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Responsabilidade civil do anestesiologista

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17/05/2009 às 00:00
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3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Antigamente, até o início do século XX, os profissionais da área de saúde eram vistos pela sociedade como um "ser" superior, revestido de conhecimentos até mesmo confundidos como uma extensão dos poderes divinos.

Ao habilitar-se na medicina, o antigo acadêmico de medicina passava a ser tratado como uma majestade, cuja atividade jamais poderia ser questionada por alguém, uma vez que se a cura do paciente não foi alcançada, tal fato seria mera conseqüência da vontade de Deus.

Para bem explicar essa magnificência dos profissionais da área de saúde, oportuno transcrever os ensinamentos de Miguel Reale, que afirma:

Durante muitos séculos, a medicina esteve revestida de caráter religioso e mágico, atribuindo-se aos desígnios de Deus a saúde e a morte. Neste contexto, não se responsabilizava o médico que apenas participava de um ritual, talvez inútil, mas dependentemente da vontade Divina. O médico era visto como um profissional cujo título lhe garantia a onisciência, médico da família, amigo e conselheiro, figura de uma relação social que não admitia dúvida sobre a qualidade de seus serviços, e, menos ainda, a litigância sobre eles. O ato médico se resumia na relação entre uma confiança e uma consciência (Revista dos Tribunais, 1977, p. 47).

Todavia, os tempos mudaram e com as transformações ocorridas na sociedade através da Revolução Industrial, houve um significativo avanço nas técnicas diagnósticas e terapêuticas, bem como uma ampliação do conhecimento médio do cidadão, que passou a questionar a conduta médica (Revista dos Tribunais, op. cit., p. 87).

Além disso, o surgimento de grandes centros médicos, aliados à massificação do atendimento médico, transformou a relação até então havida entre médico e paciente. [25]

"Hoje, o médico, mesmo em pequenas comunidades, deve participar de clínica, hospital, entidade associativa pública ou privada, convênio; na maioria das vezes, em múltiplas atividades concomitantemente" (VENOSA, op. cit., p. 89). Tornou-se comum o paciente buscar atendimento médico pela lista de associados que mantém vínculo com o seu plano de saúde, e não pelos requisitos pessoais do facultativo.

Esse contraste entre o passado remoto e a modernidade decorre daquilo que Venosa chama de socialização e despersonalização da Medicina. Isso porque a "[...] necessidade premente de especialização faz com que a relação médico-paciente seja quase que exclusivamente profissional. O paciente, nessas premissas, raramente terá condições de ponderar e escolher o profissional e o tratamento adequado para o seu mal" (op. cit.., p. 89).

Conforme assinala o Ministro Aguiar Júnior, até

a própria denominação dos sujeitos da relação foi alterada, passando para usuário e prestador de serviços, tudo visto sob a ótica de uma sociedade de consumo, cada vez mais consciente de seus direitos, reais ou fictícios, e mais exigente quanto aos resultados (Revista dos Tribunais, 1995, p. 33).

Neste contexto, diante da evolução técnico-científica da Medicina, bem como da pressão social por resultados compatíveis com tal desenvolvimento, passou-se a exigir uma alta especialização dos profissionais da área da saúde, dentre elas a anestesiologia.

Sucede que, diversamente do que pretendem alguns, embora existam técnicas refinadas, aparelhos de alta tecnologia e eficientes fármacos, não se pode perder de vista que o campo de trabalho desses especialistas é o corpo humano, onde poucas são as situações previsíveis (fator álea).

Com efeito, não se pretende aqui ignorar as más práticas existentes na área da saúde (assim como em todas as profissões), mas sim colocar em pauta que os esculápios estão sujeitos a situações críticas, onde a precisão de segundos pode definir o seu futuro profissional, razão pela qual o assunto merece ser abordado com circunspecção pelos estudiosos do direito.

3.2 NATUREZA DA RESPONSABILIDADE MÉDICA

De acordo com José de Aguiar Dias (1997), não restam dúvidas quanto ao aspecto contratual da responsabilidade civil dos médicos, em que pese o Código Civil Brasileiro tê-la inserida no capítulo dos atos tos ilícitos (art. 186).

Dessa forma, pelo fato de ser contratual a responsabilidade médica, poder-se-ia presumir que, na hipótese de inadimplemento da obrigação, haveria a presunção de culpa do devedor (facultativo). Ocorre, todavia, ser de correntia ciência que incumbe ao cliente provar o inadimplemento da obrigação do médico.

O motivo dessa controvérsia é esclarecido por José de Aguiar Dias, ao reproduzir o pensamento de Savatier, demonstrando que,

[...] a prova, na responsabilidade civil contratual, recai sobre o devedor ou sobre o credor, conforme se trate de obrigação de meio ou de resultado. Assim aconteceu com o transporte, a cujo propósito, antigamente, se exigia, do viajante, a prova da culpa do transportador. Se hoje, ao contrário, se exige do último a prova de que não pode ser responsabilizado, não é porque se negasse, até então, o caráter contratual das relações entre eles, mas porque, antigamente, o contrato de transporte não se encarava como obrigação de resultado. Assim, a responsabilidade contratual pode ou não ser presumida, conforme se tenha o devedor comprometido a um resultado determinado ou a simplesmente conduzir-se de certa forma. É o que sucede na responsabilidade do médico, que não se compromete a curar, mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão [26] [Grifo nosso] (op. cit. , p. 254).

