A Lei n.º 8.313/91, também conhecida como Lei Rouanet, foi editada para regular as formas de financiamento federal à cultura, dentre as quais se destaca a renúncia fiscal, objeto de severas críticas.
Em documento oficial [01], o Ministério da Cultura justificou a necessidade de revisão da referida Lei argumentando que a renúncia fiscal seria insuficiente para atender a demanda de financiamento de projetos culturais que recebe. Tal argumento sugere baixo volume de captação financeira por meio da renúncia fiscal, o que não parece ser o caso.
Ainda em referência ao material divulgado pelo Ministério, o Governo Federal investiu cerca de R$ 8 bilhões em 18 anos, ou R$ 444 milhões por ano utilizando-se da renúncia fiscal. Essa captação, porém, teria se mostrado inadequada, pois concentradora de recursos, desigual na distribuição, não-atrativa e de alto custo e espera.
Concentrador: de 2003 a 2007, 3% dos proponentes concentraram 50% do volume captado;
Desigual: em 2007, as regiões Sul e Sudeste ficaram com 80% da verba captada. O Centro-Oeste ficou com 11%, o Nordeste com 6% e ao Norte restou apenas 3%.
Baixa participação da empresas: De cada 10 reais captados, apenas 1 real é dinheiro privado. Os outros nove são de renúncia.
Baixa percepção da aplicação de recursos públicos: Poucas vezes, o cidadão tem conhecimento da atividade cultural que foi realizada com 100% de dinheiro público.
Alto custo operacional e tempo de espera: Em 2007, apenas 50% dos projetos aprovados pelo ministério, conseguiram captação com as empresas. Mais de três mil projetos passaram pelo sistema de avaliação, consumindo tempo de trabalho dos funcionários do ministério e tempo de espera dos produtores, sem que chegassem a um fim com sucesso [02].
Cabe analisar esses argumentos:
A concentração dos recursos captados não tem, a priori, correlação com a renúncia fiscal: é necessário analisar esse índice com a quantidade total de projetos beneficiados. É possível que essa concentração de recursos seja resultado da inoperabilidade da burocracia responsável pela análise dos projetos, bem como da não compreensão do processo administrativo por parte dos interessados. Ademais, nem todas as possibilidades de financiamento foram devidamente regulamentadas pelo MinC: o abatimento da base de cálculo de valores destinados à aquisição e distribuição de ingressos para empregados, por exemplo.
A desigualdade na distribuição de recursos, por seu turno, pode ser reflexo da dificuldade de acesso aos canais próprios ou mesmo do desconhecimento dessa possibilidade de financiamento, o que não é, necessariamente, conseqüência de inadequação da renúncia fiscal como forma de captação de recursos.
Quanto à crítica referente à baixa adesão de empresários aos mecanismos diversos à renúncia fiscal, ela é descabida. O próprio Governo reconhece que, para a edição da Lei Rouanet, a renúncia fiscal foi escolhida como principal instrumento para captação de recursos financeiros. Não deveria, portanto, esperar resultado diferente.
Por fim, quanto à baixa percepção da aplicação de recursos públicos e ao alto custo operacional e tempo de espera, estes são, certamente, problemas de gestão administrativa e da própria burocracia do ministério, que podem ser resolvidos por meio de resoluções e portarias, sem a necessidade de edição de nova lei.
Em tempo, não se afirma que o problema de financiamento de empreendimentos culturais não envolva baixa disponibilidade de recursos financeiros ou que a renúncia fiscal seria o instrumento mais adequado para o financiamento de projetos culturais, mas que esses problemas não se adéquam às justificativas levantadas pela Administração para não alcançar o número desejável de projetos culturais financiados por recursos públicos. Há indícios que esse objetivo não tenha sido atingido por conta de burocracia excessiva, falta de regulamentação e divulgação, ou seja, problemas internos à Administração.
Não obstante essa constatação, é possível que a renúncia fiscal seja, de fato, insuficiente para a captação dos recursos necessários para financiar projetos culturais. Contudo, tal averiguação adentra o aspecto da discricionariedade político-administrativa, motivo pelo qual não será levada em consideração para este trabalho.
Quaisquer que sejam as razões para sua edição, o projeto da nova Lei de Programa de Fomento e Incentivo à Cultura (PROFIC), apelidada de Lei Juca, posto em escrutínio público no dia 24 de março de 2009, tendo a consulta pública se encerrado em 6 de maio de 2009 [03].
Dentre seus vários artigos, o art. 49 trouxe bastante polêmica ao explicitar duas possibilidades de relativização da propriedade intelectual:
1. A utilização para fins não-comerciais e não-onerosos de bens e serviços culturais financiados com recursos públicos, após o período de "reserva de direitos" de três anos;
2. A utilização para fins educacionais de bens e serviços culturais financiados com recursos públicos, após o período de "reserva de direitos" de um ano e seis meses.
É este o seu texto integral:
Art. 49. O Ministério da Cultura e demais órgãos da Administração Pública Federal poderão dispor dos bens e serviços culturais financiados com recursos públicos para fins não-comerciais e não-onerosos, após o período de três anos de reserva de direitos de utilização sobre a obra.
