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O inquérito policial não é unidirecional

22/04/2009 às 00:00
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Recentemente realizou-se, na Academia Nacional de Polícia - DPF em Brasília, Distrito Federal, o "I Encontro sobre Inquérito Policial: proposta de reforma", ocasião em que foi proferida a brilhante palestra do professor José Armando da Costa, sobre os "Aspectos Fundamentais do Inquérito Policial", onde se alinhavou, o mestre, dentre inúmeras e relevantes ponderações, que "o direito de defesa não possui topografia".

Coincidentemente, no mesmo horário em que se assistia a douta explanação, ocorriam a votação e a aprovação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei n.° 4209/2001, que aborda, em linhas gerais, a reestruturação e a atualização do instrumento apuratório a cargo da polícia judiciária.

A proposta de inovação legislativa enfrenta o tema com o intuito de trazer modernidade e celeridade na obtenção de resultados, em consonância com a moderna linha de aperfeiçoamento da administração gerencial e efetividade da justiça, e, com efeito, amoldar esse instituto ao Estado Democrático de Direito plasmando na Constituição Federal de 1988.

No entanto, um ponto tratado no referido projeto merece nova análise à luz da mesma Lei Maior, fundamento de validade para essa pretendida reforma processual, qual seja a tentativa de caracterizar o inquérito policial como instrumento unidirecional, o que já se defende em doutrina e parte da jurisprudência.

O leitor deve estar-se perguntando: "mas o que a expressão acima, do professor José Armando da Costa, tem a ver com o fato de um projeto de lei ser votado e aprovado numa das casas do parlamento nacional e em que ponto esses dois fatos tocam a unidirecionalidade do inquérito policial?"

Para responder aos questionamentos, faz-se importante abordar os temas "caráter unidirecional do inquérito policial" e "a inconstitucionalidade do caput do art. 7.º do Projeto de Lei n.° 4209/2001", buscando (i) definir o que a doutrina entende como unidirecionalidade do instrumento apuratório a cargo da polícia judiciária, (ii) analisar o dispositivo contido no referido projeto e que visa à transformação da investigação em unidirecional e, por fim, (iii) analisar, de forma singela, alguns princípios fundamentais regentes do tema e que infirmam a unidirecionalidade de uma apuração comprometida com a verdade real.


1. CARÁTER UNIDIRECIONAL DO INQUÉRITO POLICIAL.

O Código de Processo Penal, Decreto-lei n.° 3.689, em vigor desde 03 de outubro de 1942, define, em interpretação sistemática, inquérito policial como o processado presidido pela autoridade policial com o fim de definir a autoria e a materialidade de crimes e contravenções, sem embargo das regras processuais acerca das infrações de menor potencial ofensivo, ex vi dos artigos 4.º e seguintes do Codex.

Desta feita, com fundamento nessas finalidades positivadas, afere-se tratar de instrumento orgânico estatal, oficial, aplicado à persecução pré-processual, destinado à apuração de infrações penais, tendo como premissa a notícia de ocorrência de ilícito e como fim o subsídio da fase processual, persecutio criminis in juditio.

Constata-se de plano o fim maior desse instrumento, qual seja a delineação de circunstâncias e elementares que envolveram o fato típico, ilícito e culpável, compromissado, assim, com a verdade relacionada ao cometimento do ilícito, fornecendo, com efeito, subsídios às partes: o Ministério público ou querelante e o suposto sujeito ativo do ilícito penal.

A par dessa digressão, abalizada doutrina tem-se posicionado de forma a elidir parte dessa busca da verdade pelo órgão de apuração, a ponto de obstar o inquérito policial de beneficiar o suposto sujeito ativo, autor do fato, como se constata dos ensinamentos do Professor Paulo Rangel, ao asseverar que "o inquérito policial tem um único escopo: a apuração dos fatos objeto de investigação (cf. art. 4.º, in fine, do CPP). Não cabe à autoridade policial emitir nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como, por exemplo, que o indiciado agiu em legítima defesa ou movido por violenta emoção ao cometer o homicídio. A autoridade policial não pode (e não deve) se imiscuir nas funções do Ministério Público, muito menos do juiz, pois sua função, no exercício de suas atribuições, é meramente investigativa. (...) Assim, a direção do inquérito policial é única e exclusivamente a apuração das infrações penais. Não deve a autoridade policial emitir qualquer juízo de valor quando da elaboração de seu relatório conclusivo. Há relatórios em inquéritos policias que são verdadeiras denúncias e sentenças. É o ranço do inquisitorialismo no seio policial." [01]

Constata-se da leitura acima que o inquérito policial presta-se única e exclusivamente à apuração de elementos da autoria e da materialidade ilícitas, devendo o delegado de polícia apenas apontar fatos e autor, sem qualquer juízo de valor acerca das circunstâncias e elementares que ligaram o suposto agente, com sua conduta, ao resultado danoso, consubstanciando, destarte, o caráter unidirecional do apuratório.

Não obstante os doutos ensinamentos ora referidos, com eles não há de se coadunar, pois é inerente à própria função investigativa a análise de todos os detalhes que envolvem os acontecimentos fáticos ainda desconhecidos quando da notitia criminis.

