Artigo Destaque dos editores

O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional

Exibindo página 4 de 5
18/05/2009 às 00:00
Leia nesta página:

6 A MUTAÇAO CONSTITUCIONAL

Conforme vimos no tópico anterior, o Supremo Tribunal Federal, liderado pelo Ministro GILMAR MENDES, está prestes a concluir um julgamento que, sem sombra de dúvida, será um marco na história do Tribunal.

Então relator do processo, o referido Ministro sustentou a tese de que as decisões do Tribunal proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade também deveriam possuir eficácia erga omnes e efeito vinculante, dando provimento à Reclamação constitucional ajuizada com este fim.

Sustentou que o art. 52, X, da CF/88 encontra-se ultrapassado, sendo certo que o papel do Senado, atualmente, deverá se limitar a apenas dar publicidade às decisões do STF. Para embasar juridicamente seu posicionamento, defende que se reconheça uma mutação constitucional do mencionado artigo, atribuindo-se, assim, um novo significado.

Em que pese o fato do julgamento ainda não ter se concluído na Corte Maior, relevante mencionar que o voto do então relator Gilmar Mendes já foi referendado pelo voto do Ministro Eros Grau e que, conforme o posicionamento da doutrina, tem toda a possibilidade de ser acolhido pelos Ministros restantes.

6.1 ENTENDENDO A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

Para podermos verificar se o argumento trazido pelo Ministro Gilmar Mendes tem coerência, antes precisamos ter a idéia do que consiste a mutação constitucional.

Primeiramente, esclarecemos que o termo está intimamente ligado com a hermenêutica constitucional. Segundo anota o Professor Pedro Lenza (2008, pg.68), foi o tema introduzido pela Professora da Faculdade de Direito da USP, Anna Cândido da Cunha Ferraz. Em seu trabalho, a ilustre doutrinadora diferenciou mutação constitucional de reforma constitucional.

A reforma constitucional consiste no clássico processo de mudança da Constituição, por meio dos procedimentos nela previstos, com o escopo de suprimir, alterar ou acrescentar dispositivos ao texto original. Por sua vez, mutação constitucional consiste numa espécie de mudança da Constituição, porém, sem alteração na sua redação original. O que é modificado é o alcance, a interpretação, o sentido de determinado termo ou expressão, porém, estes continuam intactos, sem modificação textual.

Em seu entendimento, Pedro Lenza (2008, pg.68) explica que as mutações "não seriam alterações ''físicas'', ''palpáveis'', materialmente perceptíveis, mas sim alterações no significado e sentido interpretativo de um texto constitucional".

Já para o Uadi Lammêgo Bulos, mutação constitucional é "o processo informal de mudança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos, conteúdos até então não ressaltados à letra da constituição, quer através de interpretação, em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermédio da construção, bem como dos usos e costumes constitucionais".

O professor Inocêncio Coelho (2007, pg.123), em sua obra conjunta com Gilmar Mendes e Paulo Branco, nos ensina que:

As mutações constitucionais nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação.

Continua:

As mutações constitucionais são decorrentes – nisto residiria sua especificidade – da conjugação da peculiaridade da linguagem constitucional, polissêmica e indeterminada, com os fatores externos, de ordem econômica, social e cultural, que a Constituição – pluralista por antonomásia -, intenta regular e que, dialeticamente, interagem com ela, produzindo leituras sempre renovadas das mensagens enviadas pelo constituinte.

Destrinchando o quanto dito anteriormente, tem-se que a mutação faz parte da hermenêutica constitucional, pois, é justamente com as técnicas de interpretação que se possibilita ao operador do Direito atualizar o ordenamento jurídico. Os valores da sociedade, os conceitos do homem médio e os anseios do povo não são estanques. Eles evoluem. E não é a lei quem acompanha o ritmo dessas mudanças, mas sim os Tribunais, constantemente provocados para que adequem a norma legal à realidade.

