1 Introdução
Um dos maiores desafios do Estado Democrático de Direito é, indubitavelmente, a "libertação" do magistrado de concepções típicas dos paradigmas anteriores, sobretudo, do liberal. Isso porque não se pode negar que a atividade interpretativa clássica, isto é, aquela silogística, de mera subsunção do fato à norma, de busca da mens legis ou mens legislatoris é muito mais cômoda e limitativa da atuação do Judiciário do que o método interpretativo proposto no atual paradigma, em que se exige além da racionalidade das decisões, a legitimidade das mesmas.
O Estado Social, não obstante apresente maior complexidade interpretativa em relação ao Estado Liberal, também não avançou muito no sentido de permitir uma atuação do Judiciário efetivamente comprometida com a justiça e com a legitimidade das decisões, já que limitava-se a implementar os fins sociais almejados pelo Estado.
O atual paradigma, por sua vez, percebido no Brasil com o advento da Constituição Federal de 1988, passou a exigir um aprimoramento das tutelas jurisdicionais a fim de maximizar a aplicação dos direitos fundamentais, tão violados pelos períodos antidemocráticos anteriores.
O Estado Democrático de Direito, na verdade, muito mais do que imprimir a necessidade de uma constituição como vinculação jurídica do poder, trouxe para o epicentro a pessoa humana e sua dignidade. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana passa a conformar um núcleo mínimo donde emanam diretrizes para interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. Ora, se os direitos fundamentais constituem um mínimo para a manutenção da dignidade humana, qualquer interpretação ou aplicação restritiva desses direitos não se amolda às exigências desse paradigma constitucional, sendo, portanto, ilegítima.
2 O papel do magistrado nos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social
Segundo Habermas [01], toda interpretação jurídica envolve uma disputa de paradigmas [02]. Evidentemente que nem sempre essa disputa se dá de maneira explícita, exigindo considerável esforço do intérprete a fim de se desvelar as pré-compreensões que estão a condicionar o pronunciamento judicial.
Como é possível perceber, a idéia esboçada por Habermas, pressupõe, necessariamente, o reconhecimento de que a atividade interpretativa não consegue se desvincular do momento histórico em que é desenvolvida, sofrendo, portanto, toda sorte de influências de pré-concepções que, juntas, delineiam o contexto de determinada época. Daí, a importância de retomarmos alguns fatores que foram determinantes para o perfil do Judiciário no paradigma do Estado Liberal e do Estado Social.
O nascimento do Estado Liberal, como é cediço, só foi possível dada à falência do Antigo Regime, sustentado pela tríade: feudalismo, no campo social, absolutismo, no campo político e mercantilismo, no campo econômico. O advento da Revolução Francesa em 1789 é considerado o divisor de águas entre a Idade Média e a Modernidade, representando a ruptura definitiva com o Regime anterior, caracterizado pelo amálgama entre religião, moral, tradição e costumes.
Essa transição para a Modernidade, consagradora do paradigma liberal, permitiu que se vislumbrasse com nitidez as mudanças ocasionadas pela ruptura. Assim, o poder, antes centralizado nas mãos do soberano que o compartilhava com uma nobreza privilegiada mediante recíprocas concessões, passa, na concepção liberal, a pertencer à lei, esta sim fruto de uma deliberação legítima, já que decorrente da soberania popular.
Aliás, Sahid Maluf [03] ao elencar algumas máximas consagradas pelo liberalismo, destaca algumas que bem sintetizam a ideologia liberal, tais como: todo governo que não provém da vontade nacional é tirania; a nação é soberana e sua soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível; o Estado é uma organização artificial, precária, fruto de um pacto nacional voluntário, sendo seu destino servir ao homem; a lei é expressão da vontade geral; todos são iguais perante a lei.
Teorias, como a de Bodin, que procuravam justificar o poder fora da soberania popular e centrada tão somente no divino, não mais possuem espaço nesse novo cenário dominado pelo império da razão, que no plano jurídico, refletirá no império da lei.
Na verdade, a lei foi um instrumento eficaz utilizado pelo liberalismo [04] político para garantir a limitação do poder e das funções do Estado. A burguesia, detentora do poder econômico, passou a reivindicar para si também o poder político, retirando de campo a monarquia absoluta que representava um entrave para essa classe em ascensão.
