6. Funções do nemo potest venire contra factum proprium
A boa-fé objetiva, como se sabe, apresenta-se em nosso ordenamento jurídico com uma tríplice função, quais sejam, interpretativa, integrativa ou criadora de deveres anexos ou acessórios à prestação principal; e controladora ou restritiva do exercício de direitos.
Para o presente estudo, não nos interessam as minúcias de cada uma delas, mas tão somente ressaltar que a vedação do comportamento contraditório se relaciona à terceira função da boa-fé.
Ora, esta função tem justamente o escopo de impedir o exercício de direitos ou de posições jurídicas que contrariem a lealdade e confiança que devem permear as relações jurídicas.
Trata-se da aplicação da boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo. Segundo Anderson Schreiber (2005, p. 83-84):
A terceira função geralmente atribuída à boa-fé objetiva é a de impedir o exercício de direitos em contrariedade à recíproca lealdade e confiança que deve imperar nas relações privadas. Trata-se de uma aplicação da boa-fé em seu sentido negativo ou proibitivo: vedando comportamentos que, embora legal ou contratualmente assegurados, não se conforme aos standards impostos pela cláusula geral. Aqui, a doutrina utiliza frequentemente a expressão exercício inadmissível de direitos, referindo-se ao exercício aparentemente lícito, mas vedado por contrariar a boa-fé.
Desse modo, quando o indivíduo se pauta em suas relações jurídicas pela boa fé objetiva, atua de acordo com os ditames do nemo potest venire contra factum proprium.
Brunela Vieira de Vincenzi (2003, p. 165) salienta que a regra da boa-fé objetiva para a proteção da confiança e da manutenção foi consuetudinário de esforço jurisprudencial e doutrinário, no sentido de impedir o exercício de posições lícitas contrárias à expectativa criada:
A síntese teórica alcançada diante da elaboração jurisprudencial e doutrinária aponta para a aplicação da regra da boa-fé objetiva para a proteção da confiança e da manutenção (com o aproveitamento dos atos já praticados) de relações jurídicas subjacentes. Assim, em determinadas hipóteses impede-se o exercício de posições lícitas contrárias à expectativa ou confiança criada em situações anteriormente existentes entre os mesmos sujeitos ou entre o sujeito e a coletividade (especificamente, o venire contra factum proprium).
E predispõe, ainda, que o venire contra factum proprium consiste na aplicação específica do princípio da boa-fé para limitar o exercício de posições jurídicas de forma abusiva:
Aplica-se o princípio da boa-fé objetiva para limitar o exercício de posições jurídicas de forma abusiva, ou seja, para impedir que o exercício de um direito subjetivo cause prejuízos à sociedade ou a outros sujeitos, amparando-se o agente numa suposta legalidade, ficando, assim, isento da responsabilidade sob alegação – injusta – de exercício regular de direitos.
Nessa mesma linha de pensamento, a obra de Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2007, p. 292):
A proibição do venire, facilmente pode se identificar, refere-se à proteção da boa-fé, ou melhor, refere-se à necessidade de que cada um dos sujeitos do negócio jurídico adote conduta que seja consentânea com a boa-fé, o que, em última análise, como já vimos, retro, significa que cada um desses sujeitos deverá respeitar os deveres laterais que surgem em todos os negócios jurídicos e que são impostos exatamente em função da necessidade de observância da boa-fé.
Toda essa preocupação com relações jurídicas norteadas pelos deveres laterais da boa-fé se deve ao forte movimento contemporâneo de solidarização dessas relações. A preocupação com o outro toma posição de destaque na sociedade atual. Anderson Schreiber explica (2005, p. 84):
Esta leal consideração pela posição da contraparte, pelas suas particularidades e seus interesses, consiste na razão do amplo desenvolvimento da boa-fé objetiva em um direito contemporâneo dirigido à realização da solidariedade social, e se confunde mesmo com o seu conteúdo [...].
Assim, pode se concluir que a tutela da confiança, do comportamento leal, transcende a própria boa-fé, refletindo em todo o ordenamento jurídico, estando inserida no campo da solidarização do direito.
Ainda de acordo com Anderson Schreiber (2005, p. 88-89):
A confiança, inserida no amplo movimento de solidarização do direito, vem justamente valorizar a dimensão social do exercício dos direitos, ou seja, o reflexo das condutas individuais sobre terceiros. [...] Em outras palavras, o reconhecimento da necessidade da tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos da sua adoção. [...] Daí o aviso lançado também entre nós, segundo o qual a ‘revalorização da confiança como valor preferencialmente tutelável no trânsito jurídico corresponde a uma alavanca para repensar o direito civil brasileiro contemporâneo e suas categorias fundamentais’. [...] A tutela da confiança revela-se, em um plano axiológico-normativo, não apenas como principal integrante do conteúdo da boa-fé objetiva, mas também como forte expressão da solidariedade social, e importante instrumento de reação ao voluntarismo e ao liberalismo ainda amalgamados ao direito privado como um todo.
E Menezes Cordeiro (1984, p. 756):
A confiança permite um critério de decisão: um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas. A confiança contorna, ainda, o problema dogmático, de solução intrincada, emergente da impossibilidade jurídica de vincular, permanentemente, as pessoas aos comportamentos uma vez assumidos. [...] A confiança dá um critério para a proibição do venire contra factum proprium. [...].
No ordenamento jurídico brasileiro, em suma, a vedação do comportamento contraditório tem como objetivo a coerência das atuações dos indivíduos em toda e qualquer relação jurídica, inserindo-se perfeitamente na tutela da confiança e na efetivação do princípio da boa-fé objetiva.