Desse raciocínio, verificamos que o processo de mudança informal da Constituição (mutação constitucional) representa e concretiza o caráter dinâmico das normas jurídicas e, ao mesmo tempo, duradouro, pois referimo-nos à reinterpretação da lei (sentido amplo), porém, sem qualquer modificação em seu texto.

Nesse sentido, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo nos ensinam que (2008, pg.545):

"As denominadas mutações (ou transições) constitucionais descrevem o fenômeno que se verifica em todas as Constituições escritas, mormente nas rígidas, em decorrência do qual ocorrem contínuas, silenciosas e difusas modificações no sentido e no alcance conferidos às normas constitucionais, sem que haja modificação na letra do seu texto. Consubstanciam a chamada revisão não formal da Constitucional. Em uma frase: ocorre uma mutação constitucional quando ‘muda o sentido da norma sem mudar seu texto".

Adiante, acrescentam:

"(...) outro fator que favorece sobremaneira a mutação constitucional informal é o caráter altamente abstrato e a textura aberta de grande parte das normas constitucionais. Essa característica das normas constitucionais deixa um razoável espaço de atuação aos agentes densificadores e concretizadores da Constituição, que têm a possibilidade de, sem deturpar ou afrontar a letra do Texto Maior, conferir-lhe sentido não previsto na ocasião de sua elaboração, porém, condizente com as modificações da realidade que desde então se verificaram" (grifos nossos).

Feitas essas considerações, questiona-se novamente se é possível utilizar esse instituto (da mutação constitucional) para modificar a competência do Senado Federal, prevista expressamente na Constituição Federal, na forma pretendida no voto do Ministro Gilmar Mendes.

6.2 A (IM)POSSIBILIDADE DE MUTAÇAO CONSTITUCIONAL

Para que o estudo fique claro, convém reproduzir textualmente a disposição do art. 52, X, da CF/88 e, consequentemente, apresentar o novo sentido que se almeja conferir ao dispositivo. Pois bem.

O art. 52, X, da CF/88 possui a seguinte redação:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

X- suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;

Evidente que o referido artigo traz em si uma das competências que a própria Carta Magna reservou à Casa Legislativa. E esta competência é a de suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF.

Agora, nos cabe apresentar o novo sentido que se pretende atribuir ao citado artigo, por vias de mutação constitucional: compete privativamente ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo.

Ao que nos parece, pela comparação das duas terminologias, não há como se justificar que a segunda resultou de uma mudança de interpretação da primeira, o que se esperaria de uma verdadeira mutação. Vamos às explicações.

Num primeiro plano, vemos que semanticamente as duas expressões são bastante distintas. "Suspender a execução" é uma expressão de conteúdo fechado, taxativo. Não poderá, nunca, se transformar em "dar publicidade à suspensão". São idéias distintas, com conteúdos e noções distintos, inconfundíveis. Não existe releitura, amadurecimento, atualização conceitual que consiga subsidiar uma alteração desse porte.

Assim, como vimos que a mutação constitucional consiste numa reforma constitucional sem modificação de texto, mas sim uma modificação apenas nos sentidos das terminologias, resta evidente que o quanto pretendido pelo Ministro Gilmar Mendes não encontra guarida nesse fundamento.

Ao justificar que houve uma interpretação evolutiva, nos dizeres do Prof. Dirley da Cunha, é necessário que a "nova interpretação" comporte no invólucro da expressão. Já disse o Ministro Eros Grau, em seu voto-vista, que "ainda quando operem o que chamamos de mudança de jurisprudência, os intérpretes autênticos não estão livres para modificá-lo, o texto normativo, à vontade, reescrevendo-o a seu bel-prazer".

