Sumário: Introdução, desenvolvimento, conclusão e referências bibliográficas.
Resumo: O ônus objetivo da prova, na verdade, não constitui simples regra de julgamento, porque o ofício de julgar é influenciado por fatores subjetivos que circundam o representante do Estado-juiz. Correto seria entender o aspecto objetivo do art. 333 do CPC como sendo uma orientação de conduta ao julgador, e não como uma regra de julgamento, já que este vocábulo despreza elementos subjetivos reais interligados à atividade judicante.
Palavras-chave: ônus objetivo da prova; regra de julgamento; subjetividade; orientação de conduta para fins de julgamento.
INTRODUÇÃO.
Segundo a doutrina mais numerosa, o art. 333 do CPC, para o juiz, é colocado como sendo uma regra de julgamento. Seria o ônus objetivo da prova. Todavia, ao se concluir pela existência de uma regra, olvida-se que há uma subjetividade, que alcança a pessoa do Estado-juiz, capaz de influenciar a convicção do julgador relativamente à demonstração ou não do(s) fato(s) discutidos durante a tramitação processual.
Faz-se, assim, necessária maior reflexão do profissional do direito acerca das lições comumente apresentadas pela doutrina, de modo a coadunar a terminologia empregada com a verdadeira idéia insculpida no dispositivo legal em referência, pois aquela desconsidera que a atividade judicante é contaminada pela figura humana.
DESENVOLVIMENTO
A redação do art. 333 do CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL resta assim disposta: "o ônus da prova incumbe: ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor".
Da leitura do dispositivo, extraem-se algumas conclusões exteriorizadas pela doutrina, dentre elas: a) compete ao autor demonstrar o(s) fatos constitutivo(s) do seu direito; b) compete ao réu demonstrar o(s) fato(s) impeditivo(s) e/ou extintivo(s) e/ou modificativo(s) do direito do autor; c) diante da falta de provas, o julgador aplicará o dispositivo em referência como "regra de julgamento", implicando ônus em detrimento da parte litigante que não cumpriu seu encargo probatório.
As duas primeiras conclusões delineadas acima constituem ônus subjetivo da prova (autor e réu não estão obrigados a demonstrar qualquer fato, mas, se assim não procederem com relação aos que lhe incumbe demonstrar, assumem o risco da sua omissão – é, pois, norma de conduta). A última conclusão é o chamado ônus objetivo da prova (apresenta-se como regra de julgamento, acaso a parte litigante não tenha cumprido o ônus subjetivo que lhe cabe).
A regra de julgamento referida só tem aplicação se, mesmo diante da comunhão dos meios [01], não se trouxer aos autos (por iniciativa das partes, interessados, ou mesmo do próprio juiz) provas necessárias à formação do convencimento do julgador. Encontrando-se em estado de perplexidade, e não mais lhe sendo conveniente aprofundar a investigação dos fatos, como lhe possibilita o poder instrutório do juiz, restará ao julgador unicamente o uso da regra de julgamento – caso contrário, o bem da vida discutido poderia perecer ante a falta de julgamento oportuno.
Segundo a regra de julgamento pré-falada, estando a pretensão do autor juridicamente amparada, demonstrando ele os fatos constitutivos do seu direito e não demonstrando o réu qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, a pretensão daquele deverá ser julgada procedente. Não demonstrando o autor os fatos constitutivos do seu direito, sua pretensão deverá ser julgada improcedente. Demonstrando o réu fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, a pretensão deste, também, deverá ser julgada improcedente.
Entretanto, esta regra de julgamento, conquanto seja colocada como um ônus "objetivo", está relacionada a vários fatores de ordem subjetiva que alcançam a pessoa do Estado-juiz, influenciando, neste rumo, o seu julgamento. Por conta disso, não pode a regra ser entendida, livre de qualquer questionamento, como um ônus objetivo, ou mesmo como uma "regra de julgamento". Na verdade, o ônus deveria ser entendido de acordo com o seu destinatário, e não de acordo com a sua objetividade ou subjetividade, porquanto sempre haverá, por menor que se possa entender, subjetividade.
Com efeito, predomina no ordenamento jurídico pátrio o sistema de livre convencimento motivado (ou persuasão racional do juiz), que ampara um grau de subjetividade (malgrado com menor intensidade que o sistema do livre convencimento judicial). Pela redação do art. 131 do CPC, "o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento".
