17. DIREITO DOS PACIENTES A TRATAMENTOS ALTERNATIVOS ÀS TRANSFUSÕES DE SANGUE
Em respeito aos direitos fundamentais daqueles que por motivos religiosos não aceitam determinados tratamentos médicos, o Estado tem a obrigação jurídica de custear o pagamento, via SUS, de tratamentos alternativos às tranfusões de sangue – forma de materializar o atendimento dos direitos à saúde e à objeção de consciência, ambos protegidos constitucionalmente [60].
Não se deve aceitar o argumento daqueles que dizem que os tratamentos alternativos às transfusões de sangue não devem ser pagos pelo SUS porque são muito custosos e beneficiam apenas uma minoria.
Ora, em primeiro lugar, diga-se que as minorias também pagam seus tributos ao Estado, não podendo ser excluídas de terem um atendimento médico de acordo com suas convicções religiosas.
Em segundo, tratamentos alternativos beneficiam a coletividade inteira, dado que, como já citado, são inúmeros os riscos inerentes às transfusões de sangue: reações do tipo hemolítico e alérgico; transmissão do HTLV-1 e HTLV-2; TT-Vírus; malária; Mal de Chagas; sífilis; doença de Creutzfelt-Jacob (doença da ‘Vaca-Louca’), etc. Desta forma, o Estado, além de propiciar terapias médicas mais seguras aos usuários do sistema de saúde, evitará gastos com indenizações e tratamentos médicos de pessoas contaminadas pelas transfusões de sangue.
Em terceiro lugar, como já visto, a própria Constituição Federal protege a objeção de consciência.
Em quarto, não se pode aplicar nestas situações, visando negar o custeio dos tratamentos alternativos, a ‘teoria da reserva do possível’, segundo a qual a satisfação dos direitos sociais fica condicionada à existência de recursos orçamentários do Estado. Em vez disso, aplica-se a ‘teoria do mínimo existencial’, consoante a qual o Estado é obrigado a garantir o mínimo necessário para que a sobrevivência do indivíduo não periclite.
Destarte, o administrador público deve velar para que não seja negado a pessoas de poucos recursos o direito de objeção de consciência à transfusão de sangue somente porque na cidade de origem não existam as terapias alternativas. Nesse caso, o administrador deve arcar com os ônus de providenciar o tratamento em cidade, ou, se for o caso, Estado diverso do de residência do paciente. De idêntica forma, o Poder Judiciário deve ser firme em garantir tal direito em caso de recalcitrância do administrador do sistema de saúde.
Nesse aspecto, ventos benfazejos da jurisprudência começam a soprar, pois importante decisão favorável ao direito de o paciente ter custeado pelo SUS tratamento alternativo à transfusão de sangue em Estado diverso da Federação foi tomada, por maioria, pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 22.395/2006, cuja ementa é a seguinte:
"TESTEMUNHA DE JEOVÁ – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE – EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA – TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – DIREITO À SAÚDE – DEVER DO ESTADO – RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – LIMINAR CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO. Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como a única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente. A liberdade de crença, consagrada no texto constitucional, não se resume à liberdade de culto, à manifestação exterior da fé do homem, mas também de orientar-se e seguir os princípios dela. Não cabe à administração pública avaliar e julgar valores religiosos, mas respeitá-los. A inclinação de religiosidade é direito de cada um, que deve ser precatado de todas as formas de discriminação. Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-a, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. O princípio da isonomia não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais de cada um. Se o Sistema Único de Saúde do Mato Grosso não dispõe de profissional com domínio da técnica que afaste o risco de transfusão de sangue em cirurgia cardíaca, deve propiciar meios para que o procedimento se verifique fora do domicílio (TFD), preservando, tanto quanto possível, a crença religiosa do paciente."
Tratava-se do caso de cidadão de mais de 60 anos de idade que ajuizou na 3ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Cuiabá (MT) ação cominatória para cumprimento de ação de fazer contra o Estado do Mato Grosso, visando compelir o ente estatal a lhe custear cirurgia cardíaca (sem uso de transfusão de sangue) no Hospital Beneficência Portuguesa, na cidade de São Paulo/SP. Tal procedimento poderia ser realizado no Estado do Mato Grosso, mas somente mediante transfusão de sangue, o que ia de encontro às convicções religiosas do paciente.
Em primeiro grau, a antecipação de tutela foi indeferida, o que motivou o ajuizamento do Agravo de Instrumento junto ao TJMT. Por maioria, essa Corte, vencido o Relator Sebastião de Arruda Almeida, que negava provimento, reconheceu o dever do Estado do Mato Grosso custear a cirurgia cardíaca do paciente no Estado de São Paulo (com técnica que dispensa transfusão de sangue), diante da objeção de consciência.
O julgamento teve início em 24.05.2006, tendo o 1º vogal, Desembargador Leônidas Duarte Monteiro, em um primeiro momento, aderido ao voto do Relator, que negava provimento ao agravo. Nessa sessão, pediu vista o 2º vogal, Des. Orlando de Almeida Perri.
Na continuidade do julgamento, em 31.05.2006, o 2º vogal votou favoravelmente à pretensão do agravante, convencendo o 1º vogal a retificar seu voto.
Pela excelência das razões, calha transcrever trechos do voto vencedor do Des. Orlando de Almeida Perri (2º vogal):
"Para delimitar o âmbito deste apelo, impõe-se esclarecer que não se está a debater ética médica ou confrontação entre o direito à vida e o de liberdade de crença religiosa.
