II. A lei no. 9.532/97 e a tributação dos ganhos auferidos
pelas entidades imunes em suas aplicações financeiras:
Considerando que as entidades fechadas de previdência privada venham a ser consideradas pelo Supremo Tribunal Federal como imunes, outras questões se impõem: a da constitucionalidade da cobrança de IRRF e IOF sobre as aplicações financeiras dos detentores da condição de imunes, e dos novos requisitos, criados pela lei nº 9.532/97, para que as entidades de assistência social sejam consideradas imunes.
O art. 12 da lei no. 9.532, de 10 de dezembro de 1997 tem a seguinte redação:
" Art. 12 - Para efeito do disposto no art. 150, inciso VI, alínea "c", da Constituição, considera-se imune a instituição de educação ou de assistência social que preste os serviços para os quais houver sido instituída e os coloque à disposição da população em geral, em caráter complementar às atividades do Estado, sem fins lucrativos.
§ 1º - Não estão abrangidos pela imunidade os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável.
§ 2º Para o gozo da imunidade, as instituições a que se refere este artigo, estão obrigadas a atender aos seguintes requisitos:
a) não remunerar, por qualquer forma, seus dirigentes pelos serviços prestados;
b) aplicar integralmente seus recursos na manutenção e desenvolvimento dos seus objetivos sociais;
c) manter escrituração completa de suas receitas e despesas em livros revestidos das formalidades que assegurem a respectiva exatidão;
d) conservar em boa ordem, pelo prazo de cinco anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem assim a realização de quaisquer outros atos ou operações que venham a modificar sua situação patrimonial;
e) apresentar, anualmente, Declaração de Rendimentos, em conformidade com o disposto em ato da Secretaria da Receita Federal;
f) recolher os tributos retidos sobre os rendimentos por elas pagos ou creditados e a contribuição para a seguridade social relativa aos empregados, bem assim cumprir as obrigações acessórias daí decorrentes;
g) assegurar a destinação de seu patrimônio a outra instituição que atenda às condições para gozo da imunidade, no caso de incorporação, fusão, cisão ou de encerramento de suas atividades, ou a órgão público;
h) outros requisitos, estabelecidos em lei específica, relacionados com o funcionamento das entidades a que se refere este artigo.
§ 3° Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superavit em suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine referido resultado integralmente ao incremento de seu ativo imobilizado".
O primeiro aspecto que nos chama a atenção é o texto do caput, quando o legislador afirma que as entidades assistenciais devem colocar seus serviços à disposição da população em geral, em caráter complementar às atividades do Estado.
A partir do momento em que a lei ordinária estabelece novos critérios para a aquisição do status de imune, extrapola sua função constitucionalmente prevista, uma vez que restringe o instituto constitucional, bem como a sua própria competência, como adiante exporemos.
Paulo de Barros Carvalho(12), em seu Curso de Direito Tributário, define a imunidade como " a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas jurídicas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas".
A regras aplicáveis à imunidade tributária encontram-se na seção, inserida no capítulo da Constituição destinado ao Sistema Tributário Nacional, em que se tratam das limitações constitucionais ao poder de tributar do Estado, ou seja, estabelecem uma obrigação de não fazer ao mesmo, impedindo que eles venham a criar tributo sobre as entidades descritas pela superlei como imunes.
Pois bem: ao estabelecer novas condições, que não as previstas na própria Constituição e no CTN, o legislador da lei nº 9.532/97 criou tributo para as pessoas que se enquadravam nos requisitos fornecidos pelos diplomas normativos, com eficácia a partir de 01.01.98. Por isso seriam, de imediato, inconstitucionais todos os requisitos criados pelo §2º e alíneas do art 12.
Poder-se-ia objetar que a Constituição, em seu art. 155, VI, c, fala, em seu trecho final, que, para o exercício da imunidade tributária, deveriam ser "atendidos os requisitos da lei". Contudo, esta jamais seria lei ordinária, a teor do disposto no art. 146, II, que determina que cabe à lei complementar regulamentar as limitações constitucionais ao poder de tributar, de modo que, dispondo acerca desta matéria, a lei nº 9.532/97 veio a violar o princípio da estrita legalidade tributária. Isso posto, concluímos que a lei complementar que trata efetivamente da matéria, e que estabelece as únicas limitações possíveis ao gozo da imunidade, é o CTN, em seu art. 14, I a III.
Se fosse possível admitir que as imunidades pudessem ser restringidas por outro dispositivo que não o constitucional, seria conferir ao legislador ordinário uma carta branca para que pudesse restringir ao máximo possível as imunidades conferidas pela Carta Magna, no que, aliás, inclusive feriria um pressuposto lógico da imunidade, que consistiria em impedir que os entes tributantes internos editem leis instituidoras de tributos que alcancem aquelas situações pré-definidas, como aliás se se pode inferir do próprio conceito de imunidade tributária.