Inclusive, já pude anotar que "no sistema da persuasão racional (livre convencimento motivado), o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, devendo, todavia, em seu pronunciamento, indicar os motivos que lhe formaram o convencimento. Assim, o julgamento deve advir de uma operação lógica motivada nos elementos de convicção existentes no processo, onde a conclusão alcançada deve ligar-se à apreciação jurídica daquilo que restou demonstrado nos autos" [02].
Aliás, há muito resta superado o sistema legal de valoração dos meios de prova [03] (que angaria menor grau de subjetividade), embora o CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL guarde alguns resquícios dele. Exemplifica esta afirmação a disposição constante no art. 401 do referido diploma, pelo qual: "A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda o décuplo do maior salário mínimo vigente no país, ao tempo em que foram celebrados". Diga-se o mesmo com relação ao sistema do livre convencimento ou da livre convicção [04].
Dito isso, se prevalece o livre convencimento motivado como sistema de valoração da prova, onde é lícito ao juiz apreciar livremente os meios probatórios carreados ao processo, desde que motive o seu convencimento, naturalmente, percebe-se que fatores subjetivos de variada ordem estão relacionados à regra de julgamento. Ao se trazer a responsabilidade e obrigação da prestação jurisdicional ao Estado, este a exerce fazendo uso de material humano (pessoa do juiz), atribuindo, quer queira, quer não, subjetividade ao julgamento.
Conquanto imparcial [05] o julgador, ele não é neutro. Pesa sobre si fatores que acabam subjetivando sua forma de pensar e agir. Inclusive, "importante ressalva deve ser feita no que concerne à imparcialidade do juiz. Não há que se falar em juiz neutro durante o andamento do processo, mas sim em juiz imparcial, uma vez que a neutralidade do ser humano é característica utópica, tendo em vista que o magistrado, assim como qualquer outra pessoa, é dotado de certa carga subjetiva, por menor que esta possa vir a ser" [06].
PAULO NADER, referenciado por JULIANO DEL ANTONIO, já pontuava que "nenhuma outra ciência possui questionamento de ordem conceptual tão profunda quanto a do Direito. Os juristas, por sua vez, recebem uma carga de influência das correntes filosóficas, fato esse natural, pois o Direito se acha intimamente ligado à Filosofia. Atuando sobre o espírito ao nortear a conduta social, o Direito ocupa-se de questões polêmicas, que exigem reflexão e juízos de valor" [07].
Esta subjetividade pode se exteriorizar de forma tão latente na pessoa do julgador que, às vezes, pela constatação dos fatores relacionados, torna-se previsível o seu posicionamento, apresentando-se, por isso, o pronunciamento jurisdicional como uma norma individual criada por pessoa determinada para determinadas situações que congregam seu universo individual. De fato, não se pode olvidar que, quando o julgador se prepara para o exercício da atividade judicante, ele exterioriza não só os seus conhecimentos técnicos e científicos acerca da questão apresentada. Vai mais além, influenciando-se, mesmo sem querer e sem querer se permitir, por fatores pessoais ligados à sua formação, experiências e relações pessoais.
Tanto é assim, que, se a "regra de julgamento" disposta no art. 333 do Código de Processo Civil fosse realmente uma "regra", longe da contaminação de fatores subjetivos, não haveria porque, muitas vezes, que se reconhecer a suspeição ou impedimento do julgador. Igualmente, não se haveria de homenagear o princípio da identidade física do juiz que instrui o processo. Mas a legislação processual, ao passo que possibilitou o reconhecimento de situações de suspeição e impedimento, bem como determinou a preservação da identidade física do juiz, reconheceu que a subjetividade do julgador é capaz de influenciar o seu veredicto.
De fato. O exercício da atividade judicante, na maior parte das vezes, envolve análise de fatos apresentados por meio das provas, malgrado, nalgumas oportunidades, a questão seja somente de direito. Aquela circunstância maximiza a pessoalidade do julgamento, porquanto os fatores envolvidos na atividade jurisdicional são amplos, oportunizando-se a subjetividade (e consequente diversidade de entendimento) acerca uma mesma questão (de fato, de fato e direito ou só de direito) apresentada.