Não há como se elucidar qualquer acontecimento levado a efeito pelo sujeito ativo do ilícito, sem se adentrar a detalhes, a par dos exames periciais, que extrapolam a simples qualificação e oitiva de testemunhas e do suposto autor e, para tal, é indispensável a realização de juízo de valor, mormente no ato de fundamentação da indiciação ou da sua não realização. Quanto mais completo e jurídico-científico forem os trabalhos realizados no inquérito policial, mais célere será o exercício da jurisdição, com maior eficiência dos escopos político, jurídico e social do processo.

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Com efeito, não se pode pretender obstar a autoridade policial de tecer, dentro da razoabilidade e da proporcionalidade, juízo de valor acerca do produto de sua investigação, uma vez que a elucidação dos fatos enlaça compromisso com a verdade real e esta, corolário da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República.

O Ministério Público exerce o controle externo da atividade policial e não o controle de mérito dos atos da polícia judiciária. A censura por esse Órgão, sob o argumento de que a autoridade policial afastou-se do caráter unidirecional do apuratório é, sem sombra de dúvidas, inconstitucional, posto que excede o mister insculpido no art. 129, VII da CF/88, adentrando ao exercício de jurisdição pelo órgão controlador, ofendendo assim, exempli gratia, a independência e harmonia dos poderes, princípio fundamental do Estado Democrático Constituído, bem como os direitos e garantias fundamentais de o indivíduo ser tratado com dignidade pelos órgãos da República e submetido ao devido processo legal.

Quanto a este último princípio, dignidade da pessoa humana, registra-se sua ofensa sempre que o investigado seja submetido ao processo, malgrado elementos de prova veemente apurados em inquérito policial de ausência de crime em decorrência de causas excludentes de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade.

A não instauração de apuratório pela autoridade policial ou o não oferecimento de denúncia pelo parquet, nesses casos, não viola o princípio da indisponibilidade do jus persequendi, uma vez que, ante a ausência de justa causa, esse mister estatal deve sucumbir ao princípio da dignidade da pessoa humana e não há fase processual ou pré-processual para o reconhecimento dessa condição ao acusado ou investigado.

Deste modo, para a observância do due processo of law, a autoridade policial tem o dever de apontar essa constatação em seu relatório final e até mesmo não proceder à instauração de apuratório se, com a notícia exordial, vier a notícia inquestionável de uma dessas excludentes.

A atribuição de caráter unidirecional ao inquérito policial, por parte dadoutrina, visa a destiná-lo, com exclusividade, ao Ministério Público, como instrumento de uma acusação. No entanto, com fundamento na dignidade da pessoa humana, o caderno apuratório há de servir às partes como um todo, não só à parte acusadora, mas também às pessoas que possam ser atingidas pelos efeitos jurídicos produzidos pela investigação.

Nesse sentido, declinando a utilidade do material coligido também ao investigado e não só ao dominus lite, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito de investigado ter acesso aos autos de inquérito policial, mesmo em segredo de justiça, ao publicar, em 09 de fevereiro de 2009, a Súmula Vinculante n.°14 que prescreve que "é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa."


2. A INCONSTITUCIONALIDADE DO CAPUT DO ART. 7.º DO PROJETO DE LEI N.º 4209/2001.

O Projeto de Lei n.° 4209/2001 tem por finalidade inovar a ordem jurídica, como veículo introdutor primário de normas, alterando dispositivos do Decreto-Lei n.° 3.689, de 03 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à investigação criminal, positivando a unidirecionalidade do inquérito policial e agravando essa caracterísitica, ao passo que transforma esse instituto em instrumento exclusivo do sujeito legitimado ao oferecimento da peça exordial da ação penal, deixando em segundo plano e a toda a ordem de ingerência os interesses dos investigados, em patente desigualdade de armas, senão vejamos: "Art. 7º Os elementos informativos da investigação deverão ser colhidos na medida estritamente necessária à formação do convencimento do Ministério Público ou do querelante sobre a viabilidade da acusação, bem como à efetivação de medidas cautelares, pessoais ou reais, a serem autorizadas pelo juiz."

Verifica-se que o artigo acima ofende a direitos individuais do investigado, à medida que o deixa alijado de qualquer possibilidade de se valer investigação para a defesa de direitos a qual passaria a ter o único compromisso de embasar o convencimento do Ministério Público, afastando, por exemplo e por via reflexa, a possibilidade de o indigitado, no exercício de seu direito constitucional de petição, requerer diligências que julgue necessária à prova de sua inocência. Ressalte-se que não se defende o direito de contraditório em sede policial, mas sim o início do exercício da mais ampla defesa deferida ao investigado, a qual seria elidida por um procedimento investigatório voltado a apenas uma das partes, qual seja o Ministério Público.

Assim, insta ressaltar, como se assinalou no início do texto e como bem asseverou o douto jurista José Armando da Costa: "o direito de defesa não possui topografia", não podendo uma lei subtrair do investigado o seu direito a mais ampla defesa, corolário dos princípios do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Rangel, Paulo. Direito processual penal. 6.ªEd. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=14.NUME.%20E%20S.FLSV.&base=baseSumulasVinculantes. Consulta em 20.03.2009.


Nota

01 Rangel, Paulo. Direito processual penal. 6.ªEd. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 86/87.

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Sobre o autor
Sandro Lúcio Dezan

Mestre em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV. Delegado de Polícia Federal, Coordenador da Escola Superior de Polícia do Departamento de Polícia Federal. Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DEZAN, Sandro Lúcio. O inquérito policial não é unidirecional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2121, 22 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12672. Acesso em: 22 dez. 2024.

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