O parágrafo 1º do art. 12 também nos brinda com outra pérola exótica: a determinação de que "não estão abrangidos pela imunidade os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável", sendo que o art. 28, prosseguindo na senda aberta pelo dispositivo supra, é igualmente atécnico:
"Art. 28. A partir de 1° de janeiro de 1998, a incidência do imposto de renda sobre os rendimentos auferidos por qualquer beneficiário, inclusive pessoa jurídica imune ou isenta, nas aplicações em fundos de investimento, constituídos sob qualquer forma, ocorrerá:
I - diariamente, sobre os rendimentos produzidos pelos títulos, aplicações financeiras e valores mobiliários de renda fixa integrantes das carteiras dos fundos;
II - por ocasião do resgate das quotas, em relação à parcela dos valores mobiliários de renda variável integrante das carteiras dos fundos. (grifos nossos)"
Não se trata da primeira tentativa de subtrair ao espectro da imunidade tributária as aplicações financeiras: na ordem constitucional de 1967, o Decreto-lei nº 2.065/83, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, representou uma clara (e fracassada) tentativa nesse sentido.
Caso a imunidade tributária das entidades fechadas de previdência privada venha a ser reconhecida pelo STF, o §1º do multicitado artigo 12, ao determinar que "não estão abrangidos pela imunidade os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável", atingiria frontalmente o texto constitucional, uma vez que este é enfático ao afirmar que não poderá incidir imposto sobre a renda das entidades imunes, conceito que abrangeria, naturalmente, a renda oriunda das aplicações financeiras.
A Fazenda Nacional justifica a lei através do disposto no §4º do art. 150 da CF, que dispõe que a imunidade do art. 150, VI, c., apenas estará relacionada ao patrimônio, renda e serviços relacionados às finalidades essenciais das entidades, de forma que a lei nº 9.532/97 cristalizou o entendimento do Fisco de que as aplicações não estariam relacionadas à atividade-fim da entidade. Contudo, os rendimentos das aplicações financeiras seriam destinados à manutenção das atividades sociais das entidades imunes, de forma que estariam satisfeitos os requisitos constitucionais.
Contudo, se fizermos uma leitura aprofundada do aberrante §3º do art. 12, que determina que será entidade sem fins lucrativos aquela que não apresente superavit em suas contas ou, caso venha a apresentá-lo, que destine o lucro integralmente ao incremento de seu ativo imobilizado, chegaremos a uma conclusão clara: nenhuma entidade beneficiária da imunidade constitucional poderá fazer aplicações financeiras, pois, caso parte dos seus recursos seja destinada ao ativo circulante (classificação contábil da conta de aplicações financeiras) e não ao ativo imobilizado, ficará caracterizada sua finalidade lucrativa! Não seria sequer necessário que o legislador "cometesse" a redação do art. 28, com o célebre "inclusive pessoa imune ou isenta", pois, com os requisitos que a lei estabelece para a fruição desse status, já não existiria no país uma instituição que pudesse ser considerada como tal.
A maior parte da jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais do país tem se manifestado pela extensão da imunidade às aplicações financeiras, chegando inclusive, em alguns casos, a estendê-la ao IOF. O STJ, em julgados isolados em ações movidas por Estados e Municípios, que gozam de imunidade recíproca, contra a cobrança do IOF sobre suas aplicações financeiras, também já expressou entendimento similar.
Outro aspecto deve ser lembrado: diferentemente da questão relativa à imunidade tributária dos fundos de pensão, em que uma eventual decisão desfavorável para estas entidades levará à conclusão de que estas jamais foram imunes e, portanto, deveriam ter recolhido os impostos incidentes sobre renda, serviços e patrimônio desde a entrada em vigor do Sistema Tributário Nacional, referentemente à cobrança do IRRF, cumpre estabelecer duas hipóteses: a) caso os fundos de pensão tenham sua imunidade reconhecida, e venha a ser declarada constitucional o art. 12 da lei nº 9.532/97, a responsabilidade tributária dessas entidades se restringirá aos fatos geradores ocorridos após a entrada em vigor da lei nº 9.532/97, ou seja, apenas para os fatos geradores ocorridos após 01.01.98, o que se deve ao fato da obrigação tributária de recolher o IRRF ter passado a existir apenas após essa data, não havendo disposição legal que forçasse o contribuinte a fazê-lo anteriormente; b) caso os fundos de pensão não sejam considerados imunes, deverão recolher o IRRF sobre as suas aplicações financeiras relativamente aos seus ganhos em operações de renda fixa e variável nos últimos cinco anos, pois, nesse caso, a obrigação tributária sempre existiu.
