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O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional

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18/05/2009 às 00:00
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7 CONCLUSÃO

Vimos no presente trabalho, que, com o advento da Constituição Federal de 1988, consolidou-se no Brasil um sistema misto de controle de constitucionalidade, no qual convivem harmonicamente os modelos concentrado e difuso de controle, oriundos dos sistemas austríaco e norte-americano, respectivamente.

Uma das características que distingue o modelo concentrado do modelo difuso, além dos órgãos legitimados para exercer o controle, relaciona-se com os efeitos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, que foi o objeto do presente estudo.

No controle concentrado, exercido por meio das Ações Diretas, as decisões do STF operam efeitos vinculantes e erga omnes, ao passo que no controle difuso as decisões produzirão efeitos apenas entre as partes dos processos.

Como se trata do mesmo Tribunal, com a mesma composição, poder-se-ia questionar a incongruência de tal sistema, no qual o mesmo órgão ora profere decisões inter partes, ora as profere erga omnes. Em face de tal situação surge a competência do Senado Federal, hoje consubstanciada no art. 52, X, da CF/88, de suspender a execução, no todo em parte, de lei declarada definitivamente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, estendendo a todos que não participaram do processo os efeitos da decisão do mencionado Tribunal.

Esse panorama, em teoria, resultaria num harmônico sistema de controle de constitucionalidade, com instrumentos capazes de sanar eventuais incongruências e irregularidades. Contudo, principalmente com a evolução do STF em matéria de hermenêutica constitucional, o mesmo tem se mostrado insuficiente. É que novas técnicas de interpretação estão sendo utilizadas, tal como a interpretação conforme a Constituição, concretizando o controle de constitucionalidade, porém, impossibilitando a atuação do Senado Federal, uma vez que não há, efetivamente, um reconhecimento de inconstitucionalidade da norma. Além disso, acrescente-se a própria inércia dessa Casa Legislativa e vivenciamos um colapso na ponderação entre ambos os modelos de controle de constitucionalidade.

Face esta realidade, o Ministro Gilmar Mendes, relator da Reclamação 4.335/ACRE, propôs, em seu voto, uma modificação em nosso sistema de controle de constitucionalidade, a qual resultaria numa jurisdição, segundo ele, mais célere e afinada com a modernidade.

Assim, defendeu que a competência atribuída ao Senado Federal no art. 52, X, da CF encontra-se obsoleta, ultrapassada, merecendo uma releitura. Para o Ministro, a mesma sofreu uma mutação constitucional. Agora, em vez do Senado suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, propõe o Ministro que a este órgão seja atribuída a competência para, apenas, dar publicidade às decisões do STF, as quais já possuiriam o efeito erga omnes.

Compartilham desse posicionamento o também Ministro Eros Grau, o qual já apresentou voto-vista nesse sentido, e parte da doutrina, conforme demonstrado ao longo do presente estudo.

Contudo, entendemos que esse não é o melhor entendimento, pois esbarra em questões lógicas e jurídicas, as quais impedem sua concreção.

Primeiramente, vimos que o conceito de mutação constitucional foi deturpado nos votos dos Ministros. A mutação ocorrerá quando houver uma mudança de alcance da norma sem que haja uma mudança de seu texto. Essa é a sua essência. E o pretendido pelos Ministros é coisa diversa. Pretendem modificar a norma com uma real alteração do seu texto, ainda que não efetivamente incorporada ao corpo constitucional. Assim, o instituto da mutação constitucional é inadequado para subsidiar a reforma pretendida.

Dando continuidade, argumentamos que o Supremo Tribunal Federal, como órgão máximo do Poder Judiciário, não possui legitimidade para alteração a Constituição quando achar conveniente. A Carta Magna instituiu rígidos mecanismos para a sua alteração, os quais são de observância obrigatória. Conferiu ao STF a função de zelar e proteger seus preceitos, e não a de alterá-la. Dessa forma, temos como nitidamente inconstitucional a "interpretação" dada pelo STF ao art. 52, X, da CF/88, posto que se trata de uma reforma constitucional ás avessas.

Ressaltamos que, com a instituição da Súmula Vinculante no ordenamento jurídico pátrio, toda a presente discussão mostra-se infundada. É que, ao se utilizar das Súmulas, o STF estaria estendendo os efeitos das suas decisões a todos, com efeitos vinculantes. Por tal razão, não haveria aparente sentido alterar-se sorrateiramente um artigo da Constituição Federal para alcançar o mesmo fim.

Acrescentamos que a Súmula Vinculante, para a sua aprovação, exige um maior "amadurecimento" por parte do Tribunal, ao demandar o voto de, pelo menos, dois terços dos Ministros e restringir-se a matérias que já foram objeto de reiteradas apreciações. Tais requisitos demonstram que, para estender os efeitos das decisões, um caminho mais longo deve ser percorrido, justamente por se tratar de uma questão que envolverá a todos.

Por esta razão, entendemos que, caso o Supremo Tribunal Federal julgue necessário uniformizar em todo o país seu entendimento sobre determinada matéria, terá ele como instrumento para tanto a Súmula Vinculante. Assim, se já existem os mecanismos para este desiderato, não há razão para se alterar a Constituição, ainda mais da forma como se pretende.

Argumentamos, ainda, que a ideia de aproximar o Supremo Tribunal Federal de um verdadeiro Tribunal Constitucional não encontra guarida nos fundamentos apresentados tanto nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau quanto na doutrina.

É que a característica primordial do verdadeiro Tribunal Constitucional não é proferir decisões com efeitos erga omnes, mas sim ser um órgão dotado de competência exclusiva para exercer o controle de constitucionalidade, funcionando efetivamente como um legislador negativo. A extensão dos efeitos de suas decisões decorre da lógica, e não de sua característica.

Para finalizar, observamos que as a reforma do art. 52, X, da CF/88 possui um verdadeiro cunho político, ainda que seja para aprimorar o Poder Judiciário. E decisões políticas só podem ser tomadas por quem de direito: Poder Executivo e Poder Legislativo. Ao Poder Judiciário é conferida unicamente a apreciação de questões jurídicas.

Caso entenda-se que a Constituição Federal possui trechos obsoletos, que exigem uma imediata reforma, o caminho a ser seguido é um só. Provocar o Poder Legislativo para que o mesmo, após discussões e votações, aprove uma Emenda Constitucional. É esta a forma prevista pela própria Constituição. Agir diferente é sabotar o texto constitucional, mesmo que se pretende aprimorá-lo.

Em vista de tudo quanto exposto, entendemos ser inconcebível a mutação constitucional da competência do Senado Federal prevista no art. 52, X, da CF/88. Assim, caso o julgamento da Reclamação 4.335 termine com um quorum favorável ao posicionamento do relator, abriremos uma porta para que, de agora em diante, o Supremo Tribunal Federal possua legitimidade e competência para moldar a Constituição Federal a seu bel-prazer, reunindo poderes quase que ilimitados, sepultando o princípio da separação dos Poderes e, por que não, a democracia brasileira.


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RIBEIRO, Daniel Leite. O STF e a (im)possibilidade de mutação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2147, 18 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12876. Acesso em: 28 mar. 2024.

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