"O que se põe em relevo é o direito à saúde e a obrigação de o Estado proporcionar ao cidadão tratamento médico que não implique em esgarçamento à sua liberdade de crença religiosa.
"(...)
"Como adepto da doutrina ‘Testemunhas de Jeová’, por força de textos bíblicos (Gênesis 9:3-4, Levítico 17:10 e Atos dos Apóstolos 15:19-21) não admite o recorrente submeter-se a procedimento cirúrgico se houver possibilidade de se utilizar transfusão de sangue, mesmo que isso represente o único recurso a salvar sua vida.
"Os autos mostram que, nesta capital, o único médico a fazer cirurgia cardíaca pelo SUS – Sistema Único de Saúde, não domina a técnica de realizá-la sem o risco de se utilizar transfusão de sangue.
"(...)
"O que incomoda-me bastante é a intransigência estatal em obrigar o recorrente a submeter-se a cirurgia que, pela técnica utilizada, ofenda os princípios religiosos dele.
"(...)
"Ora, a circunstância de o Estado ter em seus quadros um único profissional credenciado a fazer cirurgias cardíacas pelo SUS, que ainda não domina essas técnicas, pode impor ao paciente que submeta-se à cirurgia tradicional olvidando-se seus princípios religiosos? Não estaria o Estado, nessas condições, desrespeitando o direito à liberdade religiosa?
"Certo é que, tratando-se de cirurgia eletiva, o paciente com mal cardíaco submete-se a ela ou não, segundo a sua vontade. Este preceito transcende à ética médica e alcança a bioética, que tem como um dos princípios basilares o respeito aos valores, crenças e vontades do paciente.
"Ao lado do princípio hipocrático da benevolência, a bioética conclama o respeito à autonomia do paciente em anuir a este ou aquele procedimento médico, principalmente em face do Estado, quando movimentada por princípios religiosos.
"Se ao profissional da medicina impõe-se o dever de acatar a vontade do paciente, ainda que a medida ponha em risco a própria vida dele, que dizer então em relação ao Estado quando a recalcitrância funda-se em motivos financeiros?
"O que pretendo afirmar é que, havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando se apresenta como a única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente.
"É preciso ter em mente que não se trata de capricho, teimosia ou intolerância do recorrente, mas de princípios religiosos, que proíbem a transfusão de sangue alogênico.
"Quase septuagenário, não quer ele arriscar a vida eterna pelos poucos anos de vida terrena. Diante da situação, afigura-se justo o Estado compeli-lo à escolha entre essas vidas?
"(...)
"Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la."
Na questão de obrigar o Estado a montar uma estrutura para propiciar tratamentos alternativos às transfusões de sangue para os objetores de consciência por motivos religiosos, avulta o papel do Ministério Público. De fato, essa instituição poderia instaurar procedimento administrativo para investigar as deficiências do SUS quanto à disponibilização de tratamentos alternativos às transfusões de sangue, sabidamente arriscadas, firmando Termo de Ajustamento de Conduta com o ente público legitimado ou inclusive ajuizando a ação civil pública competente.
18 – DA NECESSIDADE DE MUDANÇAS NOS CURRÍCULOS DE ENSINO MÉDICO E JURÍDICO
Pelo que foi abordado ao longo deste trabalho, torna-se visível que alterações nos currículos das faculdades de Direito, Farmácia, Medicina e Enfermagem se fazem necessárias para que os assuntos relativos aos direitos dos pacientes sejam melhor estudados e compreendidos, pois dizem respeito, fundamentalmente, à saúde física e à dignidade do ser humano.
Como bem observa o criminalista PAULO SÉRGIO LEITE FERNANDES em parecer [61], "Postos frente à expansão universal de moléstias viróticas mortais, devem os estabelecimentos de ensino médico e hospitais ministrar urgentemente ensinamento sobre os tratamentos alternativos substitutivos das transfusões, minimizando a possibilidade de contágio, cada vez mais efetiva."
Isso nada mais seria do que dar concretude à prescrição do art. 5º do Código de Ética Médica Brasileiro, segundo o qual o médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente.
Assim, nos programas das disciplinas médicas – inclusive na pós-graduação - torna-se imperioso incluírem-se disciplinas como ‘Tratamentos alternativos às transfusões de sangue’, Sociologia da medicina’, ‘Psicologia do paciente’ e, especialmente, Ética Médica.
JECÉ FREITAS BRANDÃO, prefaciando a obra de Nedy Cerqueira Neves [62], refere que a publicação surpreende ao denunciar que, apesar de a Ética Médica ter 2500 anos de história, somente há 30 anos estava incluída no currículo da graduação médica de maneira formal. Também revelava que 14,6% das escolas médicas no Brasil ainda não tinham docentes de Ética Médica. Prosseguiu afirmando que esse descaso parecia não ser privilégio do Brasil, já que a World Medical Association precisou recomendar, em resolução, a inclusão do ensino de Ética Médica no currículo das escolas médicas de todo o mundo.
No ensino jurídico, seria de grande valia a inclusão da cadeira de ‘biodireito e bioética, e da de ‘direitos e deveres de médicos e pacientes’; na disciplina de Direito Constitucional deveria ser estudada com detença temas relativos à liberdade religiosa e de consciência. E deveria ser estimulada pelas faculdades de Direito a realização de seminários e a produção de artigos e monografias sobre o direito de recusa de pacientes a determinados tratamentos médicos.