Veja que a lei representava a garantia perfeita de segurança jurídica, colocando o governante no seu devido lugar, ou seja, sob do domínio de uma ordem jurídica vinculante, garantindo, de tal modo, que não se retrocedesse ao Antigo Regime. Essa idéia do poder vinculado a uma ordem jurídica, representada, sobretudo, por uma Constituição, irá consagrar entre nós a idéia de Estado de Direito [05].
Nessa conjuntura, a atuação do magistrado era bastante restrita, devendo limitar-se a aplicar a lei no sentido do que se acreditava ser a sua literalidade, função que lhe rendeu o título de mero boca da lei. Entendia-se que somente o Legislativo era representante direto da soberania popular e, em virtude disso, o juiz jamais poderia destoar do comando legal, já que isso equivaleria, em última análise, em desrespeito à vontade do titular supremo da soberania, qual seja: o povo.
Restava, pois, ao juiz a tarefa simplificadora de subsunção, isto é, garantir a aderência do fato ao comando legal, não lhe sendo autorizado qualquer interpretação que se afastasse da leitura realizada pela mens legislatoris. Deparando-se o magistrado com a alguma dúvida no momento de aplicação da norma, deveria consultar o intérprete autêntico: o legislador. Procurava-se, dessa maneira, assegurar a neutralidade do método, objetivo incansavelmente perseguido pelo positivismo jurídico e filosófico do séc. XIX.
Quanto aos direitos fundamentais no paradigma liberal, eles afiguram-se muito mais em sua perspectiva formal do que material, sendo oponíveis tão somente ao Estado, a quem cabia a tarefa de abster-se de imiscuir na vida privada do indivíduo, mormente, na propriedade. Assim, não obstante o Estado Liberal tenha sido palco para a conquista dos direitos fundamentais de primeira dimensão, a leitura meramente formal que se fazia de tais direitos não oferecia uma resposta satisfativa para as desigualdades materiais verificadas na prática.
Na realidade, um modelo jurídico marcado pelo abstencionismo estatal associado ao capitalismo em pleno desenvolvimento forneceu o ambiente perfeito para a maior exploração do homem pelo homem de que se tem notícia na história [06]. Evidentemente que este quadro irá refletir diretamente no plano de aplicação das normas.
O modelo liberal não oferecia instrumentos idôneos a que o juiz, quando acionado, pudesse minimizar as distorções verificadas, de modo que não lhe restava outra alternativa senão reproduzir este modelo em sua atuação, contribuindo, assim, para a manutenção do status quo, para a legitimação da dominação.
Destarte, foi num contexto de exacerbado crescimento dos centros urbanos e imensa exploração do proletariado, esta fomentada pela busca desenfreada pelo lucro propugnada pelo capitalismo, que grupos começaram a se organizar para reivindicação de melhores condições de vida e de trabalho. Começava aí a reivindicação pelos direitos de 2ª dimensão, quais sejam: os sociais.
A luta por esses direitos terá como marco mais expressivo, em escala mundial, a Constituição Mexicana [07] (1917) e a Constituição de Weimar (1919), que irão consagrar constitucionalmente o paradigma do Estado do Bem-Estar Social. Era o reconhecimento de que o Estado precisava abandonar sua posição abstencionista, devendo assumir uma postura positiva, interventiva e promocional, havendo direitos mínimos que deveriam ser assegurados, como saúde, educação, previdência, saneamento etc. Os períodos pós 1ª e 2° Guerra Mundial corroboraram essa necessidade [08].
No âmbito das relações contratuais, consagrou-se o fenômeno do dirigismo contratual, que deixava claro a necessidade da intervenção estatal nestas relações a fim de garantir equilíbrio às mesmas. A ingerência estatal se justificava face à exigência de se implementar uma igualdade material, pressupondo o reconhecimento das diferenças, o que denota um total giro de concepção em relação ao paradigma anterior.
Na visão de Fernado Facuri Scaff [09], essa transição de um Estado abstencionista para um Estado promocional,não foi casuística, antes se atribui, primordialmente, a dois fatores. Primeiramente, dado ao fato de que a burguesia se sentia ameaçada por aquelas tensões sociais da época, e, por isso, possibilitou maior flexibilização do modelo liberal. Além disso, porque ela própria, burguesia, se beneficiou desta intervenção, na medida em que a infra-estrutura básica necessária para o desenvolvimento das atividades de acumulação e expansão do capital foi patrocinada com verbas públicas, decorrentes da poupança e taxação generalizadas. Daí se dizer que os direitos sociais constituíram uma concessão da burguesia [10].
