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Culpabilidade e livre-arbítrio novamente em questão.

Os influxos da neurociência sobre o Direito Penal

03/07/2009 às 00:00
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Apesar das inúmeras e profundas discussões levantadas, ao longo dos séculos, a respeito da problemática da liberdade de vontade humana (ou seja, da questão acerca de que se o homem é dotado de liberdade plena, mais especificamente, se é capaz de decidir livremente diante de alternativas que se lhe anteponham, ou não), um único fato resulta inconteste, a saber, o de que os debates a respeito dessa questão nunca chegaram a uma conclusão que fosse representativa de um entendimento assente. Mas o que torna isso surpreendente é o fato, já há muito advertido por Mezger, de que os mais diversos âmbitos do saber se ocupam com esta questão [01]. Ressaltava o penalista alemão que as ciências da natureza não compreendem como, no cosmos bem ordenado da natureza, poderia ter lugar algo como uma vontade humana livre; a Ética e a Filosofia do Direito acreditavam não poder afastá-la, pois, caso contrário, não poderiam fundamentar a responsabilidade; e a Teoria do Conhecimento estaria diante do seu último e mais difícil problema. [02]

Sem dúvida, a questão é tão polêmica, e grave, que alguns âmbitos do saber procuraram, inclusive, se afastar da problemática, assentando as bases estruturantes de seus respectivos sistemas em uma presunção, qual seja, a presunção de liberdade humana.

Em Direito Penal, por muito tempo se discutiu a respeito da liberdade de vontade como elemento necessário ao sistema – sobretudo no que diz respeito ao conceito de culpabilidade – observando-se, no entanto, ser o problema fundamental do livre-arbítrio humano, não a questão acerca da liberdade de agir, isto é, se o homem pode fazer o que ele quer, mas, sim, a liberdade de querer, portanto, se ele pode querer o que ele quer. Ademais, a problemática foi brilhantemente sintetizada por Bitencourt, ao afirmar que "o livre-arbítrio como fundamento da culpabilidade tem sido o grande vilão na construção moderna do conceito de culpabilidade e, por isso mesmo, é o grande responsável pela sua atual crise" [03].

De qualquer forma, esta discussão conduziu o direito penal a se orientar por uma concepção calcada em um determinismo absoluto ou, em sentido "oposto", em um indeterminismo. Entretanto, particularmente com a presumida superação de um paradigma etiológico do crime, sedimentado quer em fatores de natureza endógena, quer exógena, os debates se diluíram e a problemática permaneceu em aberto. Salvo raras manifestações, sobretudo de natureza dogmática, que surgiram na literatura jurídico-penal [04], por longo período verificou-se uma lacuna a respeito.

Porém, hoje, rompe-se o silêncio ante os avanços das pesquisas científicas que trazem, novamente, ao centro das discussões o problema do livre-arbítrio.

As pesquisas desenvolvidas pela neurociência reclamam por uma nova visão ou imagem do homem, orientada pela superação da concepção tradicional do homem, enquanto responsável pelo seu próprio fazer, de forma que tal concepção seja substituída pela do homem que pode conviver sem conceitos como responsabilidade e culpabilidade, na medida em que estes conceitos seriam aplicáveis somente quando se dispusesse de livre-arbítrio [05].

Basicamente, as pesquisas neurocientíficas preconizam a vinculação entre a consciência e seus fundamentos neurológicos. Assim, como bem explicado por Jürgen Krüger, a neurociência parte de que o conhecimento começa comumente com o mundo exterior que abarca, entre outros, objetos, pessoas, as células nervosas e suas atividades. Uma parte desconhecida destas atividades constitui, ao menos no homem, os fundamentos neurológicos da consciência, que, em princípio é objetivamente verificável, pois se trata de atividade dos neurônios. Por sua vez, as condições internas subjetivas não são apreensíveis, pois não pertencem ao mundo exterior, assim, por exemplo, a alegria e o livre-arbítrio. [06] Na neurociência, os componentes apreensíveis da consciência são designados pela expressão "correlação neural da consciência", com a qual se pretende indicar uma relação mútua de processos neurológicos e de condições internas, onde, no momento da existência de uma tal condição, se desencadeia um processo neurológico correspondente que serve de fundamento causal ao primeiro. Levando em consideração tal colocação, a própria vontade livre seria, portanto, coordenada pela condição neurológica da atividade causadora. Nessa linha de argumento, a vontade livre seria como qualquer outro processo neurológico causalmente vinculado a uma variedade de processos materiais e, por conseguinte, não seria mais livre. [07]

Tais conclusões levariam por terra todo o arcabouço teórico que sustenta a ciência do direito penal contemporâneo. Esse, no entanto, é o preço que paga o direito penal por sua própria condição, nas palavras de D’Ávila, "de ciência aberta ao seu tempo" [08] que, justamente em razão disso, se permite sofrer os influxos das transformações decorrentes das descobertas e avanços científicos dos demais âmbitos do saber.