Não obstante, cumpre ressaltar que nem sempre a responsabilidade médica decorrerá de um negócio como, por exemplo, ocorre quando um médico, fora de serviço, atende alguém acidentado em via pública; nos casos de pronto-socorro de nosocômio, onde a urgência da situação imponha um atendimento imediato, etc. [27]

Entretanto, conforme propõe-se a demonstrar, na área médica pouco importa a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual.

É possível chegar a essa conclusão considerando os seguintes aspectos: i) a obrigação do médico é uma obrigação de meio, e assim sendo, seja qual for a origem do dever violado, contratual ou extracontratual, competirá ao seu cliente (credor) demonstrar eventual culpa do respectivo facultativo (devedor); e ii) a responsabilidade do profissional da área médica é subjetiva, sendo imprescindível a apuração de culpa.

Nesse sentido, conquanto insista a doutrina tradicional em debater o caráter contratual da responsabilidade médica, procurando afastá-la da responsabilidade aquiliana, inexiste diferença ontológica entre as duas modalidades de responsabilidade contratual ou extracontratual [28] (VENOSA, 2003).

Na mesma linha o entendimento do professor Aguiar Dias que embora sustente (inicialmente) que a responsabilidade do médico seja de natureza contratual, termina por concluir que "[...] as duas ações, contratual e extracontratual, conduzem ao mesmo resultado" (DIAS, op. cit., p. 253).

Em última análise, segundo Roberto Godoy, é possível sintetizar essa discussão em poucas palavras: responsabilidade médica é contratual, mas tratada como aquiliana. (Revista dos Tribunais, 2000, p. 95).

De outro vértice, quanto à natureza do contrato médico, há muita divergência entre os doutrinadores para conceituá-la.

Informa o desembargador Sérgio Cavalieri Filho que os Códigos da Suíça e da Alemanha consideram o contrato médico como mera locação de serviços (op.cit., 1999).

O desembargador paranaense Miguel Kfouri, por sua vez, noticia que, "[...] no Direito Romano, o médico era considerado mandatário do enfermo [...], passando após a criticar essa linha, pois, "[...] o mandato, em sua essência, direciona-se à realização de negócios [...]" (1998, p. 59).

Logo em seguida, o mesmo autor por último citado, menciona que os Espanhóis, inicialmente, intitularam o contrato médico como "contrato inominado", mas posteriormente passaram a ter outro entendimento, ante a grande semelhança daquele com o contrato de locação de serviços, "[...] pois a atividade profissional, não submetida à legislação trabalhista, consiste em prestar ao seu contratante um serviço certo, mediante pagamento – daí repelir a configuração, in casu, de um contrato inominado" (op. cit, p. 59).

Por conseguinte, José de Aguiar Dias denomina a avença celebrada entre médico e paciente de contrato sui generis [29](específico), pois "[...] a soma excepcional de poderes do médico corresponde à característica limitação das faculdades do cliente" o que por si só inocorre na locação de serviços (op. cit., p. 254).

No entanto, independentemente da denominação dada à natureza jurídica do contrato, o que interessa saber é qual modalidade de obrigação gerada pela avença entre médico e paciente, se de meio ou resultado.

Tal distinção, conforme poderá ser observado no tópico abaixo, revela-se de extrema importância à responsabilidade civil médica, pois decidirá, dentre outros aspectos, a quem competirá o ônus probatório.

3.2.1 Da obrigação de meio e resultado

Para o deslinde da responsabilidade civil do médico, mister é a distinção entre obrigação de meio e de resultado, [30] haja vista ser esse o divisor de águas no tocante ao ônus probatório.

Nessa linha, é uníssono o entendimento no sentido de que, em regra, assume o facultativo uma obrigação de meio, ou seja, não se compromete o mesmo com o resultado, com a cura do paciente, mas sim, em tratar o paciente com cautela e diligência. A obrigação por ele assumida é a própria atividade em si, e não o resultado contratado.

Até porque "[...] a ciência médica é, por definição, uma ciência incompleta, que a cada dia busca e encontra novas fronteiras mas que defronta-se com enfermidades novas ou incuráveis" (STOCO, op.cit, p. 288).

Por essa razão, incumbe ao credor (paciente) o ônus da prova da inexecução obrigacional por parte do devedor (médico), face à conduta culposa do mesmo (negligência, imprudência ou imperícia).

Essas são, aliás, as regras consagradas no art. 951, do Código Civil e no § 4º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, tendo este último inserido a responsabilidade do médico no campo subjetivo.