Também de extrema valia é a observação feita por Streck & Morais [11] com relação ao surgimento do Estado Social, apontando que a inserção da idéia de justiça social ao modelo liberal foi a principal responsável pelo giro de concepção acima mencionado. Neste sentido, concluem:
[...] um fator novo foi injetado na filosofia liberal. Era a justiça social, vista como a necessidade de apoiar os indivíduos de uma ou outra forma quando sua autoconfiança e iniciativa não podiam mais dar-lhes proteção, ou quando o mercado não mostrava a flexibilidade ou sensibilidade que era suposto demonstrar na satisfação de suas necessidades básicas.
Não obstante o empenho do modelo intervencionista em implementar essa justiça social, os direitos oriundos desse paradigma ainda " eram vistos muito mais como uma dádiva do que como verdadeiros direitos com exigibilidade judicial" [12].
Como bem coloca Noberto Bobbio [13] em sua obra "A Era dos Direitos", a história do constitucionalismo é uma história de promessas não cumpridas, de modo que mais uma vez, à semelhança do que ocorrera com o Estado Liberal, o modelo intervencionista não consegue cumprir o que prometera.
Assim é que a proposta de um Estado forte, capaz de promover "o resgate dos desvalidos, o asseguramento de condições materiais mínimas ao exercício consciente da cidadania, mediante a prestação de um sem número de serviços estatais, enfocados como direitos sociais, bem como a proteção legal e institucional daquele que se encontrar no lado materialmente mais frágil das várias relações" [14], foi mais uma promessa descumprida.
Quanto à atuação do magistrado no paradigma social, embora mais complexa se comparada ao modelo liberal, limitava-se a implementar os fins sociais perseguidos pelo Estado, de modo que não logrou êxito no que se refere a efetivação/maximização dos direitos fundamentais.
A concepção jurídica predominante neste paradigma foi o positivismo kelseniano [15], formulada a partir da compreensão do ordenamento jurídico como um conjunto fechado de regras, apresentando uma visão unidimensional do direito, sem qualquer abertura para a natureza normativa dos princípios, tal como concebemos com naturalidade hodiernamente.
Embora de grande valia para a concepção do Direito como ciência, a tentativa de Hans kelsen de inserir em uma moldura toda conduta possível de ser extraída de uma norma pelo juiz desconsiderou a complexidade da vida proporcionada pela crescente velocidade da vida social [16], o que torna inviável um esgotamento de comportamentos estabelecidos a priori pelo legislador.
Assim, nem sempre aquelas leituras hipoteticamente previsíveis encontradas no interior dos contornos da moldura fictícia, forneciam parâmetros satisfatórios para solução do caso sub judice, sendo o magistrado forçado a proferir decisões sem qualquer comprometimento com ditames de justiça.
Isto se dava pelo fato de que Kelsen não fornecia nenhum critério com base no qual pudesse ser apontada uma leitura como a correta dentre as várias possíveis, de modo que a autoridade julgadora teria discricionariedade para decidir dentre as várias possibilidades, tendo por limite tão somente o contorno da moldura.
Para Menelick de Carvalho Netto [17], o que kelsen não percebeu foi que um quadro de leituras possíveis jamais poderá ser traçado, até porque esse quadro é móvel na história. Ao entender que o juiz deve assumir uma postura voltada para as possibilidades existentes na moldura, kelsen desconsidera a relevância das peculiaridades e da irrepetibilidade do caso concreto, colocando o magistrado frente a situações em que tal modelo seria incapaz de conduzir a uma decisão, concomitantemente, justa, racional e legítima.
Em sua edição de 1960, Kelsen acabou por reconhecer a impossibilidade de qualquer controle efetivo do poder discricionário do juiz, o que acabou comprometendo os próprios objetivos da Teoria Pura, quedando-se num total decisionismo, já que reconhece a interpretação realizada pelos órgãos jurisdicionais como um ato de vontade. Admite, igualmente, a produção de uma norma fora da moldura como interpretação autêntica, desde que realizada por qualquer dos órgãos de forma vinculante [18]. Tal mudança de concepção verificada nesta edição foi responsável pelo o que ficou conhecido como "giro decisionista" na teoria kelseniana.