Todavia, não é apenas um dever de coerência que a vedação do comportamento contraditório impõe. A incoerência deve ser vedada no momento em que puder violar a confiança de outrem e causar-lhe prejuízos ou tenha potencial lesividade.
Complementa Anderson Schreiber (2005, p. 90):
Mais que contra a simples coerência, atenta o ‘venire contra factum proprium’ à confiança despertada na outra parte, ou em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comportamento inicial seria mantido, e não contrariado. Ausentes tais expectativas, ausente tal atentado à legítima confiança capaz de gerar prejuízo a outrem, não há razão para que se imponha a quem quer que seja coerência com um comportamento anterior.
Importante também dispor que a vedação do comportamento contraditório incide somente naquelas condutas realizadas à margem do direito positivo.
Ora, é inequívoco, como bem pondera Anderson Schreiber, (2005, p. 126), que o nemo potest venire contra factum proprium se evidencia como resultado da constatação atual de que o direito estritamente positivo não é suficiente para solucionar conflitos e atender todas as necessidades da sociedade.
Em outras palavras, não há razão em se aplicar o princípio em exame sobre comportamento já vinculado legalmente, uma vez que o próprio ordenamento jurídico já impõe conseqüências.
Nos dizeres de Schreiber, (2005, p. 127) "a confiança na coerência de um eventual comportamento posterior é, em tais casos, irrelevante".
E continua (2005, p. 94):
De igual maneira, nas hipóteses em que se prevê de forma expressa a vedação ao comportamento contraditório (v.g., artigos 175, 476 e 491), a impossibilidade de vir contra os próprios atos não deriva aí – ao menos não diretamente – de um princípio segundo o qual o nemo potest venire contra factum proprium, mas de regras específicas ditadas pelo Código Civil. Não se deve, tampouco nestes casos, proceder a investigações acerca da existência ou não de confiança legítima, porque ela foi presumida, incorporando-se positivamente no texto legal a solução que pareceu ao legislador mais adequada. O mesmo acontece com relação àqueles atos considerados vinculantes pelo próprio ordenamento, que já determina sanções para sua contradição. A violação a uma estipulação contratual, por exemplo, não configura em nosso sistema jurídico um venire contra factum proprium, mas inadimplemento contratual em sentido estrito. A invocação do nemo potest venire contra factum proprium nestas situações é desnecessária.
Pode se compreender, assim, que a vedação da conduta contraditória não se aplica somente aos atos vinculantes, que se resumem àqueles aqueles previstos no ordenamento e para o qual já existem sanções em caso de contradição.
Por Menezes Cordeiro (1984, p. 758)
A hipótese de um exercício inadmissível de direitos postula, contudo, que a posição jurídica de cuja actuação se trate não seja, directamente, interferida por normas jurídicas, ainda que de aplicação analógica.
A função primordial do nemo potest venire contra factum proprium, dessa forma, é tutelar a confiança por meio da vedação da incoerência. Aplica-se esta cláusula geral da boa-fé a fim de se proteger as legítimas expectativas criadas em outrem.
Ainda para Menezes Cordeiro (1984; p. 751):
Em suma: a proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra pacta sunt servanda para a juspositividade, mesmo naqueles casos específicos em que a ordem jurídica estabelecida, por razões estudadas, por desadaptação ou por incompleição, lha negue. [...] O vincular uma pessoa às suas atitudes faz sentido, em particular, quando tenham um beneficiário; este, por seu turno, não poderia recusar as necessárias contrapartidas. As permissões normativas esgotar-se-iam no primeiro exercício e todo o relacionamento social converter-se-ia num edifício rígido de deveres irrecusáveis. A essência do jurídico contradiz, por si, tal possibilidade: numa crítica clássica, mas ainda actual, às tentativas de redução do Direito à sociologia, deve ter-se presente que o direito não sanciona o que está; tem uma vocação efectiva para dirigir, num sentido ou noutro, os comportamentos humanos.
A vedação ao comportamento contraditório assume o papel de controladora dos comportamentos dos indivíduos, sendo, por conseguinte, instrumento de realização da confiança e da boa-fé.
7. O nemo potest venire contra factum proprium e o processo civil brasileiro
Por fim, interessante e necessário ponderar brevemente acerca da aplicação dos postulados do venire contra factum proprium em sede de processo civil.
Ora, a esta altura o leitor pode concluir que, em sendo a vedação do comportamento contraditório decorrência do princípio da boa-fé objetiva, a aplicação de suas noções deve ser estendida a todas e quaisquer as relações jurídicas subjacentes, o que, nitidamente, inclui o processo civil.
Tal qual salientado noutra obra de nossa autoria (2006), as partes litigantes não podem adotar comportamentos contraditórios durante o transcurso do processo pelo fato de atuarem como colaboradores da justiça e não meros combatentes antiéticos em juízo.
As partes são obrigadas a obedecer tanto o princípio da boa-fé objetiva quanto o venire contra factum proprium, asseverando-se em especial, a limitação ao exercício de posições jurídicas de forma abusiva e o respeito às legítimas expectativas criadas.
O venire contra factum proprium, hoje bem amparado pela doutrina e jurisprudência, terá a sua aplicação de acordo com a verificação de seus pressupostos pelo julgador.
Pertinentes as disposições de Brunela Vieria de Vincenzi (2003, p. 161), de que "trata-se de, no caso concreto, verificar estarem presentes os postulados ensejadores de sua aplicação, quando nasce o dever do julgador de corrigir situações jurídicas insustentáveis e incorretas".
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