De outro lado, fugindo à regra geral, certa doutrina sustenta existir, em certas especialidades médicas, uma obrigação de resultado, como por exemplo, em exames laboratoriais, radiológicos, transfusões de sangue e na cirurgia estética. [31]

No que toca à cirurgia plástica, sustenta a maioria da doutrina que neste caso o facultativo contrai uma obrigação de resultado perante o paciente, sendo que tal característica, conforme assinala Gerson Luiz Carlos Branco,

[...] se deve ao fato de que a motivação moral para sua intervenção para a sua realização, embora seja socialmente aceita, não tenha a mesma relevância da intervenção para o salvamento da vítima ou para eliminação da dor. A questão é extremamente delicada na medida em que na generalidade das vezes a cirurgia estética tem como objeto pessoa sã, sem nenhuma enfermidade, não podendo a intervenção cirúrgica alterar este quadro [32] (Revista de Direito Civil e Processual Civil, 2000, p. 131).

De outro lado, contudo, outra corrente doutrinária entende que a obrigação do cirurgião plástico não difere daquela assumida pelos demais cirurgiões, qual seja, uma obrigação de meio, [33] tendo em vista situações imprevisíveis e alheias ao controle humano, igualmente presentes nessa especialidade.

Permeando essa discussão doutrinária, oscila o Superior Tribunal de Justiça, ora adotando a primeira corrente (obrigação de resultado), [34] ora optando pela segunda (obrigação de meio). [35]

Não obstante, seja qual for a modalidade de obrigação (de resultado ou de meio), devem paciente e médico obedecer ao princípio da boa-fé consagrado pelo Código de Defesa do Consumidor, e ratificado pelo atual Código Civil, buscando assim perfectibilizar a relação contratual pactuada e, por conseguinte, alcançar o objetivo inicialmente planejado por ambos os contratantes.

3.2.2 Conteúdo da obrigação do médico

Compete ao médico uma gama de deveres ao regular adimplemento da obrigação assumida perante o paciente. Nesse contexto, consistirá a prestação do profissional da área médica não só de conhecimentos técnicos adquiridos, como também de deveres de humanidade inerentes à arte médica.

Essa idéia reflete o espírito incorporado pelo Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º 1.246, de 08.01.1988), bem assim o princípio da boa-fé inserido no Código de Defesa do Consumidor e ratificado pelo atual Código Civil.

Destarte, ao decompor as prestações constantes do contrato médico, o autor Gustavo Tepedino as enquadra em três categorias centrais, a saber:

a) o dever de fornecer ampla informação quanto ao diagnóstico e ao prognóstico; b) o emprego de todas as técnicas disponíveis para a recuperação do paciente, aprovadas pela comunidade científica e legalmente permitidas; c) a tutela do melhor interesse do enfermo em favor de sua dignidade e integridade física e psíquica [36] (2003, p. 295).

O dever de informação, inserto no art. 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor [37], consubstancia-se em dizer ao paciente em linguagem clara e de fácil compreensão quais são os riscos dos tratamentos e seus respectivos custos, se é necessário internamento, qual a melhor técnica a ser adotada para enfrentar a moléstia do paciente; quais são as conseqüências de eventual procedimento cirúrgico.

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Corroborando tal dever de esclarecimento, Aguiar Dias afirma que,

[...] a ausência de pormenores técnicos não impede mostre sumariamente os riscos do tratamento aconselhado; a necessidade de salvaguardar o moral não deve ser superestimada em relação ao direito de saber para onde o conduzem (DIAS, 1997, p. 257).

Importante, porém, salientar que existem situações especiais em que deverá o facultativo ter discernimento ético em ocultar certas informações do paciente, quando este não tem condições psicológicas para tomar ciência da verdade. [38] Nesses casos, a comunicação será feita aos seus familiares ou responsáveis. É o que diz o art 59 do Código de Ética Médica:

[...] é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal.

Como decorrência do dever de informação, aparece a necessidade de obter-se o consentimento válido do paciente. Para tanto, o médico deverá expor, de forma clara e objetiva, os riscos e perigos possíveis. [39]

Segundo os escólios de José Aguiar Dias, será obrigatório o consentimento do paciente quando,

a) nas operações cirúrgicas; b) na anestesia; c) na inoculação de vírus ou sérum; d) no tratamento ou na investigação por meio de eletricidade ou radiologia; e) de modo geral, em tudo quanto possa oferecer perigo real mais ou menos certo [Grifo nosso] (op. cit, p. 267).

Com efeito, determina o Código de Ética Médica em seu capítulo "Relação com Pacientes e Familiares", mais precisamente no art. 56, ser vedado ao médico "desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas de diagnóstico ou terapêutica, salvo em caso de iminente perigo de vida." [40]

Dessa forma, quando for o caso de cirurgia de urgência, ou então venha a surgir algum fato novo no decorrer de intervenção cirúrgica, estará o médico autorizado a proceder em favor do melhor interesse do paciente, ou seja, dispensado estará de obter o seu consentimento.

De maneira exemplificativa, Aguiar Dias enumera algumas situações que dispensam o médico de obter o consentimento do paciente, tais como,

a) quando se trata de alienado ou de menor: o consentimento não pode, evidentemente, ser obtido deles, mas sim das pessoas sob cuja guarda estejam; com a mulher casada, já não ocorre o mesmo: não precisa, só por isso, do consentimento do marido para o tratamento ou operação a que tenha decidido submeter-se; b) quando a operação ou tratamento se imponha como decisão de emergência, em face do estado de necessidade ou de situação de perigo; se é possível obter o consentimento dos parentes da pessoa em iminente perigo de vida, e claro que o médico não agirá sem o haver obtido; c) quando em face do propósito suicida do paciente: o médico não poderia, decerto, ater-se à considerações da vontade de quem manifesta claramente não a possui, intentando um gesto que se considera revelador de perturbação mental" (op. cit., p. 259).