Amparado, assim, por uma teoria predominante que negava normatividade aos princípios, o Welfere State, embora imbuído de um forte desejo de implementar uma justiça social numa sociedade reconhecidamente desigual, chega a seu fim. O discurso, ao menos oficial, segundo Salo Carvalho [19], que denota a falência do modelo intervencionista sustenta-se em problemas de financiamento (custos) dos direitos sociais. De modo que gestores da crítica ao modelo político-econômico social, como Hayek e Friedman, afirmam que seria impossível ao Estado Providência arcar com compromissos assumidos.
De qualquer sorte, com a derrocada do modelo social surge, com a difícil missão de dar cabo às promessas e mais promessas feitas e não cumpridas pelos paradigmas anteriores, o Estado Democrático de Direito que, no Brasil, se consagra após um longo período ditatorial, na Carta Magna de 1988.
3 O desafio de compatibilizar a atuação do magistrado às exigências do Estado Democrático de Direito
O positivismo jurídico, como visto, alcança seu apogeu na vigência do Welfere State. Tal sucesso pode ser atribuído a representantes como Austin, kelsen e Hart. Não obstante as especificidades que diferem cada um deles, todos negam o caráter normativo dos princípios e expressam como objetivo da ciência jurídica "criar um perfeito corpo unitário de regras que pudessem abranger todas as situações." [20]
No plano de aplicação das normas, tal desiderato determinava que o juiz deveria cercar-se de objetividade, mantendo-se distante das partes, [21] cabendo-lhe apenas averiguar se uma norma era formalmente válida, isto é, se observava o procedimento adequado para sua produção, o que era previsto por uma norma hierarquicamente superior. Sendo válida, restava realizar a subsunção do fato à norma, sem maiores indagações quanto ao conteúdo normativo. Nesse contexto, a discussão acerca da legitimidade das decisões judiciais restou bastante prejudicada.
No paradigma do Estado Democrático de Direito, passa a ser foco de discussões doutrinárias a questão da legitimidade das decisões judiciais. De modo que não basta que uma decisão judicial seja tão somente racional, requisito já exigido pelo positivismo clássico, mas urge, igualmente, que atenda a ditames democráticos tal qual no âmbito de criação.
Mister, assim, que as decisões emanadas do Poder Judiciário estejam comprometidas com a justiça tal qual estão com a segurança jurídica, o que só é possível "numa perspectiva democrática, que considere a óptica de todos os afetados pela decisão". [22]
Na visão de Habermas, a "teoria do discurso" será a resposta dada à indagação de como é possível aferir a legitimidade de uma decisão judicial, pois somente ela permite que cada ator participe da construção do discurso em busca do consenso. Isso é possível na medida em que o argumento de cada afetado é levado em consideração, ainda que para fins de refutação [23].
Tal postura sugerida pelo filósofo alemão permite que cada um dos envolvidos no processo possa aceitar a decisão proferida ao final como legítima, mesmo que lhe seja desfavorável, pois a participação na construção do discurso mediante um contraditório efetivo ao longo do processo faz com que todos se sintam co-autores do provimento emanado.
Alexandre de Castro Coura [24], ao discorrer sobre a importância da legitimidade e aceitabilidade das decisões judiciais, destaca que se todo provimento jurisdicional carecesse do uso da coerção estatal para que fosse cumprido, o aparato judicial certamente ruiria em sua totalidade, vez que seria inviável que o Estado colocasse um vigia atrás de cada cidadão. Daí a imprescindibilidade da legitimidade das decisões judiciais a fim de que cada afetado possa voluntariamente cumprir o comando judicial que lhe for dirigido.
Corroborando essa idéia, Roberto BasiloneLeite, [25], ao discorrer sobre o pensamento de Habermas, dispõe:
A validade da ordem jurídica está na legitimidade que a norma deve ter para além de sua facticidade, e essa legitimidade repousa no consenso racional obtido por intermédio do debate público. Quando fala em consenso racional obtido por meio do agir comunicativo, Habermas pressupõe cidadãos que agem livre e espontaneamente, isto é, pressupõe sujeitos que, sendo simultaneamente atores e destinatários das decisões públicas, vinculam-se à norma por eles mesmos formuladas por razões alheias ao medo da sanção estatal.
Possível extrair da referência acima o giro paradigmático na compreensão esboçada. O Estado Democrático de Direito passa, portanto, a exigir que o âmbito de aplicação das normas se submeta ao princípio democrático, promovendo, por conseguinte, uma maior aproximação do juiz às partes envolvidas, a fim de que possa atentar para os mínimos detalhes que permeiam a demanda sub judice. Em resumo: o direito somente se legitima pela via democrática [26].