Parágrafo único. A disposição dos bens tratados neste artigo para fins educacionais, igualmente não-onerosos, poderá se dar após o período de um ano e seis meses de reserva de direitos de utilização sobre a obra.
São dois os critérios para essa flexibilização do direito autoral: primeiro o financiamento público do bem ou serviço; segundo a finalidade de sua utilização.
A polêmica não gira, contudo, na flexibilização do direito autoral, pois muitos autores, voluntariamente, licenciam suas obras para fair use por meio, por exemplo, da adesão à Creative Commons. O que se questiona é a compulsoriedade desse licenciamento, ou seja, o fato de a iniciativa do licenciamento partir do Estado, sem qualquer direito a voz por parte do autor, bem como a obscuridade do texto legal, que utiliza conceitos abertos para lançar hipóteses de restrição de direito subjetivo.
Questiona-se, também, a extensão dessa flexibilização compulsória, eis que o texto do artigo não se refere à "utilização", nem "exploração", mas em "disposição", o que poderia inviabilizar a exploração econômica pelo autor de sua própria obra.
Por fim, não está claro o que caracterizaria obra como financiada com recursos públicos. Seria apenas o financiamento total ou parcial com recursos públicos originários ou também englobaria a renúncia fiscal.
Primeiramente, não deveria causar qualquer perplexidade o fato de o Estado criar limitações aos direitos autorais, eis que faz parte do nosso sistema jurídico a mitigação do direito à propriedade para que esta cumpra sua função social.
Ademais, a própria nº Lei 9.610/98 excepciona os direitos autorais no seu art. 46, às seguintes hipóteses:
I - a reprodução:
a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos;
b) em diários ou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquer natureza;
c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem, feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa neles representada ou de seus herdeiros;
d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivo de deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins comerciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedimento em qualquer suporte para esses destinatários;
II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;
III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra;
IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensino por aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publicação, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressa de quem as ministrou;
V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas, fonogramas e transmissão de rádio e televisão em estabelecimentos comerciais, exclusivamente para demonstração à clientela, desde que esses estabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permitam a sua utilização;
VI - a representação teatral e a execução musical, quando realizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamente didáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendo em qualquer caso intuito de lucro;
VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas para produzir prova judiciária ou administrativa;
VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.
Por outro lado, conquanto não se questione a autoridade estatal em limitar direitos autorais, os parâmetros para essa limitação deverão ser extremados de quaisquer dúvidas.
Sabe-se, por exemplo, que os direitos autorais de uma obra não passam ao domínio da Fazenda Pública apenas pelo fato de ter ocorrido subvenção, por expressa vedação do art. 6º da Lei nº 9.610/98.
De outra sorte, não prosperam os argumentos daqueles contrários ao novo texto legal de que os direitos patrimoniais da obra seriam reduzidos dos setenta anos subseqüentes ao de divulgação ou morte do autor, pois não é esse o conteúdo da minuta. Os setenta anos serão mantidos, mas são relativizados para atender a esse ou aquele fim não-econômico e educacional.
Todavia, não é verdade que a exploração econômica se extingue com um ano e meio ou mesmo com três anos da divulgação da obra, como fazem crer as justificativas do MinC. É notório que obras e composições subsistem por anos após a morte de seus autores e esses direitos são herdados por seus sucessores.
Não obstante essas objeções, existe um ponto crucial a ser discutido. O novo texto legal trará em seu bojo a sugestão de que a exclusividade da exploração e disposição da obra pelo seu autor não seria extensão do reconhecimento legal e constitucional à proteção ao direito autoral, mas mera "reserva de direitos" concedida pelo Estado.
O fato de o novel texto legal utilizar-se dessa expressão denota a intenção de decotar esse aspecto da proteção constitucional e diminuir sua importância de tal sorte que sua flexibilização não teria tanta importância.
Ademais, em se tratando de nova exceção à proteção de direitos autorais, seria mais lícito e honesto com a sociedade que o novo texto fizesse referência à Lei nº 9.610/98, incluindo novo inciso ao art. 46, deixando exposta a alteração dentro do sistema. A inclusão dessa excepcionalidade em obscuro artigo nas disposições finais de lei cuja finalidade é a criação de novo programa de fomento à Cultura transparece intenção sub-reptícia inadmissível dentro de Estado de Direito.
Repisa-se, a flexibilização é possível e permitida, mas o ente político deve arcar com todas as conseqüências de sua escolha, bem como de seu abuso. Se é a intenção do agente político criar nova exceção à proteção dos direitos autorias, deve fazê-lo de maneira clara e expressa.
Conclui-se, portanto, que não há óbice ao Estado para autorizar a flexibilização dos direitos autorais de uma obra, desde que feita em conformidade com a boa-fé, nem tampouco que essa flexibilização importa em perda do domínio desses direitos por parte do autor.
Notas
- http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/files/2009/03/novaleidefomentoacultura.pdf, acesso em 17 de maio de 2009.
- http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/files/2009/03/novaleidefomentoacultura.pdf, acesso em 17 de maio de 2009.
- http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Consulta_Publica/programa_fomento.htm, acesso em 17 de maio de 2009.