Vencida essa questão, mister é tecer algumas considerações em torno de outra obrigação implícita ao contrato médico: o dever de cuidar.

Deverá o médico, mormente em casos moléstias que exijam cuidados especiais, acompanhar com a maior diligência possível o tratamento desenvolvido, cercando-se de informações sobre as reações do paciente, enfim, do seu estado clínico. "Isso não significa que deva o médico ficar de plantão ao lado do leito de todos os seus clientes, mas trabalhar de forma que sempre possa, em tempo hábil, colher as informações necessárias para suas intervenções técnicas" (Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, 2000, p. 129).

Esse ponto afigura-se de extrema importância, posto que, na atualidade, enfrenta o profissional da medicina uma grande dificuldade em cumprir rigorosamente, ou até mesmo da maneira por ele mesmo pretendida, esse dever de assistência.

Isso porque está ocorrendo uma despersonalização do atendimento médico. Não existe mais aquele médico de família, de inteira confiança, até mesmo amigo particular de seus clientes. Não raro, os médicos não sabem ao menos o nome de seu assistido.

Tentando explicar essa transformação de relacionamento entre médico e paciente, pontua Silvio de Salvo Venosa as seguintes questões:

Atualmente, os problemas são reflexos de uma medicina de massa. Cuida-se da sociedade invadida por princípios econômicos. Nesse contexto, não há como pretender que os médicos fiquem fora dela. Com isso, porém, não se afirma que a medicina deixou de ser exercida como um sacerdócio por muitos profissionais. No entanto, com freqüência valores de sobrevivência falam mais alto. A situação do médico em nosso país, como reflexo global de nossos problemas, muito longe está do aceitável. A massa da população vê-se lançada a um sistema de medicina social absolutamente ineficiente (VENOSA, 2003, p. 94).

Ademais, não caracteriza abandono quando um médico se faz substituir por outro de mesma capacidade técnica, desde que haja a anuência de seu paciente (ou de seus familiares), ou então na hipótese de "ser possível o seu comparecimento pessoal" (TEPEDINO, op. cit., p. 296).

Faculta-se ao médico, inclusive, rejeitar os seus serviços ao doente que manda lhe chamar, mas não ao seu cliente. Contudo, o médico que, na via pública, testemunha um acidente de trânsito que causa vítimas em estado grave, poderá sofrer as conseqüências pela abstenção havida no âmbito civil e penal (DIAS, 1997).

Além disso, incumbe ao médico o dever de vigilância sobre o paciente quando houver a possibilidade de o paciente autoflagelar-se em virtude de alucinações ou depressões provocadas por medicamentos pesados, bem como nos casos de doença mental.

De outro vértice, embora a arte médica esteja em constante evolução técnica e científica, e mesmo considerando que o crescimento da apelidada "indústria da indenização por erro médico" possa vir a afetar a liberdade de atuar dos médicos, não há espaço para que o paciente seja transformado em cobaia pelo facultativo (abuso de poder) [41], uma vez que está sob os seus cuidados um direito fundamental indisponível, qual seja, o direito à vida (art. 5°, caput, da Constituição Federal).

Outrossim, subsiste o dever de sigilo do médico estabelecido pelo art. 102 do Código de Ética Médica, o qual preceitua ser vedado ao médico "revelar o fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão [...]"

Por fim, destaca-se que deverá o esculápio desempenhar a sua atividade profissional sempre com vistas ao princípio da boa-fé, tanto na fase pré-contratual, quanto na pós-contratual (art. 422, do Código Civil), pois assim certamente razão não haverá para exercer o seu mister com a bravura que lhe é peculiar.

3.3 CULPA MÉDICA E SUA PROVA

O elemento subjetivo do ato médico, como já afirmado, mostra-se indispensável para caracterizar a sua responsabilidade civil.

O direito brasileiro adotou a teoria da responsabilidade subjetiva para os médicos, regulamentando-a nos artigos 186 e 951 do atual Código Civil [42], assim como no art. 14, § 4.º do Código de Defesa do Consumidor.

E, obedecendo à máxima de "não causar dano a outrem", cuidou de considerar como causa de ressarcimento até mesmo a culpa levíssima, pois "em se tratando da vida humana, não há lugar para culpas ‘pequenas’" (KFOURI NETO, op.cit., p. 61).

Sucede que em muitos casos, por ser o magistrado leigo no assunto, encontra grande dificuldade em adentrar no cerne da questão.

Por isso, enuncia o processualista Humberto Theodoro Júnior que, na árdua tarefa de evidenciar a culpa médica, têm os Tribunais Nacionais se utilizado de

"[...] princípios antigos universalmente aceitos como o da previsibilidade o da razoabilidade. O julgador segue sua experiência da vida, e da observação do que comumente acontece pode chegar a juízos de valor sobre a conduta profissional, quando se mostre muito difícil uma conclusão puramente técnica sobre a causa da lesão" (Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, 2000, p. 157-158)

No entanto, ensina a doutrina mais moderna ser possível ao magistrado percorrer os sinuosos caminhos para a apuração do erro médico, levando-se em conta o princípio do livre convencimento, pois "o Juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos" (art. 436 do Código de Processo Civil).