Ao revés do que se verificava nos paradigmas anteriores, o julgador jamais poderá se colocar de costas para o caso concreto e focar-se unicamente nas disposições normativas abstratas. Pelo contrário, somente ante a uma análise detida do caso concreto é que será possível extrair uma decisão que atenda, concomitantemente, racionalidade, legitimidade e justiça.
Nesse sentido, foi de grande valia os ensinamentos de Ronald Dworkin ao propor uma ruptura com aquela atuação do magistrado percebida no positivismo, sobretudo, de Hart [27]. Para Dworkin, não interpretamos somente textos, mas, também, fatos concretos. Assim, torna-se perceptível na égide do Estado Democrático de Direito um elemento novo, identificado por Menelick Netto como [28]:
[...] um incremento correspondente de exigências quanto à postura do juiz não somente em face de dos textos jurídicos dos quais este hauriria a norma, mas inclusive diante do caso concreto, dos elementos fáticos que são igualmente interpretados e que, na realidade, integram necessariamente o processo de densificação normativa ou de aplicação do Direito[...]
Ora, se cada fato concreto constitui um evento único e irrepetível por natureza, caberá ao juiz desvelar no processo a única resposta correta para aquele caso, de modo que todo e qualquer caso deve ser tratado pelo julgador como um hard case [29].
Para Dworkin, o dispêndio de energia do juiz em busca da única resposta correta para o caso específico seria tão grande, que resolveu criar um juiz fictício que possuiria todos os atributos exigidos por sua condição. Assim, o juiz Hércules apresenta-se como aquele julgador que reúne em si, na correta medida: paciência, sabedoria, sagacidade e capacidade.
Indubitavelmente é árdua a tarefa de julgar. Oxalá que todos os julgadores pudessem ser considerados verdadeiros Hércules. Mas, infelizmente, isso não ocorre. Na práxis judiciária o que se percebe, até em maioria, são atuações típicas de paradigmas anteriores, mormente, do liberal, em que a preocupação é única e exclusivamente com aplicação do que consideram ser o sentido literal da lei, a mens legis, ou, até mesmo, a mens legislatoris, aplicada ritualisticamente pelo julgador.
De maneira brilhante Dworkin já criticava a versão mais ortodoxa da hermenêutica jurídica fundada na intenção legislativa, a qual denominou de "teoria da intenção do locutor". Esta teoria implica em revelar os motivos ou a intenção do legislador quando da confecção das leis. A legislação é entendida como "um ato de comunicação que deve ser entendido através do modelo simples de locutor e audiência, de modo que a pergunta mais importante na interpretação legislativa é o que um locutor individual ou grupal "quis dizer" em algum ato canônico de enunciação [30]".
A objeção do mencionado autor a tal teoria é que nela as soluções sempre deverão convergir para um momento específico da história, aquele em que o sentido da lei se fixa definitivamente. São palavras de Dworkin: [31]
O método Hércules [...] rejeita a hipótese de um momento canônico no qual a lei nasce e tem todo – e o único- significado que sempre terá. Hércules interpreta não só o texto da lei, mas também sua vida, o processo que se inicia antes que ela se transforme em lei e que se estenda para muito além desse momento. Quer utilizar o melhor possível esse desenvolvimento contínuo, e por isso sua interpretação muda à medida que a história vai se transformando. Não identifica certas pessoas como criadores exclusivos de uma lei...
Na mesma linha, até mesmo o mestre italiano Francesco Ferrara [32], um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional, dispõe:
[...] o comando legal tem um valor autônomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a conseqüências inesperadas e imprevistas para os legisladores. Como diz Thöl, pela sua aplicação a lei desprende-se do legislador e contrapõe-se a ale como um produto novo, e por isso a lei pode ser mais previdente do que o legislador.
A propagação de pensamentos como esses contribuiu em muito para que aos poucos os aplicadores da norma fossem tomando consciência da importância de sua função na atual conjuntura, não mais como mero boca da lei, mas como instrumento de transformação do status quo, como autênticos guardiões dos direitos e garantias fundamentais. Aquela hermenêutica tradicional que nega a dimensão criadora do intérprete precisa ser definitivamente sepultada.
