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Lei de imprensa: declaração de inconstitucionalidade e fatos intermediários

15/06/2009 às 00:00
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1. Introdução

Com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou inconstitucional a Lei de Imprensa, surge a questão que a mídia denominou "vácuo jurídico" e que tem recebido soluções diferentes dos juristas chamados a comentar a matéria, no tocante aos crimes contra a honra, praticados pelos meios de comunicação. Alguns deles dissertam que não há problema real, pois se voltaria a aplicar o Código Penal, outros admitem certa vacuidade sistêmica, enquanto os mais cautelosos aguardam a integral cognição do respectivo acórdão e a eventual interposição de embargos de declaração.

Sem dúvida, a prudência recomenda que um estudo mais aprofundado da matéria aguarde a publicação do acórdão e as possíveis complementações decorrentes da interposição de embargos declaratórios, mas algumas ponderações podem ser feitas desde logo, especificamente quanto aos fatos daquela natureza, ocorridos após a promulgação da Lei de Imprensa e antes da decisão que declarou a inconstitucionalidade da mesma, pois não parece conforme aos direitos e às garantias individuais a aplicação automática e integral do Código Penal às ocorrências verificadas nesse intervalo.


2. Vigência das leis aplicáveis

O Código Penal entrou em vigor em 1º de janeiro de 1942 (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, art. 361). Na sua parte especial, sob o título "Dos crimes contra a Pessoa", no capítulo "Dos crimes contra a honra" (arts. 138 a 145), disciplinou os delitos de calúnia, difamação e injúria, fixou as respectivas penas (máximas de 2 anos, 1 ano e de 6 meses de detenção, respectivamente; máxima de 3 anos de reclusão, para a injúria com preconceito), e os submeteu as regra gerais de prescrição e de seus prazos (art. 107, inc. IV e segs.). O lapso mais alto da prescrição em abstrato, previsto para a calúnia e para a difamação, é de 4 anos. A prescrição em abstrato da injúria é de 2 anos.

A Lei de Imprensa, "revogadas as disposições em contrário", entrou em vigor em 14 de março de 1967 (Decreto-Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, art. 77). Esse diploma legal, dispôs que aqueles "que, através dos meios de informação e divulgação, praticarem abusos no exercício da liberdade manifestação do pensamento e informação ficarão sujeitos às penas desta Lei e responderão pelos prejuízos que causarem" (art. 12) e também tipificou as infrações penais de calúnia, difamação e injúria. As respectivas sanções máximas são de 3 anos, 18 meses, e de 1 ano de detenção. Além disso, a norma ora comentada estabeleceu a prescrição da ação penal relativa aos sobreditos crimes, em 2 anos, contados a partir da "data da publicação ou transmissão incriminada, e a condenação, no dobro do prazo em que foi fixada" (art. 41).

Embora as sanções previstas para os crimes praticados com o emprego dos meios de comunicação sejam mais graves, o prazo de prescrição é bienal, em regra, inferior ao prazo prescricional codificado. Sabidamente, a doutrina majoritária afirma a natureza penal da prescrição e, mesmo aqueles que lhe atribuem um caráter processual, têm dificuldade de negar o seu matiz substantivo que, por sua vez, tende a atrair regras penais de proteção do indivíduo, como a vedação de analogia, de interpretação extensiva e de retroatividade prejudicial ao arguido.

É que as normas processuais penais que tratam da responsabilização penal e dos direitos e garantias fundamentais do acusado têm natureza material, diversa da natureza formal, atinente às normas processuais penais que disciplinam o procedimento criminal. [01] Aquela qualificação material implica o tratamento das questões respectivas, segundo as mesmas regras e princípios que regem o direito penal.

Os chamados crimes de imprensa são comuns, praticados por um meio próprio – comunicações –, e disciplinados em lei especial por questões particulares que não lhes atribuem a classificação de delitos "sui generis". [02] A natureza comum e o regramento especial, contudo, não afastam as duas considerações acima: a) a prescrição tem natureza penal; e, b) se tivesse natureza processual penal, essa natureza seria de norma processual penal material, o que implicaria um tratamento especial, vedando a retroatividade prejudicial ao acusado.