O que se defende aqui é que, caso pretenda fazer uma releitura de certa norma, o intérprete não poderá adequá-la àquilo que simplesmente achar conveniente. É preciso que a reformulação encontre sentido e harmonia com a expressão já existente, posto que não há palavra na língua pátria destituída de qualquer conteúdo, a ponto de comportar um preenchimento em qualquer sentido desejado. Assim, existem noções mínimas que precisam ser observadas ao se reinterpretar uma expressão, sob pena de se incidir num neologismo, fato totalmente diverso de uma simples releitura textual.

Sendo certo que nem no voto do Relator Gilmar Mendes quanto no voto-vista do Ministro Eros Grau se falou em neologismo, concluímos que utilizar a mutação constitucional para modificar a competência do Senado é uma interpretação forçada, posto que distorce um instituto com o desiderato de modificar a Constituição, sem preocupação com seus limites.

Essa é uma conclusão, porém, exclusivamente semântica e conceitual. Observamos que, de acordo com o conceito de mutação constitucional, ela não se encaixa nos objetivos dos Ministros do Supremo Tribunal. Todavia, não existem apenas implicações semânticas nos votos apresentados, mas também jurídicas, e de grande relevância. Essas implicações jurídicas legitimam as modificações pretendidas?

Analisando o voto do Ministro Eros Grau, verificamos uma incongruência jurídica ao tratar novamente acerca da mutação constitucional. Como já apresentado, primeiramente ele define que a mutação constitucional consistiria na "transformação de sentido do enunciado da Constituição sem que o próprio texto seja alterado em sua redação" Contudo, a poucas linhas de distância, conclui o renomado Ministro que "Na mutação constitucional caminhamos não de um texto para uma norma, porém de um texto para outro texto, que substitui o primeiro", grifamos.

Sem necessidade de buscar maiores apoios na doutrina, sabemos que a característica da mutação é a alteração do alcance da norma sem alteração do texto. E disso o Ministro não discorda, posto que observou exatamente o mesmo em sua primeira passagem colacionada acima. Porém, conclui posteriormente que se enquadraria no conceito em estudo a alteração de um texto para outro texto, substituindo-o.

Em outra passagem, o Ministro Eros Grau reconhece que o Relator Gilmar Mendes não está apenas conferindo uma nova interpretação à Constituição, não está extraindo uma norma desse texto, mas sim criando novas disposições. "O que afirma o Relator é uma mutação, e não uma interpretação" distingue.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Novamente aqui se fez uma distinção equivocada, que não corresponde à realidade. A mutação decorre da interpretação, por excelência. Atribuir nova dimensão a uma expressão é interpretá-la sob novo ângulo, novo ponto de vista. É por meio da interpretação que se alcança a mutação. Assim, afirmar que existe uma profunda diferença entre mutação e interpretação é ir de encontro à própria essência do instituto, sendo evidente que não há como acolher o posicionamento do Ministro Eros Grau sobre esta matéria.

Obviamente que não se pretende aqui, em momento algum, corrigir equívocos de juristas do porte do Ministro referido. Na verdade, não se acredita que o ocorrido seja efetivamente um erro despercebido. Infere-se que o novo conceito de mutação constitucional foi conscientemente colocado no voto, com o nítido escopo de utilizá-lo como fundamento para concretizar a reforma desejada por Gilmar Mendes.

Ou seja, modifica-se o conceito de mutação constitucional para que esta dê suporte à modificação do art. 52, X, da CF/88. É a mutação do próprio conceito de mutação constitucional.

O Doutor Lênio Streck, em artigo publicado em co-autoria com Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Martoni Mont’Alverne Barreto Lima (2007, pg.2), no qual faz duras críticas às pretensões dos mencionado Ministros do STF, observa que:

O direito – compreendido no interior dessa ruptura paradigmática – não pode ser entendido como espaço de livre atribuição de sentido; essa questão assume especial relevância quando se trata do texto constitucional. Ou seja, em determinadas situações, mutação constitucional pode significar, equivocadamente, a substituição do poder constituinte pelo Poder Judiciário. E, com isso, soçobra a democracia.