Dessa forma, considerar-se-ão os documentos carreados aos autos pelas partes, as provas testemunhais, o prontuário médico da vítima, [43] as obras médicas de referência etc.

Assim, com o intuito de dar um simples aparato aos insipientes no assunto, oportuno tecer inicialmente alguns esclarecimentos específicos acerca das modalidades de culpa (negligência, imprudência e imperícia) na área da saúde.

Quanto à negligência, reiterando a sua conceituação, é uma conduta negativa revelada por uma inércia psíquica, ou melhor, pelo facultativo não fazer aquilo que razoavelmente se espera por parte de um profissional diligente.

A título de exemplo de condutas negligentes na área médica, cita Miguel Kfouri Neto os seguintes casos:

[...] o abandono ao doente, a omissão de tratamento, a negligência de um médico pela pontualidade do colega (um médico confiando na pontualidade do colega, deixa o plantão, mas o substituto não chega e o doente, pela falta de profissional, vem a sofrer graves danos. É a negligência vicariante); mais: a prática ilegal por estudantes de medicina, acarretando a responsabilidade, por negligência, do responsável pelo estágio; a prática ilegal de pessoal técnico (enfermeiro que realiza punção no doente, advindo complicações e danos) – responde o médico; a letra do médico (receita indecifrável – em geral vê-se que os médicos têm letra ruim – levando o farmacêutico a fornecer remédio diverso do prescrito) também conduz à responsabilidade por negligência: deve-se prescrever à máquina ou de forma legível e sempre com cópia; esquecimento, em cirurgia, de corpo estranho no abdômen do paciente (pinça ou gaze, p. ex.), causando dano (op. cit., p. 77).

No tocante à imprudência, do latim imprudentia, é falta de cuidados, de precaução no agir, de cautela, ou, enfim, pela própria denominação, o contrário de prudência.

Para visualizar, na prática, vale mencionar alguns exemplos de imprudência médica:

Clínico geral que, sem ter estagiado em serviço de clínica cirúrgica, propõe-se a realizar, por sua conta e risco, uma apendicectomia; médico que avalia um diagnóstico a distância e receita produto farmacológico por telefone; médico cirurgião que acarreta resultado danoso ao paciente por utilizar outro tipo de técnica operatória que a consagrada nos meios científicos, médico que prescreve ou ministra culposamente substância entorpecente ou que determine a dependência física ou psíquica em dose evidentemente maior que a necessária ou em desacordo com determinação legal ou regulamentada pelo art. 15 da Lei de Tóxicos (CROCE, D.C.J, 2002, p. 26).

Ainda nesse tema, o paranaense Kfouri, ao ressaltar a dificuldade em distinguir a imprudência da imperícia, faz interessante colocação quando disserta:

o médico, ao se definir por determinada intervenção, agiu com imperícia, pois não conhecia a fundo o risco que ela envolvia, ou porque tendo perfeita consciência do risco, resolveu avançar sua ação além dos limites da licitude"(op. cit, p. 82-83).

Para, então, em seguida concluir: "a imprudência sempre deriva da imperícia, pois o médico, mesmo consciente de não possuir suficiente preparação, nem capacidade profissional necessária, não detém sua ação" [44] (KFOURI NETO, op. cit, p. 83).

Por seu turno, no que concerne à imperícia, afirma-se que é a falta de conhecimentos técnicos da profissão, "[...] a incapacidade para exercer determinado ofício, por falta de habilidade ou ausência dos conhecimentos necessários, rudimentares, exigidos numa profissão" (Ib. id., p. 83).

De forma isolada, entende o professor Genival Veloso de França que,

o médico habilitado, profissional e legalmente, não pode ser considerado imperito, em nenhuma circunstância, por mais palpável que seja essa situação, pois se um homem tem em mãos um diploma que lhe confere o grau de doutor, e uma habilitação legal, será extremamente difícil a alguém provar que essa pessoa seja imperita (1994, p. 137).

No entanto, a repelir tal posicionamento, citam os autores Delton Croce e Delton Croce Júnior, os seguintes casos de imperícia:

O obstetra, durante uma cesariana segmentar transversa, no ato de praticar a manobra de Fucks (abertura bidigitada arciforme de concavidade superior do útero) lesa a bexiga; o facultativo, ao examinar uma paciente, supondo-a despucelada e grávida, provoca, em toque bimanual, ruptura do hímen, não o escusando apresentar ela um quadro clínico de amenorréia, náuseas, modificações das mamas, galactorréria, melasma, aumento de piriforme ou globoso do ventre, porque estes constituem apenas sinais de probabilidade de gravidez, inclusive encontradiços nos casos de pseudociese ou prenhez espúria, ou de aparentes sintomas de abortamento; provocar queimaduras em radioterapia [45] (op.cit., p. 25).

Passo seguinte, após essa noção mínima em torno das modalidades de culpa, é possível aprofundar a análise do tema no sentido de diferenciar a imperícia da "[...] inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício.", qualificadora do homicídio culposo (art. 121, § 4.º do Código Penal).