Naturalmente, a porta de entrada para a discussão destas questões trazidas pela neurociência, no âmbito do direito penal, é justamente a culpabilidade, posto que o juízo de censura penal da culpabilidade somente se sustenta com base na ideia de livre-arbítrio. Aliás, a própria ideia de punição pressupõe o homem livre quando do seu agir; daí se falar em culpabilidade como pressuposto de pena.

Todavia, o "ressurgimento" da discussão no âmbito da culpabilidade, conduz à identificação de uma dúplice ordem de problemas que estão direta e justamente ligadas a esta questão [09]:

1) Em primeiro lugar, não existe um conceito positivo de culpabilidade, de forma que sua definição se dá negativamente, isto é, com base em um programa normativo de exceções. O estabelecimento de um conceito vinculante de culpabilidade, instituído legalmente, sem dúvida, pressuporia a fixação de um conceito de livre-arbítrio a nível legislativo, o que geraria maiores problemas, daí o legislador instituir um programa normativo negativo, segundo o qual, a inexistência de causas de exclusão da culpabilidade conduz à sua afirmação (assim, por exemplo, a inexistência de condições como a menoridade, doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado – art. 26 do CP –, o erro inevitável sobre a ilicitude do fato – art. 21, do CP –, a coação moral irresistível e a obediência hierárquica – art. 22, do CP, etc., autorizam um juízo de censura de culpabilidade). Em vista disso, é mister ter presente, como já advertiu Hassemer, que sem a condição positiva da capacidade humana de responsabilidade e a participação inerente (ao ser humano) no acontecimento exterior não seria lógico e nem justo proceder a uma censura de culpabilidade e à aplicação de pena. Com isso, diante do programa de decisão negativo das leis, a ciência do Direito Penal deve encontrar uma fundamentação positiva para a culpabilidade e a responsabilidade. [10]

2) Em segundo lugar, a culpabilidade, enquanto conceito de exceção, assenta na ideia de presunção de livre-arbítrio e, por conseguinte, em uma presunção de normalidade. As exceções referidas acima, cuja inexistência autorizam a censura penal da culpabilidade, necessariamente afetam a capacidade de compreensão da ilicitude ou a capacidade de autodeterminação do indivíduo, portanto, só se pode dizer que um homem é livre, quando não lhe incidir alguma das causas de exclusão da culpabilidade. De acordo com isso, presume-se "normal" o sujeito em relação ao qual não incidir alguma destas exceções.

Retomando o curso inicial, tem-se que a análise, ainda que sucinta, destes dois aspectos, demonstram a total impossibilidade de se falar de culpabilidade sem livre-arbítrio. Por conseguinte, como bem referido por Günther, o que se extrai do discurso determinista sustentado pela neurociência, é a abolição da culpabilidade e a substituição da pena, por medidas de proteção da sociedade, tais como medidas de segurança, intervenções e terapias (na esteira do preconizado pela défense sociale).

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Pois bem, diante deste panorama, é necessário apresentar uma diretriz que pareça mais prudente, particularmente ante o fato de que inclusive os neurocientistas consideram que, sem que novos aspectos sejam agregados e sem que novos resultados possam ser extraídos das pesquisas, a neurociência deve devolver a questão do livre-arbítrio à humanidade.

A diretriz mais prudente parece ser aquela orientada pelo compatibilismo filosófico [11]. Como bem asseverado por Willaschek, o compatibilismo preconiza que liberdade e determinismo não são conceitos excludentes, mas sim que se complementam, ou seja, são compatíveis.

Para uma melhor compreensão, é necessário observar a distinção contextual efetuada por Willaschek. Entende o autor que a solução para a compatibilidade entre liberdade e determinismo depende da distinção entre um contexto avaliador, no qual nós atribuímos responsabilidade a pessoas por seu fazer, e um contexto explanador, no qual nós explicamos cientificamente a conduta humana. [12]

Para Willaschek, as únicas causas que são relevantes em um contexto avaliador, são aquelas que excluem a responsabilidade, na medida em que elas impedem ou dificultam decisões racionais e sua transposição. Assim, refere que "há uma série de condições excepcionais, como, por exemplo, a falta de maturidade, doenças psíquicas, manipulação externa ou carga emocional extrema, sob as quais as pessoas não são responsáveis pelo seu fazer" [13]. Diferentemente, onde estas condições não existem, tem-se uma pessoa que é responsável por suas ações. Transpondo a questão para o âmbito jurídico-penal, tem-se que as condições negativas da culpabilidade penal dizem respeito às limitações da capacidade de se decidir à luz de razões e contrarrazões e de poder agir de acordo com esta decisão. Disso pode-se extrair o fato de que no entendimento cotidiano e penal, para a responsabilidade – e, com isto, para o livre-arbítrio como seu pressuposto – é necessário não mais do que a capacidade de se decidir segundo a ponderação dos motivos (e de forma "racional") e de poder agir de acordo com isso.