Assim, embora se defenda que o ônus da prova tem sua face objetiva, constituindo-se, neste aspecto, em regra de julgamento, esta não escapa da subjetividade da pessoa do julgador. Ao analisar as provas que foram carreadas aos autos, pode um julgador entender que determinado fato não foi demonstrado, porque os meios de provas carreados não foram suficientes. Em contrapartida, outro julgador, em decorrência de fatores subjetivos que lhe envolvam, pode entender que aqueles mesmos fatos restaram provados, porque entendeu que os meios de provas carreados à sua demonstração seriam suficientes. Situações idênticas apresentadas a julgadores diversos, portanto, podem chegar a conclusões igualmente diversas.
A subjetividade, na verdade, advém da própria atividade orientada às partes pelo ônus subjetivo da prova. Vem antes mesmo do emprego da regra de julgamento – com o julgamento (vocábulo empregado em sua acepção ampla) prévio que é realizado pelas partes litigantes. Pode uma parte entender que demonstrou os fatos, cujo ônus lhe incutia, e o juiz, ao seu turno, entender que não foi cumprido o ônus respectivo. Mais: pode uma parte acreditar que a outra não cumpriu o ônus subjetivo de prova que lhe competia, e o juiz, por razão de seu julgamento, compreender que foi sim cumprido. E, muitas vezes, não há no processo oportunidade para afastar subjetivismos tanto aflorados pelas partes como pelo próprio juiz – considerando-se que, perante os tribunais de superposição, na maior parte das vezes, questões relacionadas a fatos não são enfrentadas.
De toda forma, há de se reconhecer que isto não implica quebra da imparcialidade, mas quebra a impessoalidade do julgador. A prova ou o conjunto probatório podem causar impressões diferentes a pessoas diferentes, ou até mesmo às mesmas pessoas em momentos diferentes de suas vidas. Fatores intrínsecos à personalidade do julgador, relacionados principalmente à sua formação, experiências e relações pessoais são determinantes à definição do julgamento final. Sem contar que eles variam com o passar dos anos, quando as pessoas agregam valores de formação e experiências pessoais, decorrentes, porque não, de acontecimentos históricos, avanços tecnológicos, dentre outras vertentes [08].
Neste viés, o ônus objetivo da prova não pode ser colocado, longe de discussões, como uma regra. Nem aquele ônus pode ser igualmente entendido como sendo objetivo. Se diante de situações idênticas pode haver conclusões diversas, não há uma regra de julgamento e, sim, uma orientação de conduta ao julgador quando, pessoalmente, chegue à conclusão pessoal que determinado(s) fato(s) restou(aram) ou não provado(s). Verdadeiramente, somente quando alcançada a conclusão pessoal do julgador (de que os fatos apresentados no processo restaram ou não demonstrados) é que o art. 333 do CPC vai orientar o julgamento.
Por conta disso, o ônus da prova não deveria ser classificado como sendo objetivo e subjetivo. Na realidade, o ônus sempre é subjetivo. Não deveria sequer utilizar a expressão ônus quando o destinatário do art. 333 do CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL fosse o juiz, pois ele não experimentará, a priori, qualquer intercorrência pelo não cumprimento do ônus objetivo. Para os fins de uma necessária exteriorização da profundidade do art. 333 do CPC, dever-se-ia considerar o seu destinatário, colocando-se às partes o ônus da prova e, ao juiz, uma orientação de conduta para fins de julgamento.
O vocábulo "regra", que significa "fórmula que indica ou prescreve o modo correto de falar, de pensar, raciocinar, agir, num caso determinado", em muito se distancia da idéia de ônus da prova criado pela doutrina. Colocar o art. 333 do CPC como sendo "orientação", ou seja, "impulso, tendência, inclinação", é nomear o instituto de forma mais fidedigna. É compartilhar da conclusão de que a subjetividade decorrente a personificação do Estado-juiz pode influenciar o julgamento, sendo, por isso, capaz de ensejar o aparecimento de resultados diversos a situações idênticas.