Num exame superficial, poder-se-ia imaginar que o legislador agrava pena do homicídio culposo quando se trata de imperícia,

[...] mas isso não corresponde à realidade, porque na imperícia o causador do evento desconhece a regra técnica [...] enquanto no homicídio culposo por inobservância de regra técnica de profissão, o autor [...] a conhece, mas deixa de cumpri-la" (PIERANGELI, op. cit., p. 80-81).

Outrossim, por causar a espécie tamanho interesse dos profissionais da área médica – posto que atinge tanto o direito de liberdade, quanto a eventual responsabilidade civil -, oportuno traçar uma linha demarcatória entre o erro profissional (ou escusável) e a imperícia.

Jean Penneau, ao fazer tal distinção colaciona em sua obra interessante trecho de um julgado da Corte de Cassação da França, cujo entendimento é que

[...] a culpa supõe uma falta de diligência ou de prudência em relação ao que era esperável de um bom profissional escolhido como padrão; o erro é a falha do homem normal, conseqüência inelutável da falibilidade humana (apud, Revista dos Tribunais, 1995, p. 37).

Para o desembargador Sérgio Cavalieri Filho, "há erro profissional quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta; há imperícia quando a técnica é correta [!], mas a conduta médica é incorreta" (op. cit., p. 273).

Entende-se, no entanto, que para tal distinção, é aconselhável recorrer à esfera penal, a fim de extrair convincentes conclusões no tocante à culpa médica.

Dessarte, paralelamente ao erro profissional (ou erro escusável), há no âmbito penal o que a doutrina denomina de erro inevitável (invencível). Neste, se o agente atuou com erro apesar dos cuidados objetivos, o erro é invencível e exclui o dolo e a culpa. Entretanto, se poderia tê-lo evitado com as cautelas exigíveis nas condições em que se apresentava o agente, ocorrerá erro culposo, no qual insere-se a imperícia (MIRABETE, 2005).

Nessa linha, embora não seja motivo para comemorações, encontra-se a ciência em estágio muito avançado, mas não para vencer todos os desafios que lhe surgem com o passar dos anos.

Nessas circunstâncias, nada mais plausível que eximir o facultativo de eventual responsabilidade penal e civil no caso de erro profissional, porquanto ainda está sujeito a certas imperfeições da ciência médica.

Ainda nesse passo, prossegue Mirabete,

"[...] como muitas atividades humanas podem provocar perigo para os bens jurídicos, sendo inerentes a elas um risco que não pode ser suprimido inteiramente [...], somente se poderá verificar o âmbito do cuidado exigido no caso concreto se foram considerados os aspectos particulares relacionados com a ocorrência (op. cit., p. 146).

Assim, para apurar "o cuidado exigido no caso concreto" na medicina, faz-se necessário indagar, conforme observação de Kfouri, "[...] se, naquelas circunstâncias o profissional não desviou crassamente da conduta prevista para aquele caso [...]" (op. cit., p. 75).

Sucede que, para apreciar a conduta prevista para aquele caso, entende parte dos civilistas não ser lícito ao julgador discutir qualquer questão técnica do evento danoso, uma vez que não possui conhecimentos na área biológica.

Dessa maneira, estaria restrito o campo de atuação do magistrado somente aos casos de erro grosseiro do médico. [46]

Nessa linha, visando auxiliar a solução de questões na área médica, sustenta Carvalho Santos que

[...] os Tribunais não podem decidir sobre a oportunidade e a eficácia de modos de tratamento, medicinais, ou outros, e não podem imiscuir-se em questões científicas, cuja solução deve ser deixada à consciência e à capacidade do médico assistente [47] (op. cit., p. 265).

Não obstante, como dito anteriormente, quer parecer não ser essa solução a mais acertada para resolver lides envolvendo profissionais da área de saúde.

O que pretende Carvalho Santos é que esteja o julgador restrito aos laudos técnicos elaborados pelos peritos.

Ocorre que, embora o comando do art. 82 do Código de Ética Médica determine ao médico, quando nomeado perito, atuar com absoluta isenção, na prática, defronta-se com um certo corporativismo da classe, apelidado por alguns de "Máfia de Branco".

Dessa forma, não raro verifica-se uma parcialidade nas conclusões obtidas pelos peritos, visando isentar seu colega de algum erro cometido, pois como médico, está o perito igualmente submetido a sofrer eventual demanda judicial.

De qualquer modo, visando afastar qualquer irregularidade do laudo pericial, assinala o médico e jurista Roberto Godoy que,

os laudos periciais não devem ser baseados, exclusivamente, na opinião do perito; ao contrário, deve o magistrado exigir que esta venha consubstanciada em literatura científica pertinente. [...] Ora, se o laudo estiver baseado em publicação técnica, não é difícil, tanto para o magistrado quanto para o advogado do autor ter acesso a ela diretamente ou solicitar parecer de médico conhecido, ainda que informalmente, a fim de firmar convicção de veracidade [48] (Revista dos Tribunais, 2000, p. 101).

Ainda assim, vale a pena insistir que não está o magistrado vinculado em nenhum momento ao laudo pericial (princípio da livre convicção), podendo socorrer-se aos outros meio de prova em direito admitidos (documental, testemunhal, etc.).