De qualquer forma, a imunidade constitucional das entidades privadas de previdência privada parece estar com seus dias contados. De acordo com o informado pela imprensa(13), o projeto de lei complementar que tramita no Congresso Nacional (PL-63), que já foi aprovado por unanimidade na Câmara e está aguardando votação no Senado, prevê o regime de diferimento no pagamento do Imposto de Renda, o que consistiria em uma vantagem para os fundos de pensão. Além disso, já se encontram em estudo projetos de lei que criam uma tributação específica para a previdência complementar, mais especificamente para a tributação dos ganhos auferidos em aplicações financeiras, o que nos parece uma clara conscientização da inconstitucionalidade gritante da lei nº 9.532/97.
III CONCLUSÃO
Foge à nossa alçada discorrer sobre os efeitos econômicos e sociais decorrentes de uma possível derrota das entidades fechadas de previdência privada no STF; analisamos, aqui, apenas os aspectos jurídicos da questão. Não acreditamos que o julgamento da nossa Corte Suprema seja pautado por argumentos exclusivamente de ordem técnica, ainda mais porque é evidente o interesse governamental em ampliar a arrecadação do Estado através da cobrança destas quantias, e sabida de todos a atuação que este tribunal tem adotado recentemente em discussões deste porte (como a denegação do pedido de liminar na ADIn contra a cobrança da CPMF).
Não se trata de deplorar que, ao exercer sua função constitucional, o STF venha a apreciar os reflexos de sua decisão sobre a política e o equilíbrio econômico da nação, mas cumpre alertar para o que Alfredo Augusto Becker(14) chamava de prostituição da atitude mental jurídica, através de apropriação de conceitos estranhos à ciência do direito (econômicos, financeiros, políticos), e que levaria a uma "conclusão invertebrada e de borracha que se molda e adapta ao caso concreto segundo o critério pessoal (arbítrio) do intérprete do direito positivo (regra jurídica). Em síntese:aquele tipo de raciocínio introduz clandestinamente a incerteza e a contradição para dentro do mundo jurídico; incertezas e contradições que conduzem todos ao manicômio jurídico-tributário e à terapêutica e à cirurgia do desespero".
Não seria lícito que o Estado, após subtrair-se ao cumprimento integral de seus deveres, queira ainda taxar a iniciativa privada que, sem caráter lucrativo e, portanto, sem capcidade econômica, zela pelo bem-estar de seus assistidos. Seria um proceder que poderia ter efeitos nefastos para a Sociedade. Na realidade, já existe pagamento de tributos sobre os recursos destas entidades, no momento em que estes se convertem em rendimento dos seus associados, sendo sua cobrança, sob a forma de Imposto de Renda Pessoa Física, portanto, apenas diferida no tempo.
Dessa forma, apesar de todos os argumentos elencados neste estudo, os quais permitem que afirmemos convictamente que os fundos de pensão são imunes, nos termos do art. 150, VI, c, da Constituição Federal, é bem possível que o STF venha a julgar a questão de forma desfavorável às referidas entidades. Mesmo assim, não poderá chancelar as atrocidades cometidas pela lei no. 9.532/97 no sentido de restringir a aquisição do status de imune por parte das instituições de educação e assistência social.
Por fim, quanto à provável perda da condição de imune por parte das entidades fechadas de previdência privada, em razão do projeto de lei complementar em tramitação no Congresso Nacional, trata-se de decisão meramente política (como política é a concessão da própria imunidade), por cujas conseqüências deveriam responder os parlamentares, mas que, com certeza absoluta, atingirá apenas aos cidadãos.
Trata-se do verdadeiro absurdo da vida que, nas palavras de Shakespeare proferidas pela boca de Macbeth, "is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing".
NOTAS
- GAZETA MERCANTIL. Fundos de pensão aguardam julgamento do STF 26.03.99, pg. **
- GAZETA MERCANTIL. Novas regras impulsionam fundos de pensão 04.04.2000, pg. B-1.
- MENTE, Paulo. A Previdência Privada Fechada. In BALERA, Wagner (coord.). Curso de Direito Previdenciário. 4a. edição., São Paulo: LTR, 1999.
- GAZETA MERCANTIL. Novas regras impulsionam fundos de pensão. 04.04.2000.
- Apud MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social.13a. edição. São Paulo: Atlas, 2000.
- DERZI, Misabel. "Ratio essendi"da imunidade dos templos, das atividades religiosas, políticas, assistenciais e culturais na Constituição de 1988, in BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 138 e ss.
- Idem, ibidem.
- COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 1a. edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 277 e ss.
- MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 13a. edição. São Paulo: Malheiros, 1998, pg. 199.
- Apud CONTI, José Maurício. Princípios Tributários da Capacidade Contributiva e da Progressividade. 1ª ed. São Paulo: Dialética, 1996.
- Idem, ibidem.
- CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 11ª ed. Rev. São Paulo: Saraiva, 1999.
- GAZETA MERCANTIL. Projeto de lei pode diferir IR das fundações. 11/05/2000, pg. B-3.
- BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 3a. edição. São Paulo: Lejus, 1998, pg. 40.