Mais adiante, corrigem:

Com efeito, a tese da mutação constitucional é compreendida mais uma vez como solução para um suposto hiato entre texto constitucional e a realidade social, a exigir uma "jurisprudência corretiva", tal como aquela a que falava Büllow, em fins do século XIX (veja-se, pois, o contexto histórico): uma jurisprudência corretiva desenvolvida por juízes éticos, criadores do Direito" (Gesetz und Richteramt, Leipzig, 1885) e atualizadores da constituição e dos supostos envelhecimentos e imperfeições constitucionais; ou seja, mutações constitucionais são reformas informais e mudanças constitucionais empreendidas por uma suposta interpretação evolutiva.

Não obstante a distorção do instituto da mutação constitucional, tanto semântica quanto juridicamente, existem outras implicações, ainda jurídicas, que também precisam ser levadas em consideração ao se analisar os votos dos referidos Ministros do STF.

Como Guardião da Constituição, o STF tem plena consciência dos limites que a própria Constituição estabeleceu para sua reforma. Limites estes que visam, como já visto, garantir a durabilidade do Texto Constitucional, assegurando sua supremacia e rigidez em face das ingerências que invariavelmente irá sofrer.

Entretanto, abrindo mão dos limites constitucionalmente impostos, pretendem os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau efetivar uma verdadeira reforma constitucional, a seu bel-prazer. A tese por eles levantada não se enquadra em nova interpretação, mas sim em modificação expressa da Constituição. Dispensa-se o Poder Legislativo, dispensam-se as emendas constitucionais, dispensam-se os quoruns de aprovação e faz-se uma sorrateira alteração no texto constitucional.

O Poder Judiciário não possui legitimidade, ainda que se trate da mais alta Corte do País, para alterar a Constituição. O papel do Supremo Tribunal Federal é diametralmente oposto, é o de justamente preservar e defender o texto constitucional, atuar para que as disposições constantes na Carta Magna não sejam subvertidas, ignoradas ou extrapoladas.

Por sua vez, não pode a alta Corte do país se valer da prerrogativa de guardiã da Constituição para, singelamente, fazer alterações em suas disposições, ainda que se tenha a mais nobre das intenções.

Estamos a falar em ofensa à separação dos Poderes, uma vez que estaria o Judiciário, o qual não possui legitimidade para legislar, invadindo as esferas de atribuições do Poder Legislativo, este único apto a efetivar quaisquer mudanças no corpo da Constituição. Além, é preciso atentar para ofensas à rigidez Constitucional.

Como bem observado no tópico 2.2, a Constituição é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico. Como norma suprema, instituiu regras próprias para sua reforma, limitando-a, bem como meios para garantir sua primordialidade. Quanto às regras, consagrou o Poder Legislativo como o único legitimado a efetuar qualquer modificação no texto constitucional, previu quórum qualificado de aprovação e discussão em ambas as Casas Legislativas, em dois turnos, dispensando-se até mesmo o Poder Executivo de todo este processo legislativo. Quantos aos meios de defesa, um dos mais importantes foi a concepção do Supremo Tribunal, voltado para salvaguardar a supremacia constitucional. E só. Defendê-la, sempre, reformá-la, jamais.

Ainda nas palavras do Professor Lenio Streck (2007, pg.2), um dos principais críticos ao posicionamento dos Ministros do STF, "o processo histórico não pode, desse modo, delegar para o Judiciário a tarefa de alterar, por mutação ou ultrapassagem, a Constituição do País".

E continua em sua crítica:

Em síntese, a tese da mutação constitucional advoga em última análise uma concepção decisionista da jurisdição e contribui para a compreensão das cortes constitucionais como poderes constituintes permanentes.Ora, um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode "inventar" o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia.