Examinada a vigência de ambos os diplomas legais e estabelecidos os princípios que regem a matéria, pode-se avançar na esfera principal dessas breves considerações: inaplicabilidade automática e integral do Código Penal e quanto ao prazo prescricional a ser considerado diante da declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa.


3. Inconstitucionalidade da Lei de Imprensa

Com a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, dever-se-á proceder à chamada modulação dos efeitos de mesma, [03] o que se fará segundo alguns condicionamentos específicos, dentre os quais ressaltam a aplicabilidade irrestrita da lei penal e da lei processual penal material mais favorável, [04] a disciplina da repristinação pela via legal [05] e a superação da opinião comum que veda ao Poder Judiciário a combinação de leis para aplicação em caso concreto. [06]

O mais importante, nessa matéria, é que se aplica a lei mais favorável ao arguido, pois "é, hoje, incorrecta a classificação da proibição da retroactividade como princípio geral da "aplicação da lei penal no tempo" e da retroactividade da lei mais favorável como excepção. Deverá antes, e com legitimidade, afirmar-se que o princípio é o da aplicação da lei penal favorável". [07] É aplicável, ainda, a lei intermédia mais favorável. [08] E, finalmente:

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"Utilizando as palavras de MESSIAS BENTO, "a declaração de inconstitucionalidade nunca poderá agravar o estatuto do réu, embora possa vir a favorecê-lo". Neste sentido, escreveu PAGLIARO: "seria melhor que o legislador constituinte declarasse aplicáveis [à declaração de inconstitucionalidade de norma penal] as disposições sobre a sucessão de leis penais". Por sua vez, GIUSINO, salienta a importância e a necessidade de coordenar o instituto da declaração de inconstitucionalidade com os princípios fundamentais sobre a sucessão de leis penais: o da irretroactividade da lei desfavorável e o do "favor rei". Assim, poder-se-ia, porventura, propor o aditamento de um número ao art. 282º, com uma redacção análoga à seguinte: Tratando-se de norma respeitante a matéria penal, os efeitos de declaração de inconstitucionalidade nunca podem desfavorecer o infractor. O momento da produção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade depende do não desfavorecimento do infractor".

[09]

Veja-se que, no sistema constitucional brasileiro, "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" e "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" (art. 5º, incs. XXXIX e XL, CF), e nos "dias correntes e diante da clareza da Constituição e do Código Penal, que tornam obrigatória a retroatividade da lei mais benéfica – e, por via de consequência inaplicável a lex gravior aos fatos praticados antes de sua vigência – não mais se questiona a possibilidade do juiz fazer a integração entre a lei velha e a lei nova. Não há mais clima propício para se resistir ao imperativo da fusão das normas legais que sejam mais benignas ao réu". [10]

Postas estas considerações, já se pode avançar para a parte conclusiva destes brevíssimos comentários.


4. Conclusão

A modulação dos efeitos dessa declaração de inconstitucionalidade deverá respeitar os direitos e garantias individuais, especialmente o regramento da aplicação da lei penal e processual penal material mais favorável ao arguido.

As sanções previstas para os mencionados crimes contra a honra, previstas no Código Penal, são mais favoráveis ao acusado e, portanto, admitida a combinação de leis, aplicar-se-ão aos fatos catalogados na Lei de Imprensa. Caso não acolhida essa fusão, com a declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, e em conformidade com a modulação a ser realizada, os fatos citados poderão ser tidos como impuníveis por falta de previsão legal.

Em relação aos fatos, veiculados pelos meios de comunicação, ocorridos no período compreendido entre a promulgação da Lei de Imprensa e a declaração de inconstitucionalidade da mesma, o prazo de prescrição é o bienal.

A declaração de inconstitucionalidade não implica a automática e integral aplicação das normas do Código Penal.


Bibliografia

ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª ed., Coimbra, Arménio Amado, 1987.

CARVALHO, Américo A. Taipa de. Sucessão de Leis Penais, 2ª ed., Coimbra, Coimbra, 1997

DOTTI, René Ariel. Combinação de Leis Sucessivas – A Superação de um Mito, Boletim do IBCCRIM, ano 15, nº 179, out/2007, p. 20.

FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica Jurídica, 8ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008.

NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1969, v. 2º.