CONCLUSÃO
Posto isto, o art. 333 do CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL exige uma maior reflexão com relação às conclusões que até então foram apresentadas pela doutrina de maior número. Aquelas não exprimem com fidedignidade a real profundidade e noção que o dispositivo transparece em sua aplicação prática. Entender que o instituto apresenta uma regra de julgamento, de forma objetiva e desinfluente de fatores de ordem subjetiva, é jogar a limbo a compreensão mais aceitável de institutos jurígenos relacionados à atividade jurisdicional. Onde há emprego da atividade humana, não se pode falar em objetividade; no máximo, em orientação de conduta quando, ao entender pessoal, forem constatadas determinadas conveniências do ponto de vista legal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. A influência do direito material sob o processo. Malheiros Editores. São Paulo, 2009.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Editora Ícone: São Paulo, 1995.
CREMASCO, Suzana Santi. A distribuição dinâmica do ônus da prova. GZ Editora, São Paulo, 2009.
DEL ANTONIO, Juliano. A importância dos princípios da imparcialidade, da publicidade e do contraditório e da ampla defesa, no âmbito de atuação do Direito Processual Brasileiro. Disponível em http://jusvi.com/artigos/36765. Acesso em 05/05/09.
GIRARD, René. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. Editora Paz e Terra: Rio de Janeiro, 2009.
NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
SILVA, Rinaldo Mouzalas de Souza e. Processo Civil. Editora Juspodivm: Salvador, 2009.
Notas
Deste modo, provado o fato constitutivo do direito do autor, pouco importa quem trouxe a prova (a pretensão não será julgada improcedente pelo fato de a prova não ter sido produzida pelo autor). Provados todos os fatos da causa, o juiz não aplicará a regra de distribuição do ônus probatório.
- Pelo princípio da comunhão das provas, estas pertencem ao processo, pouco importando quem as produziu. De fato, ao juiz, incumbe analisar o conjunto probatório em globalidade, sem perquirir a quem competiria o ônus probatório (STJ. REsp 11468/RS. DJU 07/04/92).
- RINALDO MOUZALAS DE SOUZA E SILVA. PROCESSO CIVIL. 2ª Ed. Editora JusPodivm. Salvador, 2009.
- A partir do critério legal, o juiz afere as provas seguindo uma hierarquia estabelecida legalmente. É um método superado, porquanto dá ensejo para que o processo se resuma a um jogo de estratégias, onde o melhor jogador ganha, mesmo apresentando uma verdade formal que muito se distancia da esperada verdade real. Entretanto, no direito processual civil brasileiro há alguns resquícios de sua aplicação
- No critério da livre convicção, deve prevalecer a íntima convicção do julgador, não existindo uma regra que imponha o método de avaliação da prova, justificando aquele a razão pela qual lhe levou a decidir de determinada forma. Também é considerado como um método superado, porque permite o convencimento extra-autos (podendo ser contrário às provas trazidas).
- Realmente, se à parte é defeso valer-se de suas próprias forças para diretamente solucionar o conflito em que se vê envolvida 4, deve o Estado, detentor único do poder-dever de prestar a tutela necessária à resolução daquele, agir no processo, através de seus órgãos, com absoluta isenção de propósitos, assim retribuindo à confiança que lhe é depositada pelo destinatário final da atividade jurisdicional; e essa retribuição pressupõe necessariamente que o Estado exija, daqueles que exercem a jurisdição em seu nome, a condução imparcial do processo, até porque, como salienta Dinamarco, para "que se legitime a imperatividade dos atos e decisões estatais no exercício da jurisdição, o primeiro requisito é a condição imparcial do juiz, o qual deve ser estranho à pretensão, ao litígio e aos litigantes" (MARCATO, Antonio Carlos. A imparcialidade do juiz e a validade do processo. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 57, jul. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/3021>. Acesso em: 22 jul. 2006).
- JULIANO DEL ANTONIO. A importância dos princípios da imparcialidade, da publicidade e do contraditório e da ampla defesa, no âmbito de atuação do Direito Processual Brasileiro. Disponível em http://jusvi.com/artigos/36765. Acesso em 05/05/09.
- PAULO NADER. Filosofia do Direito. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
- Verdadeiramente "existe, em cada época, uma organização do saber para a qual qualquer descoberta importante constitui uma ameaça" (RENÉ GIRARD. Coisas ocultas desde a fundação do mundo. Editora Paz e Terra: Rio de Janeiro, 2009).