A atividade jurisdicional, mesmo a das cortes constitucionais, não é legislativa, muito menos constituinte (e assim não há o menor cabimento, diga-se de passagem, na afirmação do Min. Francisco Rezek, quando do julgamento da ADC n.º 1, quando este dizia que a função do STF é a de um oráculo (sic) que "diz o que é a Constituição").

Ainda ensina que o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente.Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de estar garantindo-a ou guardando-a.

Admitir-se a procedência do quanto pretendido no julgamento da Reclamação 4.335 é legitimar o STF a extrapolar a função corretiva inerente à jurisdição constitucional. A interpretação constitucional desmesurada levaria o Tribunal ao absurdo de sempre produzir novos textos, acobertado pelo manto da mutação constitucional.

Outro aspecto a ser observado, ao se falar em objetivação do controle difuso, é a mudança trazida pela Emenda Constitucional n° 45, que introduziu no ordenamento jurídico a Súmula Vinculante, fato que, talvez, ponha termo em toda a discussão envolvendo os efeitos das decisões do STF proferidas em sede de controle difuso.

Consoante previsão do art. 103-A da CF/88, o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

Sem adentrar na discussão acerca da utilidade desse instrumento, fato é que o mesmo já vigora em nosso País. Assim, caso o Tribunal entenda, ou seja provocado para tanto, que determinada matéria que é constantemente julgada precisa ser uniformizada, procederá à edição de uma Súmula que represente seu entendimento acerca da matéria.

Observe-se que existe, então, em nosso ordenamento, a par das Ações Diretas, um mecanismo que possibilita o Supremo Tribunal Federal estabelecer um entendimento e vinculá-lo aos demais órgãos do Poder Judiciário e a todas as esferas da Administração Pública. Esse instrumento é a Súmula Vinculante.

Por conseguinte, atentemos para o fato que, para a edição da Súmula, é necessário um quorum especial, de dois terços, bem como que a matéria já tenha sido objeto de julgamento reiteradas vezes. Tais requisitos se justificam em virtude da dimensão que o efeito vinculante possui. É como se exigisse um amadurecimento do Tribunal e, consequentemente, das decisões, para que o mesmo fosse estendido a todos, o chamado efeito erga omnes.

Mas o que se deve ser levado em consideração é que a Súmula Vinculante foi recentemente incluída no Corpo Constitucional (2004). E esta recente inclusão confirma o sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil: o sistema misto.

Conforme já estudado anteriormente, vimos que o Brasil adotou o sistema misto de controle de constitucionalidade, inspirado no controle difuso norte-americano e no controle concentrado austríaco. Ambos os sistemas convivem e se completam no ordenamento pátrio. E a instituição da Súmula Vinculante contribuiu para reforçar a nítida distinção que as diferentes formas de controle possuem.

Lembremo-nos que a idéia para a instituição de uma súmula com caráter vinculante foi apresentada pela primeira vez em 1963. Apenas 41 anos depois é que se chegou ao consenso de que sua aplicação seria útil ao direito brasileiro. E ao se falar aplicação, entenda como autorizar o STF a estender efeitos vinculantes e para todos nas suas decisões.

Estender os efeitos das decisões proferidas em controle difuso consistiria em tornar inócuas as Súmulas Vinculantes que agora (2004) podem ser editadas pelo Supremo Tribunal. Inócuas porque estas dependem da aprovação de dois terços dos membros do Supremo Tribunal para sua aprovação, ao passo que uma decisão aprovada em maioria simples, 6 contra 5, por exemplo, obviamente não uniformizada, já produziria efeitos contra todos sem maiores dificuldade.

Portanto, a sua instituição reforça que possuímos um controle concentrado, exercido por meio das Ações Diretas, com os já sabidos efeitos vinculantes e erga omnes, bem como um controle difuso, exercido, em regra, por meio de Recurso Extraordinário, com efeitos inter partes, que poderão ser estendidos a todos, caso o Tribunal sinta a necessidade para tanto, utilizando-se a Súmula Vinculante. Esta foi a opção do constituinte originário, percebida com a promulgação da Constituição Federal em 1988, bem como do constituinte derivado, verificada com a Emenda Constitucional n° 45/2004.