3.4 DANO MÉDICO

Preambularmente, deve-se ressaltar que o dano médico provém de um ato lícito por ele praticado, pois em caso o facultativo utilize a sua profissão para a prática de conduta ilícita (aborto, atestado falso, etc.), haverá a sua punição como qualquer cidadão (CROCE, D.C.J, 2002).

Feita a ressalva, vale reforçar o conceito: dano é uma lesão provocada contra a vítima, proveniente de ação humana ou fenômeno natural.

Trata-se de elemento indispensável para configurar a responsabilidade civil, pois não basta apenas conduta culposa do agente, mas que esta tenha causado dano a outrem.

Os danos causados por profissionais da área da saúde atingem, geralmente, a incolumidade física do paciente (prejuízo corporal), tendo em vista que o corpo humano é o seu campo de atuação.

Além do dano físico, o dano provocado pelo médico também pode ser material (perdas materiais: lucros cessantes, gastos com hospital, compra de remédios, pensão aos parentes da vítima etc.), e moral, (abalo psíquico, dor, saudades, vergonha, distúrbios sexuais, lesão estética etc.).

Nas palavras de Kfouri, "[...] o dano estético, como dano moral, representa uma ofensa a um direito da personalidade" (op. cit., p. 94).

E, para quantificar a indenização no juízo cível desses casos,

"[...] importará a extensão dos danos, a localização, [...] possibilidade de completa (ou parcial) de remoção, as características pessoais da vítima (sexo, idade, profissão, estado civil etc.), as restrições de ordem pessoal decorrentes da irreparabilidade da lesão (alijar-se do convívio social, dado ao aspecto repugnante do ferimento) – tudo deverá ser levado em linha de conta, no momento de se definir a indenização (KFOURI NETO, op. cit., p. 94).

Destaca ainda o magistrado paranaense Kfouri que no Brasil somente é parte legítima a pleitear indenização a vítima do dano, enquanto na França, há possibilidade de um terceiro requerer a indenização por dano estético, por exemplo, "[...] se a estabilidade conjugal [...] resultar abalada pela deformidade da mulher, o marido poderia pleitear a reparação: vendo a mulher, foi ele acometido de trauma [...]" (op. cit., p. 95).

Com base nas argumentações articuladas por Sérgio Cavalieri Filho, no entanto, admite o ordenamento jurídico brasileiro o chamado "dano reflexo ou dano em ricochete", sendo a hipótese acima mencionada passível de indenização.

Para tanto, basta saber se a repercussão do dano, isto é, o trauma de seu marido foi realmente decorrente da deformidade da indigitada mulher.

Ainda no âmbito do dano médico, oportuno conceituar a chamada teoria da perda de uma chance (perte d´une chance), um tipo específico de responsabilidade concebido pela jurisprudência francesa.

Para o jurista Roberto Senise Lisboa,

há a possibilidade de se proceder à reparação pela chance perdida, isto é, daquilo que a vítima poderia, dentro de um critério de probabilidade, vir a obter para si, caso não tivesse sido influenciada pelo agente a se conduzir de forma diversa (op. cit., p. 479).

Como exemplo da aludida teoria, pode-se referir a hipótese do médico não diagnosticar, quando do exame clínico das mamas, a existência de câncer de mama, vindo a paciente descobrir tardiamente o mal através de exame feito por outro profissional de saúde.

Nesse caso, quando descoberto logo na fase inicial, há um surpreendente índice de cura da moléstia, motivo pelo qual haveria grandes probabilidades de a paciente ter-se livrado da doença, se não houvesse a imperícia médica.

Deve-se ressaltar, entretanto, que a teoria da perda de uma chance incide sobre a chance de recuperação, mas não sobre o risco de sobreviver do paciente (Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, 2000, p. 140).

No Brasil, ainda há um certo receio na utilização da teoria da perda de uma chance, mas por outro lado vê-se que a jurisprudência mais recente está a cada dia ampliando o seu espectro de aplicação, como demonstram os seguintes julgados:

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. PRONTO SOCORRO MUNICIPAL. MORTE DE PACIENTE. ATENDIMENTO INADEQUADO. CULPA COMPROVADA. PERDA DE UMA CHANCE. DANOS MORAIS DEVIDOS. O MUNICIPIO E RESPONSAVEL PELO RESSARCIMENTO DOS DANOS MORAIS PERPETRADOS POR MEDICO QUE, NA QUALIDADE DE AGENTE PUBLICO DE PRONTO SOCORRO MUNICIPAL, NAO FORNECE ATENDIMENTO ADEQUADO A PACIENTE QUE APRESENTA FORTES DORES NO PEITO, E LOGO DEPOIS VEM A FALECER POR INFARTO AGUDO DO MIOCARDIO. PARA O CASO, REVELA-SE MANIFESTA A CULPA DO MEDICO QUE, AGINDO NEGLIGENTE E IMPRUDENTEMENTE, CONTRIBUI PARA A PERDA DA CHANCE DE SOBREVIVENCIA DA PACIENTE. RECURSO NAO PROVIDO. SENTENCA MANTIDA. [Grifos nossos] (TJPR, 2004a)

EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. MÉDICO PEDIATRA. MORTE DE RECÉM NASCIDO POR MÁ ROTAÇÃO ASSOCIADA A VOLVO. AUSÊNCIA DE PRÉVIO, POSSÍVEL, NECESSÁRIO E SINGELO EXAME DIAGNÓSTICO. NEGLIGÊNCIA. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. Age com culpa, por descura da prática médica e nessa a realização de exame singelo e prévio que poderia dar à criança, ante o diagnóstico, chance de vida, o médico que não considera paciente o recém-nascido prematuro, entregando o atendimento médico à enfermagem e a estudante do sexto ano de medicina, em plantão, malgrado a criança apresentasse no parto sugestiva quantidade de sangue na orofaginge, vindo sua situação a complicar-se não antes de manifestar, ainda no hospital, manchas roxas pelo corpo e constantes dores abdominais, falecendo por má rotação associada a volvo. Responde o hospital objetiva e solidariamente pelos danos ocasionados à autora no âmbito do hospital por médico de seu corpo clínico, que, no caso dos autos, cumula, ainda, a função de Diretor Clínico da entidade. Readequação da verba reparatória aos padrões adotados pela Corte. APELO DOS RÉUS PROVIDO EM PARTE. RECURSO ADESIVO NÃO PROVIDO. (TJRS, 2005b)

Com efeito, como pode ser observado nas ementas transcritas acima, estão os julgadores sensibilizando-se à teoria da perda de uma chance, repelindo assim a má conduta dos profissionais da área médica.

3.5 RELAÇÃO DE CAUSALIDADE

Além da prova da conduta culposa, existe outro elemento a ser demonstrado pela vítima no âmbito da responsabilidade médica: a relação (ou nexo) de causalidade.

Não basta que a vítima tenha sofrido um dano, não basta tenha o médico tenha agido culposamente, se não se comprovar a relação de causa e efeito entre o dano sofrido e a ação ou omissão do agente.

Assim, incumbida está a vítima em evidenciar que o resultado lesivo sofrido não teria se concretizado, se porventura o facultativo tivesse agido diligentemente.

Por conseguinte, preleciona Kfouri, "o laço causal deve ser demonstrado às claras, atando as duas pontas que conduzem à responsabilidade" (op. cit., p. 98).

Ademais, a precariedade na colheita de provas prejudica a quem detém o ônus da prova. Destarte, como afirma Humberto Theodoro Júnior, "prova insuficiente, lacunosa ou inconveniente é o mesmo que ausência de prova" (Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, 2000, p. 159).

Por seu turno, questão de difícil solução surge quando múltiplas causas influenciam na produção do resultado lesivo. Nesses casos, segundo Kfouri, deverão os juízes "dirimir as questões ligadas à causalidade guiando-se por critérios que, em cada caso, leve à decisão mais justa, ponderando todas as circunstâncias, em vez de aplicar teorias abstratas" (op. cit., p. 99).

Colhe-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, interessante julgado acerca do nexo causal, cuja ementa é a seguinte:

RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MATERIAL E MORAL. CIRURGIA DE COLUNA. PERDA DE FORÇA NO PÉ ESQUERDO DA AUTORA. Tratando-se de obrigação de meio, a responsabilidade do médico é de ordem subjetiva, nos termos do art. 14, § 4º, do CDC. Assim, comprovado que o procedimento adotado pelo profissional foi adequado, não há falar em ato ilícito. Ausência do nexo de causalidade entre a perda de força no pé esquerdo da autora e a intervenção cirúrgica praticada pelo médico. Apelo desprovido [Grifo nosso] (TJRS, 2005c).

Cuida-se o julgado acima compilado, em sucintos termos, de apelação cível contra decisão monocrática que julgou improcedente ação de indenização intentada por paciente visando a reparação por danos morais e materiais decorrentes de suposto erro médico.

Alegou a vítima (apelante), que após intervenção cirúrgica para retirada de hérnia de disco realizada de forma culposa pelo médico (apelado), acabou por sofrer a perda de força no pé esquerdo, também denominada de "pé de eqüino".

No entanto, extrai-se do voto lançado pelo Desembargador Leo Lima, que não houve relação direta entre o ato praticado pelo médico e a perda de força no pé da vítima, eis que "[...] a perda de força no pé foi caracterizada pela hérnia de disco que, comprimindo o nervo, debilitou-o, ocasionando a lesão diagnosticada como "pé eqüino", agravada pela demora na realização da cirurgia [...]." Saliente-se, apenas, que esta "demora na realização da cirurgia" decorreu da inércia da vítima em procurar um médico.

Calha destacar, ainda, que a força maior e a culpa exclusiva da vítima rompem o nexo causal, eximindo o agente de reparar o dano. Diverso é o caso da culpa concorrente, em que permanece o dever de reparar, porém em quantitativo menor.

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Sobre o autor
Diogo de Araujo Lima

Advogado, graduado pela Universidade Tuiuti do Paraná e Pós-Graduado em Direito Tributário pelo IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Diogo Araujo. Responsabilidade civil do anestesiologista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2146, 17 mai. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12912. Acesso em: 19 abr. 2024.

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