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Análise didática do trabalho escravo no Brasil

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06/06/2009 às 00:00
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3. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E O TRABALHO ESCRAVO

A Constituição Federal de 1988 repudia a prática do trabalho escravo ou forçado, seja por disposições expressas, seja pelo conjunto de princípios que carrega. A título de exemplo, o artigo 1° determina como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. Já o artigo 5° caput é categórico ao afirma que constitui garantia fundamental a liberdade do ser humano. O mesmo artigo, em seu inciso III preconiza que ninguém será submetido à tortura nem tratamento desumano ou degradante.

Todo o texto constitucional tem como ideologia principal a igualdade dos seres humanos, sua dignidade, seu crescimento intelectual e evolução pessoal, tudo isso não podendo ser alcançado sem liberdade.

A liberdade é garantia insculpida no preâmbulo e no artigo 5°, sendo considerada direito individual e fundamental do ser humano.

Apesar dos direitos sociais (e dentro deles, os direitos relativos ao trabalho) serem considerados, via de regra, direitos de segunda geração, ou seja, aqueles que possibilitam a intervenção do Estado desde que para promoção do bem comum da sociedade, acreditamos que o direito tutelado no combate ao trabalho escravo é eminentemente de primeira geração, ou seja, aquele que determina uma conduta negativa sobre a esfera de direitos do ser humano. 9 Isso não quer dizer, entretanto, que afasta-se a proteção aos direitos como trabalhadores. Ao contrário: como veremos em capítulo próprio, uma das conseqüências no combate estatal ao trabalho escravo é assegurar o pagamento de todas as verbas de natureza trabalhista oriundas da relação existente. O que se quer dizer, porém, é que o combate à prática do crime de supressão da liberdade tem como finalidade imediata a restauração do cidadão ao status quo ante, devolvendo-lhe um direito constitucionalmente garantido, primário e essencial para sua própria existência.

Prosseguindo, ainda no princípio da liberdade, constatamos, analisando o artigo 5°, inciso XLVII, alínea c, que nem mesmo o Estado tem poder de forçar alguém a trabalhar, mesmo que em atividade lícita. O artigo em tela visa proibir o trabalho forçado como meio de pena.

O instituto da detração penal (contido na Lei de Execuções Penais e que determina que a cada 03 dias trabalhados subtrai-se 01 dia na pena do condenado), então, somente é possível com o consentimento do preso. Poderia-se interpretar este instituto como poder que o Estado detém em submeter o preso ao trabalho forçado de forma amparada pela lei. Tal assertiva, entretanto, não é verdadeira. Apesar da lei ser silente sobre se o preso pode ou não fazer opção pelo trabalho como forma de redução da pena, analisando a questão sobre o tratamento que a nossa Constituição dá sobre a matéria, é forçoso concluir que, além de ineficaz, o ato de forçar o preso ao trabalho atenta contra a sua liberdade de consciência.

De acordo com entendimento pacificado na OIT, esposado na Convenção 29, não se inclui como trabalhos forçados a imposição de serviço militar ou obrigações cívicas.

Interessante notar que a mesma convenção possibilita ao Estado forçar o trabalho em decorrência de condenação judicial, desde que executada por agente público competente.

Nossa Carta, de forma mais justa, porém, proibiu a invasão nessa esfera da pessoa, possibilitando a comutação da pena pelo trabalho somente se realizado de forma voluntária.

Ainda analisando a Carta Magna, verificamos a existência do princípio da dignidade da pessoa humana, estreitamente relacionada ao princípio da liberdade. Ele veda o tratamento desumano ou degradante à pessoa, garantindo, independente de sua situação jurídica, o mínimo para preservação da higidez mental e física do ser humano.

Quanto aos remédios constitucionais existentes para combate da conduta de constrangimento da liberdade, caberia, em tese, impetração de habeas corpus, dirigido ao juiz de primeira instância, contra o ato ilegal de cerceamento de liberdade do trabalhador.

Na prática, entretanto, o modo mais eficaz e mais rápido de pôr fim à conduta é através de denúncia ao Ministério do Trabalho e às autoridades policiais.

Ainda no artigo 5°, vislumbramos a existência de defesa da honra do trabalhador, ao assegurar o dever de indenizar quando ocorrer o dano moral. Referido instituto, entretanto, será analisando mais profundamente em capítulo próprio.