Em outras palavras, percebemos que, ao longo da vigência da Constituição Federal de 1988, o constituinte derivado (único legitimado a alterar o texto constitucional) reforçou a permanência de dois modelos de controle de constitucionalidade, sabendo-se que teve oportunidade para modificá-la. Para atribuir efeitos erga omnes às decisões do controle difuso, foram necessários 41 anos de amadurecimento. Assim, indaga-se: qual a legitimidade que o Supremo Tribunal Federal possui para, em apenas um voto, modificar todo um sistema constitucional, instituído e referendado pelos Poderes Constituintes?

Logicamente que a resposta não pode ser outra, a não ser: nenhuma. Mudanças na Constituição só podem ser realizadas após um amplo debate, amadurecimento e votação no Congresso Nacional. Qualquer outra forma é inválida, ilícita e deslegitimada.

Caso o Supremo Tribunal Federal entenda que determinada matéria é extremamente relevante e precisa ser uniformizada, verticalmente, estendendo-se seus efeitos para todos, já existe um instrumento para tanto, que é a Súmula Vinculante. Então, se existe tal instrumento, por que não utilizá-lo, ao invés de propor uma sorrateira reforma na Constituição, fantasiada de mutação constitucional?

Ressaltemos que o que se critica aqui não é o próprio conteúdo da mudança pretendida. Não se está a questionar quais os benefícios ou prejuízos que um possível efeito erga omnes à todas as decisões do STF poderia trazer ao ordenamento jurídico brasileiro. O que se impugna é a forma como essas mudanças estão sendo introduzidas em nosso controle de constitucionalidade.

O ilustre professor Pedro Lenza (2008, pg.155,156), em sua obra, traz brilhante observação sobre o tema, a qual, apesar de extensa, merece ser transcrita aqui, pela precisão e clareza:

Muito embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5°, LXXVIII – Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da Constituição (Konrad Hesse), parecem faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam processuais, sejam constitucionais, para a sua implementação.

O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentrado e para a súmula vinculante (EC n.45/2004) e, em se tratando de controle difuso, nos termos do art.52, X, da CF/88, somente após a atuação discricionária e política do Senado Federal.

Portanto, no controle difuso, não havendo suspensão da lei pelo Senado Federal, a lei continua válida e eficaz, só se tornando nula no caso concreto, em razão de sua não aplicação.

Assim, na medida em que a análise de constitucionalidade da lei no controle difuso pelo STF não produz efeito vinculante, parece que somente mediante necessária reforma constitucional (modificando o art. 52, X, e a regra do art. 97) é que seria possível assegurar a constitucionalidade dessa nova tendência – repita-se, bastante atraente – da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso, com caráter vinculante.

Se aceita nos parâmetros propostos, a transcendência, com caráter erga omnes, dos motivos determinantes da sentença no controle difuso autorizaria, inclusive, o uso da reclamação em caso de descumprimento da tese constitucional resolvendo enquanto questão prejudicial. Outra não poderia ser a interpretação.

É de se observar que o Professor Pedro Lenza questiona exatamente, assim como nós, a forma como a mudança está sendo realizada no Direito Brasileiro. Para ele, faltam dispositivos que autorizem a pretendida reforma, dispositivos que só poderiam ser encontradas após uma emenda à Constituição.

A pretensão dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, até o momento os únicos dispostos a abraçá-la no STF, encontra óbice na Constituição e no próprio Direito como Ciência. Foram desprezados institutos jurídicos e disposições constitucionais, em prol de um aprimoramento no controle de constitucionalidade pátrio.

Entendemos que a modificação almejada do art. 52, X, da CF/88 não condiz com uma simples releitura, mas constitui uma verdadeira e cristalina reforma do seu texto, do seu sentido e do seu alcance. Reforma esta que não poderá ser concretizada por um julgamento no Supremo Tribunal Federal, ainda que todos os seus Ministros estejam de acordo.

