4 Princípios processuais relacionados à prova
A prova é um instituto que se submete a considerável número de princípios processuais, de cunho constitucional e infraconstitucional, a regularem seu cabimento, sua licitude, a forma e o momento de sua produção etc. A seguir, serão brevemente analisados os princípios mais próximos desse instituto, que de alguma forma estejam ligados ao objeto do presente trabalho.
4.1 Princípios processuais como direitos fundamentais
Antes de fazer alusão a alguns desses princípios, porém, é necessário deixar consignado que as pessoas jurídicas também são destinatárias dos direitos e das garantias fundamentais previstos no artigo 5º da CRFB/1988, sendo "[...] beneficiárias do extenso rol de prerrogativas nele fixadas, com as exceções detectadas pela simples leitura dos incisos constitucionais"30.
Cumpre destacar também que a livre iniciativa é um princípio fundamental estatuído no artigo 1º, inciso IV, da CRFB/198831.
Além desses prévios e devidos esclarecimentos, convém lembrar a evolução do Direito desde a supervalorização do individualismo pós-Revolução Francesa ao moderno conceito de interpretação, à luz da lei constitucional, do direito material – mormente as relações privadas – e do direito em seu aspecto formal. Pode-se apontar como marco principal os horrores da segunda guerra mundial, a partir do qual tomou fôlego a utilização da dignidade da pessoa humana como paradigma. Depois disso, os sistemas legislativos, de uma forma geral, passaram a privilegiar os direitos fundamentais, e não foi diferente em nosso ordenamento jurídico32.
Os direitos e as garantias fundamentais, mesmo aqueles estabelecidos em princípios meramente programáticos, vinculam o Poder Público, especialmente os órgãos encarregados da prestação jurisdicional. E porque possuem caráter principiológico, não estão expressos numa lista "numerus clausus". Pelo contrário. Além de incidirem sobre as normas já existentes, dão também sustentação à proteção e à preservação de direitos e de garantias não expressos. Enfim, os princípios fundamentais asseguram "[...] a unidade sistemática da constituição [e] atuam como vetores para soluções interpretativas [...]"33.
Por outro lado, tem-se o conjunto de normas processuais inseridos na CRFB/1988, o denominado "Direito Constitucional Processual". Esses princípios processuais são garantias fundamentais do processo, e devem ser efetivamente aplicados pelo julgador, já que, vistos sob a ótica da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, se traduzem em valores que devem nortear a interpretação e a aplicação de todas as normas do ordenamento jurídico34.
Nesse diapasão, ainda que não se entenda a inversão do ônus da prova como regra de processo, sua decretação na sentença configura obstáculo desproporcional para a efetivação de direitos fundamentais do fornecedor, como a garantia do contraditório e da ampla defesa. Em razão disso, compete ao julgador evitar aplicar essa regra no momento de exarar a decisão.
Nem sempre os efeitos pretendidos pelas normas restam suficientemente evidenciados a partir de uma simples leitura de seu enunciado, mas sua identificação "é, provavelmente, o momento mais importante na construção de sua imperatividade"35. Por essa razão, é necessário, por vezes, investigar mais a fundo o sistema jurídico antes de aplicar a norma, para se ter a exata noção daquilo que pretende o seu enunciado.
Essa questão toma relativa importância quando envolve princípios constitucionais, pois, segundo Oliveira36, cuida-se de "direito constitucional aplicado". Logo, é dever do magistrado dar o máximo de eficácia aos direitos fundamentais (materiais ou processuais), afastando qualquer circunstância irrazoável que porventura atrapalhe sua efetivação.
Como visto, cabe ao julgador utilizar efetivamente as normas constitucionais processuais, não se atendo a tecnicismos, pois, se o processo é indispensável à realização da justiça e promove a pacificação social, deve ser considerado como ferramenta que realiza valores. Não se trata de mera conformação do processo às normas constitucionais, mas de sua utilização no exercício da função jurisdicional.
