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Distinção das espécies normativas à luz da teoria dos princípios

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10/04/2009 às 00:00
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6- OS ELEMENTOS ESTRUTURANTES DO SISTEMA JURÍDICO

Antes de tudo, é preciso buscar um conceito satisfatório de sistema. Segundo Canaris, "o sistema é uma ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais do Direito" [55]. Sabe-se que um sistema normativo não se exaure nas regras aprovadas pelo legislador, não podendo ficar adstrito a esse conteúdo meramente positivista.

Por outro lado, um modelo constituído apenas de princípios carece de precisão, sendo inconcebível na medida em que geraria a necessidade constante de ponderação sobre se determinada ação humana feriu ou não algum princípio. Nesta esteira, são válidos os ensinamentos de Canotilho:

Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa - legalismo - do mundo da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um ‘sistema de segurança’, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional (...).O modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios (...) levar-nos-ia a conseqüências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflitantes, a dependência do ‘possível’ fáctico e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema. [56]

Canaris aponta duas características básicas de sistema: ordenação e unidade. Com a ordenação pretende-se exprimir um estado de coisas intrínseco e racionalmente compreensível, isto é, baseado na realidade. Já a unidade atua na ordenação, por intermédio dos princípios fundamentais que lhe conferem sentido, visando evitar a dispersão em uma multiplicidade de normas singulares desconexas. [57]

Mais do que postulados metodológicos, a ordenação e unidade pertencem às exigências ético-jurídicas e radicam a própria idéia do direito, na busca pela garantia da ausência de contradições. Neste sentido, apesar da multiplicidade de valores singulares que compõem o sistema, os princípios gerais do direito, na visão do citado autor, são justamente os elementos que revelam a unidade interna e adequação da ordem jurídica, buscando por trás da lei, a sua ratio iuris determinante, [58]

Duas outras importantes características dos princípios são ressaltadas por Canaris: a abertura e mobilidade.Quanto a característica da abertura, verifica-se a incompletude, a capacidade de evolução e alterabilidade do sistema, que se coloca em constante mudança face a incidência de novos princípios, de modo que o próprio direito positivo é suscetível de aperfeiçoamento. Quanto a característica da mobilidade, verifica-se a igualdade fundamental de categorias e a substitutividade mútua dos competentes princípios ou critérios de igualdade. [59]

Ainda em busca de um conceito ideal para sistema, cite-se o posicionamento mais amplo de Freitas:

(...)se conceitue o sistema jurídico como uma rede axiológica e hierarquizada de princípios gerais e tópicos, de normas e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias, dar cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente na Constituição. [60]

Tal conceito peca na imprecisão dos termos utilizados para as espécies normativas, bem como caracteriza o sistema jurídico como sendo hierarquizado. É que parece mais acertada a tese de Ávila acerca da correta distinção entre as espécies normativas em princípios, regras e postulados, bem como o fato do tradicional modelo linear, simples e não gradual de sistema, pautado na hierarquização das normas jurídicas, ter de ser complementado por outro modelo circular, complexo e gradual, pautado no "postulado da coerência".

Misabel Derzi, com seu brilhantismo, utilizou, com aguçada precisão, terminologia jurídica adequada ao definir o sistema constitucional:

Hoje, o Constitucionalismo vê a Constituição como um sistema de normas que aspira a uma unidade de sentido e de compreensão, unidade essa que somente pode ser dada por meio de princípios, continuamente revistos, recompreendidos e reexpressos pelos intérpretes e aplicadores do Texto Magno. Ou seja, a análise estruturadora sistêmica é necessariamente aberta, visto que, não raramente, normas e princípios estão em tensão e aparentam conflito. Chamamos tais conflitos e tensões de "aparentes", porque a compreensão profunda da Constituição é sempre buscada, sempre descoberta, de forma contínua.

Após todo este estudo preferimos conceituar o sistema jurídico como uma rede axiológica, hierarquizada e coerente de princípios, regras e postulados, que convivem de modo a garantir a sua própria unidade valorativa e adequação interna.

Canaris, de fato revolucionou as teorias sobre os métodos de obtenção do direito, ao defender a relevância do pensamento sistemático, como resposta às exigências renovadas de uma Ciência Jurídica clara, precisa e capaz de responder a uma realidade em permanente evolução, tendo em conta os atuais conhecimentos hermenêuticos e as exigências de maleabilidade deles decorrentes. O nobre jurista foi capaz de comprovar que perante um problema a ser resolvido, não se pode aplicar somente a norma originalmente vocacionada para a solução, sendo necessário invocar todo o direito. [61]

Todavia, ao sustentar os princípios gerais como únicos elementos estruturantes do sistema, incorre em grande equívoco, pois uma das justificativas de sua teoria é a de que "os princípios precisam, para sua realização, de uma concretização através de sub- princípios e valores singulares, com conteúdo material próprio" [62]. Com isto, nega eficácia normativa aos princípios, os quais não seriam capazes de aplicação imediata, discussão esta que já se encontra absolutamente superada no Direito contemporâneo. Ao defender que as normas não podem ter função sistematizadora [63], uma vez normas não podem aglutinar outras normas, é que partindo das premissas fixadas neste estudo, no sentido de que princípios são sim considerados normas jurídicas, conclui-se que a definição de Canaris perde consistência.

Cremos que não são somente os princípios gerais os elementos estruturantes do sistema capazes de garantir a sua unidade e ordenação, mas sim o relacionamento das diversas espécies normativas entre si que irradiam seus efeitos por todo o complexo jurídico, pautado nos postulados hermenêuticos e aplicativos defendidos por Ávila, conforme exposto linhas acima.

Se o pensamento pós positivista admite os princípios como normas jurídicas de elevado teor axiológico, sendo independentes de enunciação em qualquer corpo legal, isto significaria dizer que enquanto norma, não poderia aglutinar ou ter a função de sistematizar outras normas? Como fica o pensamento sistemático preconizado por Canaris neste sentido? Parece que tal pensamento precisa ser repensado.

Para fortalecer o pensamento que ora se pretende expor, é que mais uma vez se invoca as lições de Canotilho, o qual explicita a idéia de que o sistema jurídico deve ser visto como um sistema normativo aberto de regras e princípios:

(1) – é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas;

(2) – é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica {Caliess} traduzida na disponibilidade e ‘capacidade de aprendizagem’ das normas constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da ‘verdade’ e da ‘justiça’;

(3) – é um sistema normativo, porque a estruturação das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas;

(4) – é um sistema de regras e de princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a sua forma de regras. [64]

Não se pretende, por ora, aprofundar nesta discussão, até porque este não é o cerne do presente estudo. A intenção é tão somente a de tentar fazer uma avaliação crítica das contribuições trazidas por Canaris ao pensamento jurídico ao propor uma definição de sistema, lançando apenas algumas reflexões, que sem dúvida alguma, precisam ser mais bem exploradas em outro trabalho.

O que precisa ficar claro, portanto, é que o estudo do pensamento sistemático deve ser complementado pelo exame profundo das diferenças entre as espécies normativas, pois todas elas se prestam a garantir a composição ordenada e harmônica da estrutura do sistema jurídico.


7- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto, é possível compendiar algumas das principais idéias desenvolvidas, nas proposições a seguir.

(a) Na atual classificação pós- positivista norma é o gênero do qual são espécies as regras e os princípios. Estes últimos têm reconhecida eficácia normativa, reflexo do direito contemporâneo, que demanda um conjunto normativo mais flexível e aberto à subjetividade do aplicador do direito.

(b) Norma e texto legal não se confundem. Os dispositivos são necessariamente os pontos de partida para a construção de normas, que dependem de conexões axiológicas do intérprete, inclusive para classificar uma espécie normativa.

(c) Merece aplausos a distinção das espécies normativas propostas por Ávila entre regras (normas descritivas), princípios (normas finalísticas) e postulados (normas metódicas), que superou o tradicional modelo dicotômico.

(d) A noção de sistema jurídico composto por normas organizadas de forma hierárquica deve ser substituída por um modelo de sistematização circular, complexo e gradual, devendo-se admitir que não há hierarquia entre princípios constitucionais.

(e) Em caso de conflito normativo, tanto as regras como os princípios são passíveis de sopesamento e ponderação.

(f) Todas as diversas espécies normativas devem ser consideradas elementos estruturantes do ordenamento jurídico, não tendo os princípios o condão de garantir, com exclusividade, a unidade e ordenação do sistema. Os postulados, por exemplo, têm exatamente este papel.

Resta evidente que o assunto ainda é incipiente. Apesar das várias contribuições timidamente apontadas neste trabalho, as bases teóricas ainda estão em pleno desenvolvimento, cabendo aos juristas acompanhar e contribuir para tal evolução de modo garantir a maior efetividade na aplicação das normas jurídicas.

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8- REFERÊNCIAS

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Sobre a autora
Rosíris Paula Cerizze Vogas

Advogada, especialista em Direito Tributário pelo IBET, especialista em Direito Empresarial pela UFU/MG, mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos/MG, professora universitária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VOGAS, Rosíris Paula Cerizze. Distinção das espécies normativas à luz da teoria dos princípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2109, 10 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12597. Acesso em: 24 abr. 2024.

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