Modificar o art. 52, X, da Constituição Federal não significa uma alteração apenas num artigo, mas significa uma alteração em todo nosso sistema de controle de constitucionalidade. A grande questão não é só alterar uma competência do Senado Federal, mas também alterar a forma como nossa lógica de controle se projeta.

Temos a tradição do controle difuso, do Recurso Extraordinário. Com a Constituição de 1988, o controle concentrado ganhou força e expressão, porém, sem ofuscar o controle dos casos concretos. Importamos dois sistemas de controle e viabilizamos a convivência entre ambos. Cada um exerce adequadamente seu papel em nosso ordenamento jurídico.

A distinção entre ambos reside, exatamente, nos efeitos em que cada um proporciona. Utiliza-se o controle concentrado, abstrato, por meio das Ações Diretas, justamente por ser apto a sanar a inconstitucionalidade integralmente, posto que vincula a todos, impossibilitando as exceções.

Porém, esclareço que não é o fato de termos a tradição de ambos os sistemas que impede a pretensão consubstanciada na Reclamação 4.335. A coexistência entre ambos os sistemas representa nossa realidade e nossa mentalidade. É assim que está disposto nosso controle de constitucionalidade. É dessa forma como dispõe a própria Constituição Federal

A tradição impede a mudança? Jamais. Contudo, se existe a pretensão de modificar, esta modificação deve ser concretizada pela forma correta e constitucionalmente legítima. Possuímos um Congresso Nacional que, apesar de todas as críticas, ainda possui a competência, exclusiva, diga-se de passagem, para fazer qualquer reforma no corpo da Constituição.

Se os Ministros entendem ser obsoleto o disposto no art. 52, X, devem se mobilizar para que uma proposta de emenda à Constituição seja apresentada, discutida e votada. O crivo do Poder Legislativo é imprescindível para tal desiderato. É assim como funciona nosso ordenamento jurídico.

Em seu voto, o Ministro Eros Grau afirma o seguinte:

Sucede que estamos aqui não para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [=discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o inverso.

Vislumbra-se que o mencionado Ministro reduz a questão a uma simples discussão doutrinária, como se estivéssemos tratando de conceituar um instituto jurídico. Além disso, despreza as manifestações doutrinárias, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal carta branca para tomar qualquer decisão, mesmo que contrária ao posicionamento doutrinário pátrio, argumentando que este deve se submeter àquele, com relutância ou não.

Contudo, é preciso lembrá-lo que o cerne da questão não é apenas jurídico, o que estaria inserido na competência da Suprema Corte, mas sim político, envolvendo os Poderes da República. Modificar a Constituição, extinguindo uma competência do Senado Federal, não é uma decisão jurídica, mas sim política. E se é política, deverá ser tomada por quem de direito. Pra isso existem o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

Os excessos do STF, personificados em seus Ministros, está contribuindo para torná-lo, sempre mais, um Tribunal político, desvinculando-o de seu real papel. Não sem razão, percebemos uma crescente crítica, doutrinária e midiática, ao papel desenvolvido atualmente pelo Tribunal, argumentando-se que o mesmo extrapola as questões constitucionais e passa a atuar como última instancia sobre as decisões que interessam politicamente ao Estado.

No caso em questão, se argumentou que a medida serviria para dar mais celeridade e eficiência ao processo judicial, evitando-se sobrecarregar o STF de processos repetitivos, além de conferir-lhe uma melhor característica de Tribunal Constitucional.

Acontece que esse argumento esbarra no próprio molde do controle concentrado. Hoje, nosso sistema comporta a concessão de medidas cautelares nos autos das Ações Diretas, ainda que proferidas monocraticamente. Tal instrumento visa, exatamente, dar celeridade e uniformidade ao processo brasileiro, possibilitando, por exemplo, que um Ministro do STF suspenda o julgamento de todas as ações que envolvam determinada matéria até o pronunciamento final do Tribunal, pronunciamento este que, por se tratar de controle concentrado, terá efeitos vinculantes e erga omnes em todo o território nacional.