Infelizmente, alguns doutrinadores entendem que as técnicas de interpretação, como a gramatical, a lógico-sistemática, a axiológica ou teleológica, entre outras, estão a indicar procedimentos apropriados à atividade jurisdicional de forma vinculativa. A maior parte dessas técnicas interpretativas identificadas na doutrina remonta a Savigny, com exceção da teleológica, e ele nunca viu nestas técnicas uma maneira de se chegar a um resultado previsível e objetivo do significado da norma [33]. Limitou-se apenas a indicar os elementos constitutivos de uma norma passíveis de serem considerados numa interpretação, isto é, os elementos que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se ao comando do problema, ou seja, a dimensão prática e concreta do caso. [34]
Como se percebe, muitos não compreendem que não existe nenhuma técnica, por si só, capaz de garantir que o juiz julgara bem [35]. O desafio que se apresenta para o Judiciário na égide do presente paradigma constitucional é justamente o de tomar decisões que retrabalhem construtivamente os princípios e as regras constitutivos do Direito vigente para que satisfaçam, simultaneamente, a exigência de consolidar a crença tanto na legalidade, compreendida como segurança jurídica, como também na certeza do Direito, entendida como o sentimento de justiça realizada, decorrente do ajustamento da decisão proferida às peculiaridades do caso concreto [36].
Nesse intento, afigura-se indispensável a sensibilidade do magistrado para as particularidades que envolvem a demanda, pois a idéia de realização de justiça perpassa, necessariamente, pela análise detida do núcleo essencial dos direitos fundamentais vislumbrados no caso sub judice. Uma análise meramente silogística é incapaz de fornecer subsídios para a maximização dos direitos e garantias fundamentais que permeiam determinado pleito, e, assim, manter incólume a o macroprincípio da dignidade da pessoa humana.
A imparcialidade, tão exigida do magistrado pelo positivismo jurídico clássico enquanto sinônimo de neutralidade, agora apresenta um novo viés, traduzindo-se na:
[...] capacidade de o juiz levar em conta a reconstrução fática de todos os afetados pelo provimento e, desse modo, fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto pluralidade de normas que concorrem entre si para reger situações, se faça presente, buscando então qual a norma que mais se adequa à situação; qual norma que, em face das peculiaridades específicas daquele caso visto como hard case, promove justiça para as partes, sem deixar resíduos de injustiças decorrentes da cegueira à situação de aplicação [37].
Giorgio Del Vecchio [38] denuncia que o que se tem observado, na verdade, é que o respeito formal à lei é, em diversos casos, pura ficção, vez que se verifica que o juiz busca na sua própria consciência e nos elementos de sua vida social a motivação de sua decisão, recorrendo à lei tão somente para atender a requisitos formais de aplicação da norma.
Importante dizer que o juiz não está autorizado a se valer de argumentos alienígenas ao Ordenamento Jurídico para sustentar suas decisões. Resta indubitável que num Estado de Direito, "a lei, mesmo larga e livremente interpretada, representa sempre um limite, e um limite necessário, ao arbítrio do juiz." [39]
A pretexto de se enquadrar no tão festejado ativismo judicial, não pode o magistrado se enveredar em "subjetivismos disfarçados de interpretação constitucional [40]" ou legal. Por isso há sempre que se exigir do juiz no desempenho da função de efetivador de direitos fundamentais, uma argumentação racional consistente e consentânea com os ditames do Estado Democrático de Direito.
Sem dúvida que a perspectiva democrática invocada como pressuposto de legitimidade das decisões judiciais já representa significativo controle da atividade judicial a evitar arbítrios. Nessa cadência, a "teoria do discurso" de Habermas, por sustentar-se numa razão comunicativa, corrobora o que estamos a dizer, já que nela, não só os argumentos das partes, manifestados mediante pretensões de validade, são postos à refutação, mas também, os argumentos do julgador. Todos envolvidos constituem-se atores e participam da construção do discurso através do debate [41].
A cientista política alemã, Ingeborg Maus [42], manifesta sua preocupação quanto ao fato de o Poder Judiciário a fim de dar concretude e efetividade a certos direitos, sobretudo, os fundamentais, quedar como verdadeiro superego de uma sociedade órfã, atuando na qualidade de administrador da moral pública. Para ela, a instância competente para debates de ponto de vistas morais não é o Judiciário. Assim, põe em relevo o perigo verificado "quando a jurisprudência trata seus próprios pontos de vista morais como regras jurídicas", pois se assim for, "qualquer fato imaginável pode ser identificado como juridicamente relevante e transformado em matéria judicial." [43]
A autora, analisando a questão alemã durante o regime nacional-socialista, observa que a maioria dos juízes "sentiram-se afrontados não só socialmente mas funcionalmente, reagindo com irritação à exigência de atuarem como meros serviçais da norma" [44].