4.2 Devido processo legal
O devido processo legal é cláusula geral da qual decorrem todas as consequências processuais que garantem às partes um processo e uma decisão justos, dando supedâneo aos demais princípios processuais. Subdivide-se em devido processo legal processual e material. O devido processo legal processual, que ora interessa, é a "possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível", compreendendo o direito de defesa e o contraditório38.
Esse princípio retrata a garantia que a pessoa (física ou jurídica) possui de atuar num processo conduzido por normas previamente estabelecidas, sem desvio do que lhe é de devido. Então, não se concebe que uma decisão cause surpresa à parte ao alterar a regra de distribuição da prova numa fase já adiantada do processo, com o que concorda a jurisprudência39.
4.3 Princípio do contraditório
De acordo com Nery Junior40, o princípio do contraditório confere aos demandantes o direito de "[...] serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos". Com isso, nenhuma decisão judicial pode invadir a esfera jurídica de pessoa que: desconheça o que foi alegado contra si; não participou do processo; ou, ainda, não pôde influenciar de forma eficaz a formação do convencimento do julgador, conforme destaca Didier Júnior41:
"O processo é um instrumento de composição de conflito – pacificação social – que se realiza sob o manto do contraditório. O contraditório é inerente ao processo. Trata-se de princípio que pode ser decomposto em duas garantias: participação (audiência; comunicação; ciência) e possibilidade de influência na decisão. Aplica-se o princípio do contraditório, derivado que é do devido processo legal, nos âmbitos jurisdicional, administrativo e negocial".
O contraditório pressupõe o direito de fazer alegações, de produzir provas e de participar da produção das provas requeridas pelo adversário ou determinadas de ofício pelo julgador.
Mas, se porventura existirem desigualdades entre as partes, estas devem ser diminuídas, porque ao litigante é conferido o direito de "[...] exigir a adoção de todas as providências que possam ter utilidade na defesa dos seus interesses, de acordo com as circunstâncias da causa e as imposições do direito material"42, pois conforme Nery Junior, o contraditório decorre do "princípio da paridade de armas", e visa a conferir às partes mesmas oportunidades e mesmos instrumentos processuais43.
Entretanto, embora o consumidor goze de tratamento especial pelo Estado, proveniente da necessidade de corrigir uma desigualdade de fato na relação intersubjetiva mantida com o fornecedor, em princípio o magistrado não pode diminuir essa diferença conferindo outras prerrogativas que não as já estabelecidas, ou sobrecarregando a "parte mais forte" de forma indevida, sob pena de cometer injustiças.
Segundo Greco44 "[...] esse direito à prova não pode ser desvirtuado por ficções ou presunções jurídicas absolutas, nem tornar o acesso à prova excessivamente difícil ou impossível através de presunções legais, ainda que relativas".
Se o julgador inverte o ônus de provar na sentença, não há a entrega de uma tutela justa, sendo desrespeitado o contraditório porque não foi conferido à parte tempo hábil para se desincumbir do encargo. Por isso, o princípio do contraditório é melhor observado quando decretada a inversão na fase instrutória.
4.4 Ampla defesa
A ampla defesa decorre do contraditório e se constitui em garantia constitucional que confere ao demandante total liberdade de alegar fatos e de propor provas na defesa de seus direitos. Portanova45 ensina que a concessão do direito a uma defesa abrangente e a uma defesa técnica não configura ato de generosidade do legislador ou, em última instância, do julgador, mas garantia essencial de presença obrigatória num Estado democrático.
Para que o demandante exerça seu direito de defesa da forma mais ampla possível, deve ter permissão para provar os fatos que alega e a improcedência daquilo que lhe é imputado por seu "ex adverso", o que confere à prestação jurisdicional um caráter mais justo. Para Greco é vedado impor limites desarrazoados à manifestação da parte ou a utilização de tecnicismos que sejam obstáculos à apresentação da defesa – não pode a parte ser prejudicada no exercício de seus direitos e nem submetida a barreiras impostas contra sua vontade46.
