Cautelar ED 153-249). Bahamondez era adepto da Religião Testemunhas de Jeová, civilmente capaz, que foi internado em um hospital em razão de hemorragia digestiva. Negando-se a receber transfusão de sangue, as autoridades do hospital pediram aos juízes autorização para fazer a transfusão de maneira compulsória, alegando que isso era fundamental para manter o paciente com vida. O Tribunal de 1ª Instância e a Câmara Federal de Comodoro Rivadávia concederam a autorização (CFed. Com. Riv. 15.106.89 ED 134-297), entendendo que o direito à vida não é disponível e que a atitude de Bahamondez equivalia a um suicídio lento.

Perante a Corte Suprema, o advogado de Bahamondez alegou que seu cliente queria viver, e não suicidar-se, mas, consciente dos riscos de vida que corria, preferia privilegiar sua fé e convicções religiosas em detrimento das indicações médicas.

A Corte, por maioria, declarou abstrata a questão, ou seja, não se pronunciou porque ao tempo que o expediente chegou à Corte, Bahamondez já havia obtido alta médica. Inobstante isso, quatro juízes desenvolveram meritórias dissidências em dois grupos, fixando a posição do tribunal para casos similares, levando em conta sua função de garante supremo dos direitos humanos.

O primeiro grupo, formado pelos juízes Mariano Cavagna Martínez e Antonio Boggiano, reconheceram que a liberdade religiosa traz consigo a possibilidade de exercer a ‘objeção de consciência’, que é o direito do indivíduo de não cumprir uma norma ou uma ordem da autoridade que violente suas convicções mais íntimas, sempre que o descumprimento não afete significativamente os direitos de terceiros e o bem comum. No caso, os juízes mencionados interpretaram que não haviam sido afetados direitos de pessoa distinta da de Bahamondez e, portanto, não se lhe podia obrigar a atuar contra a sua consciência religiosa. Em síntese, esses votos se fundamentaram no conceito de liberdade de crença religiosa e na necessidade de respeitar a dignidade da pessoa humana.

O segundo grupo, formado pelos magistrados Augusto Belluscio e Enrique Petracchi, sublinhou no seu arrazoado o direito à intimidade, e, invocando julgados norte-americanos (balancing test), mencionou o direito de ‘ser deixado a sós’, afirmando que tal direito não pode ser restringido pela só circunstância de que a decisão do paciente possa parecer irracional ou absurda perante a opinião dominante da sociedade. Tratando-se, no caso concreto, de homem adulto, consciente e livre, não cabia impor-lhe tratamento que violentasse suas convicções íntimas.

Caso Galacher (CNCiv. Sala G, 11.08.95 ED 154-655, Buenos Aires) Tratava-se do caso de uma mulher adulta, de 30 anos de idade, seguidora da religião Testemunha de Jeová, que sofria da enfermidade de leucemia aguda. Possuía filhos pequenos. Com a concordância expressa do cônjuge, opunha-se a receber uma transfusão de sangue indicada pelos médicos.

O ‘Fiscal de Cámara’, entre outras considerações de seu arrazoado, sustentou que o Estado Federal sempre reverenciou o ‘fenômeno religioso’; destacou, ainda, que a Sra. Gallacher possuía vontade real e lúcida, além do desejo de continuar vivendo, mas não à custa dos sacrifício de suas convicções religiosas.

Por sua vez, o Asesor de Menores, ao tecer considerações sobre o efeito que a decisão teria sobre os filhos da enferma, sustentou que os menores se encontravam na alternativa de pedir a sua mãe que vivesse à custa de suas crenças, ou que assumisse sua fé até às últimas consequências e entregasse a vida, dando, desse último modo para seus filhos o exemplo de uma mãe heróica que entrega a vida por suas convicções.

O Tribunal, citando o caso Bahamondez, priorizou na sua decisão a objeção de consciência, afirmando que o direito de decidir a forma pela qual se possa morrer é um direito personalíssimo.

e) BRASIL

O juiz Renato Luís Dresch, da 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte/MG, nos autos do processo 024.08.997938-9, indeferiu um pedido de alvará feito pelo Hospital Odilon Behrens, que pediu autorização para fazer uma transfusão de sangue em uma paciente que pertencia à religião Testemunhas de Jeová.

A paciente, por motivos religiosos, não aceitava a transfusão, mesmo ciente do risco de vida que corria. Após passar por uma cirurgia, a paciente apresentava queda progressiva dos níveis de hemoglobina.