E precisamos reconhecer que é muito mais célere conseguir um pronunciamento do STF ingressando com uma Adin, por exemplo, do que esgotar todas as instancias ordinárias para se interpor um Recurso Extraordinário e pleitear a mesma decisão. Portanto, ao se falar em celeridade, basta olharmos para nosso próprio sistema e explorar aquilo que já temos à disposição.

Por fim, resta a idéia da vantagem de se transformar o Supremo Tribunal Federal, cada vez mais, em um verdadeiro Tribunal Constitucional.

Como vimos, a idéia de Tribunal Constitucional foi desenvolvida por KELSEN e implantada, originariamente, na Áustria. Obviamente, lá se desenvolveu o que chamamos de Sistema Austríaco de controle de constitucionalidade, do qual o Brasil importou alguns institutos.

A característica marcante desse sistema é a de se ter um Tribunal com exclusiva competência para exercer o controle de constitucionalidade. Apenas este poderá resolver sobre a compatibilidade de uma norma com o ordenamento vigente. Ainda, ressaltemos que a manifestação do Tribunal se dá de forma abstrata, sem vinculação com um caso concreto. Consequentemente, como apenas o Tribunal poderá decidir sobre as inconstitucionalidades, nada mais lógico do que todas as suas manifestações terem efeitos erga omnes.

Significa dizer que o Tribunal foi não concebido para funcionar como uma instância recursal, mas, apenas, como um órgão como uma reduzida e exclusiva competência. Essa é a idéia de um verdadeiro Tribunal Constitucional.

Voltando para o Brasil, atentemos para o argumento utilizado por alguns dos defensores da reformulação do art. 52, X, da CF/88, a de que tal reforma resultaria em aproximar o STF de um clássico Tribunal Constitucional. Essa argumentação é apenas em parte – pequena, inclusive - verdadeira.

Atribuir efeitos vinculantes e erga omnes a todas as decisões do STF não significa transforma-lo num Tribunal Constitucional, uma vez que essa não é a característica que lhe confere tal status. O efeito erga omnes do verdadeiro Tribunal Constitucional decorre exclusivamente da lógica do sistema, posto que, ao apreciar a constitucionalidade abstratamente, estará atuando como legislador negativo, e é incontroverso que as manifestações do legislador, ainda que negativo, não podem ser direcionadas a uma única pessoa, a um único caso.

Assim, a simples idéia de estender os efeitos das decisões do nosso Supremo Tribunal é insuficiente para transformá-lo num verdadeiro Tribunal Constitucional. Para se alcançar tal desiderato, mais uma vez é preciso que se faça uma ampla reforma em todo nosso sistema jurídico, reestruturando as competências do STF, extinguindo-o como uma instancia recursal e conferindo exclusivamente a atribuição de decidir sobre todas as inconstitucionalidades suscitadas.

Obviamente que uma mudança desse porte não ocorre em um curto espaço de tempo. Deve ser fruto de um processo lento e histórico, com uma mudança de mentalidade da comunidade jurídica e do reconhecimento de que tais transformações trarão melhorias ao nosso controle de constitucionalidade.

Como ainda estamos bem longe de alcançar esses patamares, somos obrigados a concluir que todas as transformações que se pretendem fazer na Constituição e todos os argumentos utilizados carecem de amparo. Primeiramente, amparo constitucional, e, posteriormente, de amparo racional, sendo suficientes para que nos ergamos e contestemos tais incongruências, tudo com o único fim de preservar a higidez do nosso sistema jurídico e da nossa Constituição Federal.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Daniel Leite. O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2147, 18 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12876. Acesso em: 25 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos