RESUMO
Este artigo enfrenta um dos mais complexos problemas vivenciados pelos contribuintes e administrações tributárias municipais: as dúvidas que envolvem a competência para exigir e arrecadar o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN. O estudo demonstra de que forma a falta de clareza no tratamento da questão abriu caminho para que se instalasse uma verdadeira guerra fiscal entre os municípios e, no viés contrário, dá sustentação para muitos contribuintes deixarem de recolher o imposto. Analisa o exercício do poder tributante pelos municípios, considerando as limitações constitucionais e infraconstitucionais, o papel e o alcance da lei complementar nacional. Aborda o fato gerador do imposto sobre serviços em seus aspectos material, temporal e espacial, à luz da legislação, das principais decisões jurisprudenciais e posições doutrinárias, e classifica os serviços tributáveis segundo o local de sua prestação, avaliando as implicações decorrentes e determinantes para a cobrança do imposto. Examina a presunção na legislação tributária, o conceito de estabelecimento prestador e o poder de polícia especial que detêm os municípios para regular o exercício de atividades em seu território. O estudo avalia, portanto, os aspectos e variáveis relacionadas ao tema a partir da realidade vivida pelas administrações tributárias na cobrança do tributo e, sem pretender fechar a discussão, objetiva colaborar para a minimização dos efeitos do conflito que tanto incomoda e prejudica os municípios e os contribuintes.
Palavras-chave: Competência. ISSQN. Fato Gerador. Serviços. Estabelecimento Prestador.
1. INTRODUÇÃO
Na proporção em que ganhou importância como fonte de receita, o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza transformou-se em alvo de disputas envolvendo a legitimidade para a sua cobrança. Não são poucos os municípios brasileiros que, na busca de aumentar a receita própria, passaram a atrair empresas praticando alíquotas muito reduzidas, patrocinando um verdadeiro leilão. Diante da possibilidade de aliviar a carga tributária, muitos prestadores de serviço transferiram suas empresas, alguns efetivamente, outros de forma fictícia [01].
Outro fator ainda mais sutil motiva a economia ilegal de tributos gerada pelo estabelecimento fictício em uma cidade: a precária estrutura das administrações tributárias dos municípios pequenos. Com a transferência da sede jurídica da prestadora para escritórios virtuais, o contribuinte foge da fiscalização (normalmente mais preparada e estruturada nos municípios maiores) e, não raro, desobriga-se do cálculo do imposto pelo preço do serviço, recolhendo valores ínfimos fixados por estimativas sem respaldo na realidade da empresa.
O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que o local da prestação do serviço é que define o Município competente para a imposição tributária. Assim decidindo, resguardou o direito daqueles municípios que sofriam com as fraudes, na medida em que determinou que o imposto fosse recolhido no local onde o prestador estivesse efetivamente prestando o serviço, em detrimento do endereço jurídico da empresa.
Mas a questão não se resolveu assim tão facilmente e não são raros os casos em que dois ou mais municípios tentam tributar os mesmos fatos geradores, situação inadmissível em nosso sistema jurídico tributário, onde a competência de um ente federado exclui de pronto a pretensão impositiva de qualquer outro.
A Emenda Constitucional nº. 37, de 12 de junho de 2002, trouxe certo alívio ao fixar a alíquota mínima do ISSQN em dois por cento (2%), porém, nem a edição da Lei Complementar nº. 116, de 31 de julho de 2003, resolveu definitivamente o problema [02].
A solução fica ainda mais distante com a confusão criada pelo intérprete e aplicador do direito tributário que frequentemente utiliza a expressão ditada pela jurisprudência "local da efetiva prestação do serviço" como sinônima de "município sede do tomador do serviço".
O equívoco agrava o problema também para o sujeito passivo, seja ele o prestador, contribuinte direto, ou o tomador do serviço, eleito responsável tributário em situações previstas na lei complementar federal e nas legislações municipais.
Diante da falta de clareza e uniformidade no tratamento da questão, perdem os contribuintes e os municípios que, além dos prejuízos diretos provenientes do valor do tributo em si, obrigam-se a resguardar seus direitos em processos administrativos e/ou judiciais, onerosos por natureza.
A proposta deste artigo é apresentar e discutir aspectos pertinentes ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza e colaborar para a minimização dos nocivos efeitos produzidos pelo conflito que envolve a sua cobrança.
2. O ISSQN E O EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA MUNICIPAL
Aos municípios compete instituir e arrecadar, dentre outros tributos, o ISSQN. O exercício da competência tributária, porém, pressupõe obediência às limitações contidas na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados, nas Leis Orgânicas e não menos importante se mostra a observação das normas gerais de direito tributário.
Sobre o tema, Amaro (2006, p. 106 e 107) ensina que:
O exercício do poder de tributar supõe o respeito às fronteiras do campo material de incidência definido pela Constituição e a obediência às demais normas constitucionais ou infraconstitucionais que complementam a demarcação desse campo e balizam o exercício daquele poder
Na Constituição Federal, as limitações são verificadas essencialmente nas imunidades por ela conferidas e nos princípios constitucionais tributários, que servirão de norte ao legislador ordinário na criação e regulação dos tributos.
Dentre os princípios constitucionais, merece atenção especial o princípio da territorialidade, segundo o qual a legislação tributária terá sua aplicação definida pelos limites geográficos do ente titular da competência ativa. Carvalho (2002, p. 161) anota que: "A observância eficaz do princípio da territorialidade da tributação é condição determinante do bom funcionamento e da harmonia que o ordenamento planificou".
Passando ao campo infraconstitucional, encontramos as normas gerais de direito tributário, prescritas pelo Código Tributário Nacional e, no caso do ISSQN, pela Lei Complementar 116, de 31 de julho de 2003.
Destacamos aqui o importante papel reservado expressamente pelo Art. 146 da Constituição Federal à lei complementar nacional que reger matéria tributária. Segundo Amaro (2006, p. 168 e 169), é função precípua da lei complementar dispor sobre conflitos de competência entre os entes tributantes, explicitando, por exemplo, a demarcação da linha divisória da incidência do ISS (imposto municipal) e do ICMS (imposto estadual), assim como a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar e o estabelecimento das normas gerais. Ensina o autor:
Dir-se-ia que a Constituição desenha o perfil dos tributos (no que respeita à identificação de cada tipo tributário, aos limites do poder de tributar, etc.) e a lei complementar adensa os traços gerais dos tributos, preparando o esboço que, finalmente, será utilizado pela lei ordinária, [...].
A par desse adensamento do desenho constitucional de cada tributo, as normas gerais padronizam o regramento básico da obrigação tributária (nascimento, vicissitudes, extinção) conferindo-se, dessa forma, uniformidade ao Sistema Tributário Nacional. (grifo nosso)
Cabe observar que a competência para estabelecer normas gerais em matéria tributária inclui a definição dos fatos geradores dos impostos, conforme teor do inciso III, alínea a do dispositivo constitucional.
Portanto, o exercício regular da competência tributária pelos municípios impede o legislador ordinário de definir fato gerador não previsto ou diferente do previsto na legislação complementar. A mesma orientação deve nortear a previsão legislativa quanto à responsabilidade tributária e a atribuição desta não pode certamente resultar na invasão da competência de outro ente federativo.
3. O FATO GERADOR DO IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS
Para o estudo proposto é imprescindível empreender análise prévia do critério material da hipótese de incidência do imposto sobre serviços, assim como delimitado pela legislação. Para tanto, optou-se por apoiar o raciocínio nas normas atuais, estabelecidas pela LC 116/2003, comparando-as com a legislação por ela sucedida, o DL 406/68.
Pode-se afirmar com precisão que não houve, com a transição legislativa, mudança no núcleo do critério material, correspondendo o fato gerador à "prestação" dos serviços previstos em lista específica (Art. 8º DL 406/68 e Art 1º LC 116/2003).
Luciano Amaro ensina que o fato gerador de um tributo corresponde a "uma situação material descrita pelo legislador [...] definido pela referência a uma ação ou situação [...] que se identifica como núcleo ou materialidade", em torno do qual gravitam circunstâncias "igualmente necessárias para a identificação da obrigação tributária". Discorrendo sobre cada uma destas circunstâncias, lembra o autor que o fato gerador é um acontecimento histórico, motivo pelo qual se põe no tempo e no espaço, aspectos cuja análise e definição entende ser de grande relevância considerando que uma mesma situação pode constituir-se em fato gerador tributário em um determinado lugar e não em outro, e, mais que isso, em relação ao espaço, "para efeito da solução de possíveis conflitos de normas", posto que define, por exemplo, se a prestação de um serviço estará sujeita à legislação de um ou de outro município. Quanto ao aspecto temporal, considera o autor que "o fato acontece no tempo", sendo este aspecto relevante não apenas porque define os prazos para cumprimento de obrigações, mas principalmente porque identifica a legislação aplicável, qualificando o fato, se gerador ou não de obrigação tributária, isento ou tributável, e ainda, definindo a alíquota incidente. (AMARO, 2006, p. 263 a 267).
Os aspectos que circundam o fato gerador dele não se separam e, por certo, a previsão legal correspondente não pode destoar da situação material também descrita pela lei.
Sendo o critério material da obrigação tributária caracterizado pela ação de prestar um serviço, é preciso identificar inicialmente quando aconteceu o fato. Definido o momento da materialização ou concretização da hipótese de incidência, a prestação do serviço, podemos extrair com isenção total de dúvida onde esta se deu e, assim, qual o Município competente para exigir a obrigação tributária decorrente.
Nas relevantes palavras do mestre Amaro (2006, p.279):
O que se deve ressaltar é a importância da precisa identificação temporal e espacial do fato gerador, pois, a partir do momento em que ele se realiza, nasce a obrigação tributária, com a irradiação de direitos e deveres, pretensões e ações, conferidos às partes que titulam os pólos ativo e passivo da relação jurídica tributária.
Para situar o fato no tempo, importante lembrar do art. 116 do Código Tributário Nacional, que, diferenciando as situações de fato e de direito, preceitua ter-se por ocorridas as primeiras (nas quais se inclui o fato gerador do ISSQN): "desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente lhe são próprios" [03].
Neste sentido, esclarecedor o comentário de Decomain (2000, p. 458):
Nada obstante as previsões contidas no art. 116, as leis que criam cada tributo podem definir em que momento se considera realizado o respectivo fato gerador. Assim, por exemplo, a Lei Complementar n. 87/96, que contém normas gerais relativas ao ICMS, considera realizado um dos possíveis fatos geradores daquele imposto, representado por operação de circulação de mercadoria, no momento em que a mercadoria deixa o estabelecimento do fornecedor.
O Decreto-Lei nº. 406/68, para definir o critério espacial do fato gerador do ISSQN, estabelecia em seu artigo 12 regra geral em que o serviço considerava-se prestado e o imposto devido no local do "estabelecimento prestador", listando apenas duas exceções ou regras especiais, consistentes nos serviços relacionados à construção civil e à exploração de rodovia mediante preço ou pedágio [04]. Reconhecia, portanto, apenas em duas situações excepcionais, que o fato imponível ocorria em local diverso e independente do estabelecimento prestador.
A Lei Complementar 116/03 tratou a questão com maior zelo e ajustou a definição do critério espacial ao princípio da territorialidade, ao ampliar as regras especiais (Art. 3º, I a XXII e §§ 1º e 2º). Ao mesmo tempo, no caput do artigo, confirmou a regra geral do local do estabelecimento prestador para todos os demais serviços. Vejamos:
Art. 3º O serviço considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o imposto será devido no local:
I – do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço [...];
II – da instalação dos andaimes, palcos, coberturas e outras estruturas [...];
III – da execução da obra [...];
IV – da demolição [...];
V – das edificações em geral, estradas, pontes, portos e congêneres [...];
VI – da execução da varrição, coleta, remoção, incineração, tratamento, reciclagem, separação e destinação final de lixo [...];
VII – da execução da limpeza, manutenção e conservação de vias e logradouros públicos, imóveis, chaminés, piscinas, parques, jardins e congêneres [...];
VIII – da execução da decoração e jardinagem, do corte e poda de árvores [...];
IX – do controle e tratamento do efluente de qualquer natureza e de agentes físicos, químicos e biológicos [...];
X e XI - (VETADOS)
XII – do florestamento, reflorestamento, semeadura, adubação e [...];
XIII – da execução dos serviços de escoramento, contenção de encostas [...];
XIV – da limpeza e dragagem [...];
XV – onde o bem estiver guardado ou estacionado [...];
XVI – dos bens ou do domicílio das pessoas vigiados, segurados [...];
XVII – do armazenamento, depósito, carga, descarga, arrumação e guarda [...];
XVIII – da execução dos serviços de diversão, lazer, entretenimento e [...];
XIX – do Município onde está sendo executado o transporte [...];
XX – do estabelecimento do tomador da mão-de-obra [...];
XXI – da feira, exposição, congresso ou congênere [...];
XXII – do porto, aeroporto, ferroporto, terminal rodoviário, ferroviário ou metroviário [...].
§ 1º No caso dos serviços a que se refere o subitem 3.04 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos [...].
§ 2º No caso dos serviços a que se refere o subitem 22.01 da lista anexa, considera-se ocorrido o fato gerador e devido o imposto em cada Município em cujo território haja extensão de rodovia explorada.
Da simples leitura das regras específicas extrai-se com segurança que a lei não vinculou o critério espacial ao tomador dos serviços, seu estabelecimento ou domicílio.
O que a lei fez foi pinçar do elenco de serviços tributáveis, aqueles que exigem a transferência efetiva, mesmo que temporária, de estrutura necessária à execução do serviço para local diverso do estabelecimento prestador e, a partir desta seleção, definiu que o imposto é devido àquele município onde os serviços forem executados, o que pode coincidir com o município sede do prestador dos serviços, do tomador ou qualquer outro. Somente nos incisos I e XX a lei indicou o estabelecimento do tomador para definir o local da prestação, presumindo que somente nele os serviços podem se realizar.
4. O ASPECTO ESPACIAL DO ISSQN, A JURISPRUDÊNCIA E A DOUTRINA
O Superior Tribunal de Justiça, enquanto ainda vigente o DL 406/68, firmou entendimento no sentido de que o Município competente para exigir e arrecadar o ISSQN era aquele onde o serviço fosse efetivamente prestado, podendo-se, para alcançar esta verdade, ignorar o teor da alínea a do artigo 12 do citado diploma legal. Neste sentido a decisão dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 130.792-CE, de relatoria do Ministro Ari Pargendler, publicada no DJ em 16/06/2000, página 66: "... importa o local onde foi concretizado o fato gerador, como critério de fixação de competência do Município arrecadador e exigibilidade do crédito tributário, ainda que se releve o teor do artigo 12, alínea ‘a’ do Decreto-lei nº 406/68" [05].
Tal decisão não permaneceu isenta de críticas. Ives Gandra da Silva Martins e Marilene Talarico Martins Rodrigues (in PEIXOTO e MARTINS, 2004, p. 245) avaliaram que o entendimento feriu expressamente dispositivo legal. Citando o acórdão do Resp. 54.002-0/PE (94.0028001-7), os autores dão o tom da repercussão provocada pelas decisões daquele Tribunal: "Foi, portanto, com surpresa que os doutrinadores pátrios e advogados tomaram conhecimento das decisões do STJ, em que o Poder Judiciário assume as funções de ‘legislador positivo’, claramente declarando que o fazia".
Bernardo Ribeiro de Moraes (apud Martins e Rodrigues, in PEIXOTO e MARTINS, 2004, p. 247) classificou a decisão como contrária à lei: "A jurisprudência, data venia, não pode ser contra legem, nem o Superior Tribunal de Justiça deixou de aceitar, como vigente, o art. 12 do Dec.-lei 406/68, que adota o ‘estabelecimento prestador’ como local da prestação de serviços (incidência tributária)".
Ainda é cedo para concluir qual o tratamento que o STJ dispensará à questão para os fatos geradores tributários ocorridos sob a égide da LC 116/2003. Os julgados emitidos após aquela data, ou se referem a fatos geradores pretéritos ou não tiveram o problema enfrentado por depender de reexame de provas fáticas, o que esbarra na Súmula 7 daquele Tribunal [06].
O fato é que o entendimento jurisprudencial, pacificado em repetidas decisões, serviu de pedra fundamental a uma confusão conceitual ainda não solucionada e, não raro, a orientação de desconsiderar o local do estabelecimento prestador para fins de definir o destino da arrecadação dá suporte à utilização da expressão "local da efetiva prestação do serviço" ou "local onde foi concretizado o fato gerador", como sinônima de "município do tomador do serviço".
A cobrança do tributo com base na interpretação equivocada das expressões afronta diretamente o critério material do ISSQN, marcada pelo verbo prestar. Incidirá o imposto municipal sobre a prestação do serviço, não sobre a sua destinação ou fruição.