Mas que após a Segunda Guerra Mundial e a queda do regime nazista, vislumbrou-se total mudança na atuação dos juízes alemães, vindo a ser taxada, inclusive, de extrema. Eles procuravam, a qualquer preço, "reerguer um Estado de direito, identificado como uma Justiça livre de todas as formas de controle e vinculação. Esta postura transparece no ditado de Klaus Adomek "a lei vincula seus destinatários não seus intérpretes" [45].
Evidentemente não é essa a postura radical do Poder Judiciário que estamos a defender. A Justiça não é nem deve ser o filtro de valores e de concepções morais identificados numa dada comunidade. A instância competente para tanto seria o Legislativo, onde o procedimento é o mais democrático possível e a lei é concebida como fruto da vontade geral, manifestada pelos representantes eleitos de um povo soberano.
A concepção de um Poder Judiciário como superego da sociedade, como vislumbrado por Ingeborg Maus na Alemanha, contribui para a hipertrofia da função por ele desenvolvida frente às demais funções do Executivo e Legislativo, desencadeando uma disputa acirrada entre os Poderes da República.
Embora a autora supracitada direcione crítica específica ao Tribunal Constitucional Alemão, o qual após a derrocada do regime nazista passou a atuar com projeções axiológicas que tornam sua atividade isenta de qualquer controle, no Brasil a crítica, mutatis mutandis, não é de toda descabida.
Nosso Tribunal Constitucional, por vezes, tem se manifestado, sobretudo, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, com fundamentos que indicam nitidamente a usurpação de funções dos demais Poderes, em especial do Legislativo. Recôndito em conceitos como proporcionalidade ou razoabilidade, o desvio de função tem sido de clareza solar, denunciando a retirada de campo dos argumentos jurídicos que legitimam a atuação do Judiciário e a tornam passível de controle. Nossos onze ministros que compõe o Supremo Tribunal Federal têm exercido autêntico poder de veto sobre as políticas da nação [46], o que representa verdadeiro golpe contra as bases democráticas de nossa República.
Ronald Dworkin [47], discorrendo sobre o equívoco cometido pelos juízes da Suprema Corte americana ao retomarem como argumentos para o controle de constitucionalidade a intenção dos constituintes, estratégia recorrente no Brasil, assim assevera:
Os juízes não podem decidir qual foi a intenção pertinente dos constituintes, ou qual processo político é realmente justo ou democrático, a menos que tomem decisões políticas substantivas iguais àquelas que os proponentes da intenção ou do processo consideram que os juízes devem tomar. A intenção e o processo são idéias nocivas porque encobrem essas decisões substantivas com a piedade processual e finge que elas não foram tomadas.
Imprescindível, portanto, que seja retomada a independência e a harmonia entre as funções tripartidas na Constituição Federal, não se permitindo o sobrepujamento de uma frente às demais, tudo isso tendo em vista a preservação do princípio da separação dos poderes. Embora lembremos com Américo Bedê Freire Jr [48], que independência e harmonia são conceitos que, no mundo fático, quase sempre entram em rota de colisão, necessário se faz que encontremos um equilíbrio salutar à concretização do processo democrático.
Como o mandado concedido aos políticos eleitos não constituem cheques em branco [49], toda vez que o produto da atividade legiferante destoar dos preceitos e princípios constitucionais, em especial daqueles que formam a película que está a proteger o núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, quais sejam, os direitos e garantias fundamentais, qualquer magistrado estará autorizado a afastá-lo da incidência do caso concreto a fim de não chancelar inconstitucionalidades e injustiças.
Será com os olhos fitos nas particularidades que envolvem o caso concreto que o magistrado, mediante a sensibilidade imanente à toga, velará para que todo aquele que recorrer ao Poder Judiciário a fim de exercer seu direito inserto no art. 5°, XXXV da Carta Magna, faça jus a uma decisão racional, legítima e justa, não cedendo às constantes tentações de desvirtuar-se desse intento e enveredar-se pelo caminho formalista típico dos paradigmas anteriores.