Já em um contexto explanador, todos os fatores causais podem ser relevantes. Assim, na explicação das ciências naturais acerca da conduta humana, também outras causas podem exercer um papel, como, por exemplo, processos metabólicos bioquímicos ou estruturas cerebrais específicas.

A concepção, portanto, parte do fato de que o determinismo implica, na verdade, em que todo acontecimento tem causas suficientes, mas não que todo acontecimento tem causas suficientes que sejam relevantes em um contexto avaliador (no qual atribuímos responsabilidade a pessoas pelo seu fazer) [14]. Isso na medida em que liberdade e responsabilidade não exigem mais do que a ausência de fatores que impedem uma decisão racional (os quais seriam aferidos no contexto avaliador).

Na realidade, a concepção tão só parte da premissa de que, apesar do homem estar determinado (assim como concluíram as recentes pesquisas da neurociência), na ausência de fatores impeditivos, há uma margem de racionalidade que lhe permite tomar decisões livres. Com isso, sob esta perspectiva seria plenamente possível fundamentar positivamente o conceito de culpabilidade, a partir da análise do agir em um contexto avaliador.


Notas

  1. Compare MEZGER, Edmund. Über Willensfreiheit, München: Verlag der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, 1944, p. 3.
  2. Assim como Mezger, também WILLASCHEK, Markus. Die freie Wille – Eine Tatsache des praktischen Leben, in Forschung Frankfurt 04/2005, p. 51, ressalta que "o problema do livre-arbítrio de modo algum é uma descoberta da moderna pesquisa neurológica: os filósofos à época do helenismo questionavam a vontade livre diante de um pano de fundo de um destino universal, e na Idade Média entrou no seu lugar a onipotência e a onisciência divina. Na Modernidade, finalmente, com o advento das modernas ciências da natureza, colocou-se a questão acerca de como nossas ações e decisões podem ser livres se, porém, todo acontecimento na natureza é plenamente determinado por causas naturais?"
  3. Assim BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 357.
  4. A exemplo de, em Portugal, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora 2004, p. 483 e ss., procurando fundamentar, ainda que de forma incipiente, uma concepção de livre-arbítrio; e, na Alemanha, ROXIN, Claus. Strafrecht, AT, Bd. I, München: Beck, 1992, p. 42 e 547 e ss., referindo que a culpabilidade pressupõe o livre-arbítrio, porém, face à indeterminação deste conceito, a questão acerca da sua real existência deve ser deixada de lado; no Brasil, BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit. p. 357 e ss.
  5. Assim WILLASCHEK, Markus. op. cit., p. 51.
  6. Conforme KRÜGER, Jürgen. Hirnforschung und Willensfreiheit, in Inhalt PM, Nr. 420, 2004, p. 27.
  7. KRÜGER, Jürgen. op. cit., p. 27.
  8. D’ÁVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios. Coimbra Editora, 2005, p. 15.
  9. Sobre isso, com detalhes, GÜNTHER, Klaus. Verantwortlich für die eigene Tat? Das Strafrecht und der Schuldbegriff - Eine alte Diskussion mit neuen Impulsen. in Forschung Frankfurt, 04, 2005, p. 26.
  10. Compare HASSEMER, Winfried. "Culpabilidade", tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva, in Revista de Estudos Criminais, 2001, n.º 03, p. 19.
  11. O compatibilismo caracteriza, filosoficamente, a visão oposta ao incompatibilismo. O primeiro, também chamado de "determinismo moderado", consiste em uma teoria segundo a qual a vontade livre e o determinismo são associáveis entre si (tendo como um de seus representantes, o filósofo David Hume). Já o segundo, preconiza que a vontade livre e o determinismo são incompatíveis, aliás, em sua vertente mais rigorosa, chamada de "determinismo acentuado", nem determinismo, nem indeterminismo admitiriam uma vontade livre.
  12. WILLASCHEK, Markus. op. cit., p. 52.
  13. WILLASCHEK, Markus. op. cit., p. 52.
  14. WILLASCHEK, Markus. op. cit., p. 53.
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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Roger. Culpabilidade e livre-arbítrio novamente em questão.: Os influxos da neurociência sobre o Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2193, 3 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13089. Acesso em: 17 nov. 2024.

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