Nossos Tribunais trabalhistas são pacíficos no sentido de reconhecer a existência do dano moral ao trabalhador que é submetido a trabalho em condições análogas à de escravo. Tal ação é de competência dos tribunais trabalhistas por força do artigo 114 da Constituição Federal. Como veremos mais à frente, geralmente a ação é proposta pelo Ministério Público do Trabalho, que pleiteia a indenização por danos morais coletivos, divididos entre as vítimas da mesma conduta do fazendeiro.

A justificativa para gerar o dever de indenizar baseia-se, então, na violação dos direitos básicos do ser humano, sujeitando-o a posição degradante, humilhante e sem justificativa legal para amparar tal comportamento.

Por fim, o artigo 7° garante aos trabalhadores as condições mínimas para exercício de sua profissão com dignidade, respeito e possibilidade para crescimento intelectual e pessoal.

Dentre as garantias, encontram-se o salário mínimo, descanso semanal remunerado e todos direitos trabalhistas básicos estampados no indigitado artigo e repetidos na Consolidação das Leis do Trabalho

Como se vê, todo conjunto constitucional é harmônico no sentido de garantir à pessoa, seja nacional ou estrangeiro, primeiramente a liberdade física, possibilitando o direito de ir e vir dentro do território nacional em tempos de paz e, também, liberdade do espírito, do psicológico, proibindo quaisquer condutas que atentem contra a liberdade, a honra e a personalidade do ser humano.

A Lei Máxima do país é uníssona no sentido de garantir a liberdade como direito fundamental e como cláusula pétrea, consoante artigo 60 parágrafo 4°, inciso IV, somente permitindo sua diminuição ou restrição quando previsto em lei e somente pela autoridade judiciária competente. É o que consiste o princípio da reserva legal bem como o monopólio Judiciário do controle jurisdicional. O Estado detém monopólio, então, através do Poder Judiciário, para restringir a liberdade de qualquer pessoa, seja nacional ou estrangeiro, sendo defeso a qualquer outra pessoa que não detém essa competência de exercer tal mister.

A seguir, analisaremos a legislação ordinária no combate ao trabalho forçado.

3.2. LEGISLAÇÃO INFRA-CONSTITUCIONAL SOBRE TRABALHO ESCRAVO

3.2.1. LEGISLAÇÃO INTERNA

Acreditamos que o diploma que deve ser primeiramente estudado, devido à sua importância, é o Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei n° 2848/40.

O crime de redução à condição análoga à de escravo está situado no capítulo que trata dos crimes contra a liberdade individual, na seção dos crimes contra liberdade pessoal.

O artigo 149 tipifica a conduta de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, conforme abaixo transcrito:

"Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I - contra criança ou adolescente;

II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem."

Para caracterização do crime, faz-se necessário submeter alguém à sujeição absoluta, reduzindo-o à condição análoga, ou seja, semelhante à de escravo. Como já dito, não é necessária redução à condição como ocorria em moldes antigos. A exigência da lei é a submissão completa, é a impossibilidade real do sujeito passivo de ser ver livre da conduta ilegal do agente por suas próprias forças.

O magistrado, entretanto, ao julgar o réu pelo crime ora em estudo, deve atentar-se para situações duvidosas. A jurisprudência assevera que quando o sujeito passivo coloca-se em situação de sujeição total por livre e espontânea vontade, sem iniciativa por parte do réu, não estará tipificado o crime. É necessário, então, existência do dolo (não existe modalidade culposa desse crime), intenção de obter vantagem do sujeito passivo e sujeição da vítima à condição análoga à de escravo, suprimindo sua liberdade e sujeitando-o totalmente à vontade do executor do crime.

O crime é classificado como permanente, ou seja, aquele em que o momento consumativo se protrai no tempo por vontade do sujeito ativo. Tendo tal fato em vista, é possível prisão em flagrante enquanto perdurar a conduta.

A ação penal, devido à gravidade do fato, é pública e incondicionada, ou seja, pode ser formalizada pelo Ministério Público mesmo sem anuência da vítima.

Uma crítica, entretanto, se faz necessária. A pena estabelecida nesses casos vai de dois a oito anos, o que é, a nosso ver, insuficiente.

