De todos os órgãos do corpo humano, a placenta é o único que surge na mulher durante a gestação e é eliminado pelo corpo após o nascimento do bebê. Presente na maior parte dos mamíferos, a placenta é responsável por fornecer oxigênio ao bebê, ajudar a movimentar a massa sanguínea, mantendo a circulação entre o feto e sua mãe, depura e regula os líquidos no corpo do nascituro, dentre outras funções.
A placenta sempre teve papel importante em diversas culturas, dispondo, geralmente, de rituais para o seu tratamento após o parto. Em alguns países do ocidente, a placenta é incinerada. Alguns povos enterram a placenta, pelos mais diversos motivos, como por exemplo os Maoris da Nova Zelândia, que enterram a placenta de um recém-nascido no intuito de melhorar o relacionamento entre os seres humanos e a Mãe Natureza. Da mesma forma, os índios Navajo dos Estados Unidos enterram a placenta e o cordão umbilical em um lugar sagrado para eles, particularmente no caso do bebê morrer no parto. No Camboja e na Costa Rica, enterra-se a placenta acreditando que a prática protege e assegura a saúde do bebê e da sua mãe. Se a mãe morrer no parto, o povo Aimará da Bolívia enterra a placenta em um lugar secreto, para que o espírito da mãe não venha a reivindicar a vida de seu filho. O povo Ibo (ou Igbo) da Nigéria considera a placenta como o gêmeo morto do bebê e conduz um verdadeiro funeral para ela. Ainda em algumas culturas e religiões, a placenta é comida. A prática se chama placentofagia.
A placenta humana também tem aplicação medicinal e cosmética, com origem no mundo oriental, mas já espraiada no ocidente.
Muito embora as realidades acima se verifiquem, no Brasil a placenta é rotineiramente jogada no lixo, de acordo com a visão moderno-tecnológica do parto. Profissionais da área médica, bem como a maioria dos hospitais consideram a prática como padrão e, ao receber um pedido diferente, por muitas vezes impedem que as donas dos órgãos dêem qualquer outro destino à placenta que não seja o lixo.
As Recomendações da Organização Mundial de Saúde para o nascimento estabelecem que:
"AS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE DEVEM
(...)
8- Preservar o direito das mulheres parirem em instituições, de decidir sobre a sua roupa e o bebê, sobre a alimentação, o destino da placenta, e outras práticas culturalmente significantes."
Em setembro de 2001, durante o V Congresso Mundial de Medicina Perinatal, os congressistas elaboraram um manifesto chamado de DECLARAÇÃO DE BARCELONA SOBRE OS DIREITOS DA MÃE E DO RECÉM-NASCIDO, com vistas a "conseguir que no século XXI, o processo reprodutivo humano, em qualquer parte do mundo, fosse obtido, em condições de bem estar físico, mental e social, tanto para a mãe quanto para o filho". A declaração em seu item 12, praticamente reproduziu o constante das recomendações da OMS, mas é bom transcrever:
"12. As mulheres que dão à luz em determinada instituição tem direito a decidir sobre a vestimenta (própria e do recém-nascido) destino da placenta e outras práticas culturalmente importantes para cada pessoa"
Nota-se que a legislação pátria, bem como resoluções e pareceres do CFM, são silentes sobre o assunto "livre disposição da placenta". Desta forma, há que se trazer a lume o Art. 5º, inciso II da Constituição Federal, que traz, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
Assim sendo, não havendo disposição expressa da lei para que haja o descarte da placenta para o lixo hospitalar, não há que se obrigar a dona (grife-se bem a palavra "dona") do órgão a dispor sobre esta parte do seu corpo de tal maneira.
Ainda em sede constitucional, como já expusemos no início deste trabalho, é fato que algumas religiões têm a placenta como parte de sua doutrina, optando algumas pessoas por comê-la (como a Cientologia, por exemplo) ou então enterrá-la junto a uma árvore, por exemplo. Desta forma, mostra-se ilegal obrigar a mulher a jogar sua placenta no lixo hospitalar, já que também pode impedir o pleno direito da liberdade religiosa, protegido pelo inciso VI do já aludido Artigo 5º da Constituição Federal ("é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias").
Também O Código Civil brasileiro protege o direito de disposição da placenta por sua dona, conforme reza o Art. 13, que dispõe:
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Ora, a lei é clara em afirmar que, havendo diminuição permanente da integridade física ou contrariando-se os bons costumes, é proibida a disposição de partes do corpo. Através de simples análise, percebe-se que a livre disposição da placenta não importa em diminuição permanente da integridade física (pois é um órgão que é naturalmente eliminado após o parto) e nem é atentatória aos bons costumes (pois não é imoral uma mãe querer levar a sua própria placenta para casa) e desta forma, concluímos que compete à dona do órgão placentário dispor desta parte de seu corpo da maneira que lhe convier, a menos que haja exigência médica razoável que impeça o ato.
O Código de Ética Médica, em seu Art. 48, proíbe o médico de "Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar.", o que também pode acarretar na responsabilização do profissional da medicina que obrigar a paciente a destinar sua placenta ao lixo hospitalar.
Desta forma, não há dúvidas de que a placenta pertença à mulher e que a ela cabe a decisão de dispor desta da maneira que mais lhe aprouver. Talvez seja a falta de hábito em atender pessoas que queiram dar destino diferente do lixo que leve o médico ou o hospital a se surpreender e alegar que a placenta tenha que obrigatoriamente ficar no hospital para descarte. Porém, tal pretensão é totalmente carente de fundamento legal.
Apenas a título de informação, como já dissemos anteriormente, a placenta tem sido usada como matéria prima na indústria de cosméticos e de remédios. Porém, se a idéia é levar a placenta para casa no intuito de vendê-la, deve-se lembrar da Lei 9.434/97, que em seu Art. 15, prevê como crime a venda de tecidos, órgãos (como é o caso da placenta) ou partes do corpo humano, com a pena de reclusão de 3 a 8 anos e multa de 200 a 360 dias-multa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Schmid, Verena, "Venire al mondo e dare alla luce. Percorsi di vita attraverso la nascita". Milano, Urra, 2005, pp. 194-5. Tradução por Adriana Tanese Nogueira.
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Metge, Joan. "Working in/Playing with three languages: English, Te Reo Maori, and Maori Body Language."
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Falcao, Ronnie. "Medicinal Uses of the Placenta". http://www.gentlebirth.org/archives/eatplcnt.html. Acesso em 24/05/2009.
BRASIL, Constituição Federal
BRASIL, Código Civil
BRASIL, Código de Ética Médica