O magistrado assinalou que as autoridades públicas e o médico tem o poder e o dever de salvar a vida do paciente, desde que ela autorize ou não tenha condições de manifestar oposição. ‘Entretanto’, salientou, ‘estando a paciente consciente, e apresentando de forma lúcida a recusa, não pode o Estado impor-lhe obediência, já que isso poderia violar o seu estado de consciência e a própria dignidade da pessoa humana’.

O juiz referiu que as Testemunhas de Jeová não se recusam a submeter a todo e qualquer tratamento clínico. A restrição diz respeito a qualquer tratamento que envolva a transfusão de sangue, especialmente quando existem outras formas alternativas de tratamento.

Em trecho lapidar, o magistrado mencionou que no seu entendimento, resguardar o direito à vida implica, também, preservar os valores morais, espirituais e psicológicos’. O Dr. Dresch citou que, embora não fosse lícito à parte atentar contra a própria vida, a Constituição, em seu art. 5º, inciso IV, assegura, também, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, garantindo o livre exercício dos cultos religiosos.

O juiz referiu que o recebimento do sangue pelo seguidor da corrente religiosa ‘o torna excluído do grupo social de seus pares e gera conflito de natureza familiar, que acaba por tornar inaceitável a convivência entre seus integrantes’.

Em razão disso, e pela informação de que a paciente se encontrava lúcida, o juiz não autorizou a realização da transfusão de sangue, que estava sendo recusada por motivos religiosos: ‘Desta forma, tratando-se de pessoa que tem condições de discernir os efeitos da sua conduta, não se lhe pode obrigar a receber a transfusão’, concluiu o juiz.

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O juiz Dresch citou outras decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que preservam o direito de seguidores da religião em não passarem por transfusões de sangue [51]. Em uma das decisões do TJMG ficou decidido que é ‘possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico’.

Não houve recurso do hospital, tendo a decisão transitado em julgado em 16/07/2008.


16. LEI ISLANDESA SOBRE OS DIREITOS DOS PACIENTES

O Anuário de 2005 das Testemunhas de Jeová refere a existência de lei islandesa acerca dos direitos dos pacientes, a qual estipula que nenhum tratamento pode ser dado a paciente sem o seu consentimento, e que se a vontade do paciente é conhecida, deve ser respeitada.

Trata-se da Lei n.º 74/1997 (que entrou em vigor em 1º/07/1997), um autêntico marco legislativo na temática dos direitos dos pacientes de recusar tratamentos médicos, como as transfusões de sangue. O governo islandês disponibilizou tradução, em inglês, da lei em comento [52].

O artigo 5º da Lei prevê que o paciente tem o direito de obter informações sobre seu estado de saúde, o tratamento proposto (com seus riscos e benefícios), possibilidade de tratamento diverso do originalmente proposto e suas consequências, bem como de consultar outro médico [53].

O artigo 7º determina que o direito de o paciente decidir sobre o tratamento que receberá deverá ser respeitado. Afirma expressamente que nenhum tratamento será dado sem o consentimento do paciente [54].

O artigo 8º prescreve que em caso de um paciente recusar um tratamento, o médico deverá informá-lo das possíveis consequências da decisão [55].

O artigo 9º, por sua vez, abre exceção ao ‘princípio do consentimento para o tratamento’ nos casos em que o paciente estiver inconsciente ou incapacitado de comunicar sua vontade. Inobstante isso, se preteritamente à impossibilidade de manifestação era conhecida sua recusa por uma espécie de tratamento, sua vontade será respeitada [56].

O artigo 20 assegura ao paciente o direito de ir ao médico que reputar mais conveniente, o que traduz a possibilidade de ser transferido aos cuidados de outro médico ou equipe médica [57].

O artigo 21 estabelece a responsabilidade do paciente pela própria saúde, tendo o direito de participar ativamente do tratamento para o qual consentiu [58].

O surpreendente artigo 24 chancela a possibilidade de o paciente morrer com dignidade, conferindo a ele o direito de fazer cessar um tratamento na fase terminal. Acrescenta, ainda, que se o paciente for mentalmente enfermo ou estiver impossibilitado fisicamente, o médico deverá consultar os parentes antes de decidir sobre o fim ou a continuidade do tratamento [59].

Faz-se votos que a magnífica e avançada lei islandesa inspire a legislação de muitos países – especialmente a do Brasil -, para que haja o fortalecimento dos direitos humanos.

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Sobre o autor
Cláudio da Silva Leiria

Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEIRIA, Cláudio Silva. Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová.: Uma gravíssima violação de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2100, 1 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12561. Acesso em: 25 nov. 2024.

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