Pela análise do crime de extorsão mediante seqüestro que, apesar de não ser propriamente crime contra liberdade individual, atinge a esfera pessoal da pessoa, privando-a injustamente do seu direito de ir e vir, como no de redução à condição análoga à de escravo, tem pena que pode atingir 30 anos.

Ora, duas condutas que visam tanto obter vantagem econômica ilícita como privam, ao mesmo tempo a liberdade do sujeito passivo, deveriam ter penas proporcionais e semelhantes.

No crime de extorsão mediante seqüestro o bem tutelado, apesar de não ser o único, é o patrimônio financeiro da pessoa. Já no de redução à condição análoga à de escravo o bem tutelado é a própria liberdade da pessoa. Há discrepância entre as penas arbitradas pelo legislador.

Ambas condutas são repugnantes, devendo ser combatidas com fervor e severidade pelas autoridades públicas. Entretanto, pesando os bens jurídicos tutelados, a liberdade pessoal não pode ser considerada menos importante que o patrimônio material de uma pessoa, merecendo, então, abrigo mais efetivo pela lei.

Acreditamos que a solução mais justa e capaz de inibir a conduta de reduzir alguém à condição análoga à de escravo é majorar a pena, de tal modo que crie verdadeiro medo da punição prevista em lei.

Se, por exemplo, um fazendeiro vir a ser condenado, mas, devido à dosimetria da pena, aplicação de agravantes, atenuantes e demais elementos, for condenado a cumprir 02 anos, qual seria a coerção aplicada? Qual seria o caráter pedagógico?

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Deveria, então, existir pena mais severa, capaz de inibir a conduta de possíveis agentes, da mesma forma que deveria haver aplicação cumulativa de multa no total da vantagem obtida pelo trabalho realizado de forma ilegal, a ser apurado pela contadoria judicial.

Com essa determinação legal de perdimento dos bens, que seria certa se houvesse condenação, a incidência desse crime, que visa prioritariamente a vantagem econômica, e não simplesmente a satisfação pessoal de ver outro ser humano em situação degradante, cairia drasticamente.

Cabe registrar outra crítica: O crime de redução à condição análoga à de escravo deveria ser inscrito no rol dos crimes hediondos, previsto na Lei 8.072/90. A gravidade da conduta é patente, da mesma forma que o bem tutelado é da essência do ser humano.

Seguindo a análise, no parágrafo 1°, inciso I a lei fala sobre forma de manter o trabalhador no local de trabalho, cerceando seu direito de locomoção. Já o inciso II fala sobre manter vigilância ostensiva OU manter documentação retida. Observe-se que a segunda parte pune igualmente reter os documentou ou manter vigilância ostensiva, afastando a necessidade de concomitância das duas condutas.

Tais práticas são comumente usadas pelos fazendeiros com o fito de prender o trabalhador de forma primariamente psicológica do lugar. Não existem amarras físicas, não existem correntes, mas tais condutas minam as esperanças do trabalhador, que se vê obrigado a curvar-se perante o poderio econômico e físico do empregador. Por esse motivo houve equiparação dessas condutas com a descrita no caput, a fim de ampliar o rol de ações praticadas que devem ser enquadradas como o crime ora em estudo.

Uma recente alteração na lei, ocorrida em 2003, acrescentou o parágrafo 2°, que determina aumento de pena pela metade se o crime é praticado contra criança, ou adolescente, ou se praticado por motivo de cor, raça, etnia, religião ou origem. Louvável tal atitude. Outra alteração, entretanto, se faz necessária. Isso porque, com a entrada em vigor do Estatuto do Idoso, deveria ser acrescentado ao inciso primeiro que haveria aumento de pena também quando o crime fosse praticado contra idoso, definido na forma daquela lei. Acreditamos que tal acréscimo viria a tornar o conjunto legal mais harmônico com o advento do novo estatuto protetor da população idosa brasileira.

