O direito ao lazer encontra-se no mais alto patamar legislativo brasileiro, consolidado como direito social, no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o que, pelos princípios constitucionais de unidade e integração, bem como pelo fato de estar disposto no Título II, "Dos Direitos e Garantias Fundamentais", faz esse direito pertencer à categoria de direito e garantia fundamental.
Entretanto, não somente isso se vislumbra ao se considerarem os princípios do efeito integrador, da unidade e o da máxima efetividade da Constituição, que, por direcionarem sua interpretação à integração e à eficácia social, propagam esse direito a todas as nuances sociais da Carta Maior, seja por indução, a partir de princípios explícitos ou não – alcançando aí, o Direito Constitucional do Trabalho –, ou literalmente, tal como no artigo 7º, IV, artigo 227, Capítulo VII e no artigo 217, §3º, Capítulo III, todos da CF/88.
Essa propagação faz parte da constitucionalização do Direito do Trabalho, "[...] que não se esgota com a inserção dos direitos trabalhistas entre os direitos fundamentais [...]. Compreende também a aplicação dos direitos fundamentais às relações trabalhistas [...]" [01].
Pelo princípio da supremacia da Constituição, o Direito do Trabalho deve ser a partir dela considerado e todas as normas laborais infraconstitucionais estarão sob sua égide, sob sua subordinação, sendo por ela recepcionadas ou não, pois "[...] não se dá conteúdo à Constituição a partir das leis" [02].
Com essa tecnicidade constitucional, que permeia o direito ao lazer ao trabalhador, este se depara com o artigo 62 da CLT, o qual, numa primeira leitura, libera de todos os preceitos do Capítulo II, da CLT – "Da Duração do Trabalho" –, "os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho" e "os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão", desde que percebam salário superior em 40% ao do cargo efetivo. Ou seja, por interpretação gramatical, entende-se que esses trabalhadores poderiam não possuir as garantias legais da limitação da jornada de trabalho, nem dos períodos exclusivos para descanso e nem a expectativa dos adicionais de horas extraordinárias e noturnas. Porém, não significa "[...] que possam eles permanecer à disposição da empresa vinte e quatro horas por dia [...]" [03].
Assim, por ser contrário a consagrados direitos trabalhistas da Constituição Federal, suprimindo garantias específicas ao adicional de horas extras e adicional noturno, ao repouso semanal remunerado e aos descansos intra e inter-jornada, o artigo 62 da CLT é largamente tido como não recepcionado pela Constituição Federal, causando lesão ao direito fundamental ao lazer, estando, por conseguinte, tacitamente ab-rogado.
Entenda-se que há afronta ao direito ao lazer, porque a inconstitucionalidade do artigo 62 da CLT refere-se à retirada dos descansos ou dos tempos livres do trabalhador, tal como no enunciado 17 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho:
A proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7o da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direitos ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT. [04]
Nesse diapasão, o professor Calvet, referindo-se ao direito ao lazer, aduz que "[...] uma interpretação literal e teleológica [...] reconheceria que a Carta Magna não teria permitido a exclusão de nenhum empregado [...] da proteção [...] concedida pelo art. 7º, XIII [...], donde se conclui ser inconstitucional a simples exclusão da duração do trabalho para tais empregados [...]" [05].
Com a máxima vênia, não é inconstitucional o artigo 62 da CLT, nem tampouco a sua inconstitucionalidade é o aspecto que ofende o direito ao lazer, pois essa conclusão parece oriunda de uma interpretação puramente gramatical, confrontando-o (o artigo) diretamente com incisos específicos do artigo 7º da CF/88, desconsiderando-se a garantia do princípio da proteção do caput, contido na expressão "além de outros que visem à melhoria" [06].