__________. Direito Penal, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1968, v. 1º.

PENTEADO, Jaques de Camargo. A Natureza das Normas sobre as Provas Criminais, Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, v. 819, p. 397.

TUCCI, Rogério Lauria. Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo, José Bushatsky, 1975.


Notas

  1. Jaques de Camargo Penteado, A Natureza das Normas sobre as Provas Criminais, Revista dos Tribunais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, v. 819, p. 406.
  2. E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1969, v. 2º, p. 138.
  3. "A LADIn 27 permite que o STF adote, nas decisões no processo de controle abstrato (concentrado) das leis e atos normativos (ADIn), a eficácia ex tunc ou ex nunc do acórdão, fixando o dies a quo da vigência de sua decisão até mesmo para além do trânsito em julgado. No controle concreto da constitucionalidade (difuso), o STF vem aplicando a mesma técnica. Reconhece que a regra sobre a decisão que decreta a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo é a da eficácia declaratória, vale dizer, retroativa (ex tunc), mas, de modo excepcional, determina que esses efeitos possam ser iniciados em outro momento, transformando a eficácia que seria ex tunc em eficácia ex nunc, a partir do trânsito em julgado de sua decisão que, no processo de controle concreto (v.g., RE), reconhece a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo" (Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 485).
  4. "Só mesmo se, na sua essência, e dadas certas peculiaridades, tais normas se apresentarem como de direito penal material ou mistas (equivalentes à situação, numa zona neutra, de institutos de caracteres variados, e penais materiais e processuais penais a um só tempo – a queixa, por exemplo: instituto de direito substancial no que respeita ao exercício do poder dispositivo, referentemente ao conteúdo material do processo penal, ou seja, à pretensão punitiva; e de direito processual, no que tange à forma de efetivação do mencionado poder), deverá ser-lhes conferido o tratamento diverso, em consonância, já agora, com a legislação penal codificada ou extravagante" (Rogério Lauria Tucci, Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo, José Bushatsky, 1975, p. 22). Como se anotou acima, está se tratando de pena, e de prescrição que, ainda que fosse matéria processual penal, teria natureza material, identificando-se com o tratamento dado ao Direito Penal, favorável ao acionado.
  5. "A nosso ver, em face do direito constituído, a controvérsia não tem razão de ser. O § 3º do art. 2º da Lei de Introdução parece-nos claro ao dispor: ‘Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência’. Portanto, dois são os mandamentos deste preceito: primeiro, de caráter geral, o de que a lei antiga não se restaura pelo aniquilamento da lei revogadora; segundo, de natureza excepcional, o de que a lei antiga pode ser restaurada quando a lei revogadora tenha perdido a vigencia, desde que haja disposição expressamente nesse sentido" (R. Limongi França, Hermenêutica Jurídica, 8ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 105). Nesse sentido e ainda mais claramente, disserta Manuel A. Domingues de Andrade: "se uma lei abrogou expressa ou tàcitamente outra lei, e em seguida esta lei abrogativa é por sua vez abrogada, não revive por isso a lei antiga, sendo necessária uma expressão declaração legislativa que a reponha em vigor (lei repristinatória)" (Ensaio sobre a Teria da Interpretação das Leis, 4ª ed., Coimbra, Arménio Amado, 1987, p. 195).
  6. "Objeta-se que o juiz não pode combiná-las para extrair delas um conteúdo mais favorável ao réu; êle estaria, em tal hipótese, elaborando uma lei, o que não lhe é permitido" (E. Magalhães Noronha, Direito Penal, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1968, v. I, p. 76).
  7. Américo A. Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 2ª ed., Coimbra, Coimbra, 1997, p. 107.
  8. Américo A. Taipa de Carvalho, op. cit., p. 189.
  9. Américo A. Taipa de Carvalho, op. cit., p. 359.
  10. René Ariel Dotti, Combinação de Leis Sucessivas – A Superação de um Mito, Boletim do IBCCRIM, ano 15, nº 179, out/2007, p. 21.
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Sobre o autor
Jaques de Camargo Penteado

Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado e Consultor. Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor Doutor do Curso de Pós Graduação da UNIFIEO

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PENTEADO, Jaques Camargo. Lei de imprensa: declaração de inconstitucionalidade e fatos intermediários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2175, 15 jun. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12973. Acesso em: 23 dez. 2024.

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