Ainda analisando a legislação brasileira, um ponto curioso surge: A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT nada dispõe sobre trabalho escravo de forma direta. O leitor poderia indagar por qual motivo há essa omissão no diploma protetivo brasileiro. Acreditamos que essa omissão se deve ao fato de que o legislador ordinário da época não quis criar eventual revogação do artigo originariamente colacionado no então recém criado Código Penal. Além disso, a competência para julgamento das matérias contidas na Consolidação são eminentemente reservadas à justiça do trabalho. Qualquer dispositivo penal contido naquele decreto-lei, então, poderia gerar sérias discussões sobre conflitos de competência para julgamento do crime de redução à condição análoga à de escravo. Com a suscitação dessas exceções, poderia, em último caso, ocorrer prescrição da pretensão punitiva, devido à demora no julgamento, o que tornaria o crime, na prática, impunível. A nosso ver, andou bem o legislador ao deixar ao diploma penal a tipificação de tal conduta.

Seguindo a análise da legislação infra-constitucional, temos a Medida provisória n° 74/2002. Essa Medida é de extrema importância no que tange à vida do trabalhador após ser resgatado da condição de escravo. Ela foi posteriormente convertida na Lei 10.608/02.

O diploma em estudo dispõe que é direito do trabalhador resgatado receber 03 parcelas do seguro desemprego, no valor de 01 salário mínimo cada. Além disso, deve ele ser encaminhado à recolocação no mercado de trabalhado, através do SINE – Sistema Nacional de Emprego.

A finalidade dessa Medida foi justamente não cometer o mesmo erro do passado, quando os escravos, diante da liberdade recém-adquirida, não possuíam meios para seu sustento, nem perspectiva de melhora, o que os levava a retornar ao local de cativeiro. O Estado, então, dá um suporte inicial, mesmo que curto, a fim de afastar de forma definitiva o trabalhador desse meio nocivo e que atenta aos princípios constitucionais.

Para percepção da parcelas, faz-se necessário que o trabalhador comprove que foi resgatado da situação de condição análoga à de escravo. Isso pode ser feito mediante entrega, pelo Auditor Fiscal do trabalho envolvido na operação de resgate, da Comunicação de Dispensa do Trabalhador Resgatado. Tal benefício pode ser requerido no prazo máximo de 90 dias após emitida indigitada Comunicação.

A lei que dispõe sobre a percepção desse benefício está em vigor e foi, inclusive, objeto de resolução do Ministério do Trabalho para especificação de quais critérios devem ser atendidos quando da concessão do benefício (resolução número 306/2002). Como se vê, essa criação legislativa veio em socorro ao obreiro, de forma a minimizar seu sofrimento nas condições laborais impostas a ele.

A seguir, veremos, de forma sucinta, a legislação da OIT sobre o trabalho escravo.

3.2.2. CONVENÇÕES DA OIT SOBRE TRABALHO FORÇADO

A primeira delas é a Convenção número 29, de 10 de Junho de 1930. Ela estabelece o que deve ser considerado trabalho forçado, bem como quais condutas, adotadas pelo Estado signatário, não são passíveis de condenação internacional, tal como a prestação de serviço militar obrigatório. A finalidade da Convenção é extirpar do ordenamento jurídico toda forma de trabalho forçado que não está contido no rol taxativo de exceções.

A segunda Convenção é a de número 105, de Junho de 1957. Ela na verdade é uma reafirmação da Convenção número 29, com a diferença que, os signatários dela ficam proibidos de usar o trabalho escravo como forma de coerção ou de educação política; castigo por expressão de opiniões ou medida disciplinar por participação em greves ou como meio de discriminação.

As duas Convenções acima são reafirmadas pela Declaração sobre os princípios e direitos fundamentais no trabalho da OIT, de Junho de 1998.

O intuito de todos os diplomas foi uniformizar o entendimento do que vem a ser considerado trabalho escravo nas diferentes nações, de forma a uniformizar também seu combate, cooperação internacional na penalização e conseqüente extinção das relações laborais. A união da comunidade internacional contra essa conduta vem a aumentar a pressão pelo combate interno e reforço na legislação, também interna, de modo a tornar efetivas as recomendações da Organização.

A seguir, analisaremos o entendimento jurisprudencial sobre o tema em estudo.

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Sobre o autor
Felipe Fiedler Bremer

Advogado militante na área consumerista. Pós-graduado em Direito do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BREMER, Felipe Fiedler. Análise didática do trabalho escravo no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2166, 6 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12944. Acesso em: 26 abr. 2024.

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