Süssekind, com maestria, explica que:
[...] ter a Constituição de 1988 limitado a "duração do trabalho normal" "a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais" (art. 7º, XIII) não se atrita com essas disposições de caráter excepcional, como não vulnerou a redação anterior do art. 62. Primeiro, porque [...], o adjetivo "normal" concerne a "trabalho" e não a "duração". Depois, porque os empregados a que alude o inciso I do dispositivo em foco prestam serviços sem submissão a horário e fora do controle do empregador, enquanto os gerentes [...] desfrutam de posição singular [...] exercendo o poder de comando (diretivo e disciplinar). [07]
Teleologicamente, as atividades que se enquadram no artigo 62 da CLT são aquelas em que o controle de jornada de trabalho é absolutamente impraticável, o que é uma excepcionalidade. Tome-se como exemplo o trabalho de um cobrador em domicílio, que se encontra fora da fiscalização e do controle do empregador, não sendo subordinado a horário, ou, ainda, o trabalho de um gerente que, por manter o poder de decisão e de gestão, tendo um acréscimo salarial, não possui superior que lhe fiscalize o horário. [08]
Neste sentido, rechaçando a inconstitucionalidade, destaca-se decisão do TST:
HORAS EXTRAS. INEXISTÊNCIA DE ATRITO ENTRE O ARTIGO SESSENTA E DOIS DA CLT E O ARTIGO SETIMO, INCISO TREZE, DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA. O artigo sessenta e dois da CLT foi recepcionado pela atual Carta Magna, pois excetua circunstâncias de trabalho não sujeitas a horário ou nas quais o controle da jornada se faz impraticável, em presença das quais inexiste obrigação de remunerar como extraordinário o trabalho prestado. Essas disposições, por especificas, não se atritam, mas, ao contrário, complementam a norma genérica do artigo sétimo, inciso treze, da constituição da republica. Recurso de revista conhecido e provido. [09]
Desta feita, se o controle de horário do trabalhador é absolutamente impraticável, obrigá-lo a registrar sua jornada é retirar-lhe as condições ideais para exercer seu ofício, comprometendo, em virtude dessa natureza da atividade, a coordenação de seu tempo e de seus deslocamentos e também de seu lazer, ferindo o princípio da proteção.
Pelo fato de o artigo 62 da CLT não ser inconstitucional, o direito fundamental ao lazer faz-se presente exatamente na contrapartida da liberdade de horário de trabalho: a liberdade do horário de não-trabalho. Ademais, em conformidade com o princípio da proteção, a eficácia negativa será maior que a conduta positiva do empregador, bem como, por ser um direito de baixa normatividade e de aplicabilidade imediata (fundamental), será o caso concreto que, ponderadamente, estabelecerá a forma, o tipo e a qualidade do direito ao lazer exercido, o qual pode ser ofendido pelos próprios aspectos de não subordinação a horário e de não fiscalização patronal do artigo 62 da CLT, pois pode acontecer de o trabalhador não exercer esse direito. [10]
REFERÊNCIAS
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2009.
______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . 08 abr. 2009.
______. Tribunal Superior do Trabalho. RR – 313641/1996. Relator: Ministro Armando de Brito. Data de Julgamento: 19/11/1997. Quinta Turma. Data de Publicação no DJ: 20/02/1998.
CALVET, Otávio Amaral. Direito ao Lazer nas Relações de Trabalho. Rio de Janeiro: LTR, 2006. p.7. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
HERMIDA, Denis Domingues. As Normas de Proteção Mínima da Integridade Física do Trabalhador. São Paulo: LTr Digital 2, 2007.
SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 22.ed. São Paulo: LTr Digital 2, 2005. v.1, v.2.
Notas
SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 22.ed. São Paulo: LTr Digital 2, 2005. v.1. p.137.
0 HERMIDA, Denis Domingues. As Normas de Proteção Mínima da Integridade Física do Trabalhador. São Paulo: LTr Digital 2, 2007. p.66.
CALVET, Otávio Amaral. Direito ao Lazer nas Relações de Trabalho. Rio de Janeiro: LTR, 2006. p.7. Material da 3ª aula da Disciplina Direitos Fundamentais e Tutela do Empregado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Direito e Processo do Trabalho – UNIDERP/REDE LFG.
Cf. <http://www.anamatra.org.br/jornada/enunciados/enunciados_aprovados.cfm>.
CALVET, op. cit., p.7.
Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social [...]
SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 22.ed. São Paulo: LTr Digital 2, 2005. v.2, p.254.
CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 33.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.122.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. RR – 313641/1996. Relator: Ministro Armando de Brito. Data de Julgamento: 19/11/1997. Quinta Turma. Data de Publicação no DJ: 20/02/1998.
Se o artigo 62 da CLT for interpretado apenas gramatical e literalmente, confrontando-o com os respectivos incisos do artigo 7º da CF/88, o aspecto da inconstitucionalidade prejudicará o direito fundamental ao lazer.