A inversão do ônus da prova deve ser decretada "em momento que permita àquele que assumiu o encargo livrar-se dele"47, entendimento esposado pela jurisprudência48:
"REVISÃO CONTRATUAL. INSTITUIÇÃO BANCÁRIA. APLICABILIDADE DO CDC. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ARTIGO 6º, VIII, DO CDC. [...] Fixação do momento da inversão do ônus da prova. O momento oportuno e tecnicamente correto para o juiz determinar a inversão probatória é o que antecede a instrução do feito. AGRAVO PROVIDO".
Como se vê, inverter o ônus da prova quando o fornecedor já não pode se manifestar é expediente flagrantemente contrário à garantia da ampla defesa, pois nessa etapa processual não é mais possível contraditar aquilo que lhe imputou o consumidor.
4.5 Acesso à justiça
O acesso à justiça, ou princípio da inafastabilidade, é garantia conferida a toda pessoa, física ou jurídica, que pretende levar à apreciação dos tribunais qualquer direito que, segundo seu entendimento, o faça merecer a tutela jurisdicional adequada49. Segundo Greco50, porém, essa garantia "[...] não se esgota no direito de provocar o exercício da função jurisdicional, [uma vez que também abrange o direito de] influir na atividade jurisdicional".
Para Godinho51, as regras que disciplinam a produção da prova assumem relevante papel no resultado final da demanda, já que "[...] se o cumprimento do ônus probatório pode significar a tutela do direito reclamado em juízo, parece-nos intuitivo que as regras que disciplinam sua distribuição afetam diretamente a garantia do acesso à justiça", pois há influência direta no convencimento do julgador.
Há que se considerar que o ato de julgar, em última instância, nada mais é do que a incidência de normas jurídicas aos fatos afirmados e provados (ou não) perante o Judiciário. E se a prova produzida em juízo influencia na formação do seu convencimento, o julgador não pode postergar para a sentença a decisão sobre a inversão desse ônus, argumentando que se trata de regra de julgamento, pois a parte sobre quem recair o encargo não mais poderá se manifestar. É necessário permitir às partes demandantes que produzam as provas em momento adequado, se assim desejarem. Do contrário, também será negado o direito de acesso à justiça.
O correto manejo da técnica processual não depende apenas de previsão formal na lei. Assim, se os instrumentos disponíveis para a regulamentação da instrução do processo não forem utilizados de forma a se adequarem às exigências necessárias à prestação de uma tutela efetiva do direito material, também restará violado o acesso à justiça52.
4.6 Princípio da adaptabilidade do procedimento
O princípio da adaptabilidade procedimental é espécie do gênero princípio da adequação, que tanto pode ser um princípio informador, a estabelecer de forma abstrata o procedimento a ser seguido; quanto, numa perspectiva instrumentalista, um princípio que permita a realização de um procedimento menos gravoso, a viabilizar uma melhora na consecução dos fins colimados, e a conformar o processo à situação concreta posta em juízo.
É sob esse último aspecto que desponta o princípio da adaptabilidade do procedimento, segundo o qual, o magistrado, em razão das peculiaridades apresentadas na demanda, deve efetuar reparações no procedimento com o intuito de adequá-lo ao caso concreto e evitar chancelar inconstitucionalidades, consoante depreende da lição de Didier Júnior53:
"Nada impede, entretanto, antes aconselha, que se possa previamente conferir ao magistrado, como diretor do processo, poderes para conformar o procedimento às peculiaridades do caso concreto, tudo como meio de mais bem tutelar o direito material. Também se deve permitir ao magistrado que corrija o procedimento que se revele inconstitucional, por ferir um direito fundamental processual, como o contraditório (se um procedimento não previr o contraditório, deve o magistrado determiná-lo, até mesmo ex officio, como forma de efetivação desse direito fundamental). Eis que aparece o princípio da adaptabilidade".
Se apenas no momento de prolatar a sentença o julgador vislumbra que deve inverter o ônus da prova, cumpre-lhe adaptar o procedimento e abrir prazo para o fornecedor produzir a prova necessária, sob pena de impor obstáculo à defesa da parte nos autos. Após, deve também abrir prazo para que o consumidor se manifeste sobre ela, observando o contraditório54.
Por outro lado, vale consignar, embora não possa se afastar totalmente das formalidades impostas pela lei, o julgador, verificando a ameaça de uma inconstitucionalidade, deve manejar o processo de forma a evitar a ocorrência do vício, preservando a finalidade maior do Direito, que é a realização da justiça.
Através da adaptabilidade o julgador cria técnicas que conformam ou corrigem o procedimento. É o caso da inversão da regra do ônus da prova estabelecida no artigo 6º, inciso VIII, do CDC, que representa um desvio do procedimento estabelecido originalmente.
Tal expediente, apesar de previsível e permitido, imputa ao julgador o dever de informar aos demandantes sua intenção, para que possam se comportar no processo de acordo com as novas regras, o que preserva o contraditório, uma vez que "pensar o contrário seria permitir surpresas processuais, em afronta direta aos princípios do contraditório e da cooperação"55. Sua atuação, porém, deve sempre respeitar os limites da razoabilidade.
4.7 Princípio da cooperação
Sem previsão expressa no ordenamento jurídico, a cooperação, que decorre da boa-fé e do contraditório, segundo Didier Júnior: "orienta o magistrado a tomar uma posição de agente-colaborador do processo, de participante ativo do contraditório e não mais a de um mero fiscal de regras".
O dever de cooperar possui como consectários os deveres de esclarecer, de consultar, e de prevenir56; e esses deveres são também aplicáveis ao juiz, que é um sujeito do contraditório, pois as partes do processo devem cooperar para a melhor prestação jurisdicional possível.
Nesse diapasão, o anúncio de que o ônus da prova será invertido deve ser feito em tempo hábil, para que as partes, prevenidas, não sejam surpreendidas e possam se armar para produzir provas. É nesse sentido a crítica de Theodoro Júnior57:
"A não ser assim, ter-se-ia uma surpresa intolerável e irremediável, em franca oposição aos princípios de segurança e lealdade imprescindíveis à cooperação de todos os sujeitos do processo na busca e construção da justa solução do litígio. Somente assegurando a cada litigante o conhecimento prévio de qual será o objeto da prova e a quem incumbirá o ônus de produzi-la é que se preservará ‘a garantia constitucional da ampla defesa’".
A preocupação com a surpresa no processo; a relação dessa surpresa com as normas processuais; e a vinculação dessas normas à Constituição não são atuais, pois Oliveira (apud MENDES JÚNIOR)58 lembra que no século XIX a doutrina brasileira antecipara entendimento que influenciaria a doutrina jurídica da Europa no século XX:
"As leis do processo são o complemento necessário das leis constitucionais; as formalidades do processo as atualidades das garantias constitucionais. Se o modo e a forma da realização dessas garantias fossem deixados ao critério das partes ou à discrição dos juízes, a justiça, marchando sem guia, mesmo sob o mais prudente dos arbítrios, seria uma ocasião constante de desconfiança e surpresas".
A inversão do ônus da prova estabelecida no artigo 6º, inciso VIII, do CDC atribui encargo não conhecido previamente pelos demandantes porque não deriva exclusiva e diretamente da lei. Há previsão apenas da mera possibilidade de inversão, a qual será definida a partir da manifestação do julgador nos autos acerca da presença ou não dos pressupostos.
Deixar para se manifestar sobre a inversão do ônus de produzir provas no momento de prolatar a sentença configura uma surpresa, que poderá inclusive prejudicar o consumidor, caso não seja decretada porque ausentes os requisitos necessários à inversão. Alertada em tempo hábil, a parte pode constatar falha do magistrado ao analisar os requisitos e tomar medidas em defesa de seus direitos para tentar reverter a situação ainda na primeira instância, e não apenas em sede de recurso. Logo, é dever julgador alertar aos demandantes qualquer medida que tome no sentido de alterar o andamento normal do processo.
4.8 Princípio da eventualidade
À luz do objeto do presente estudo, o princípio da eventualidade estabelece que as alegações, os requerimentos e a produção de atos e de provas devem ocorrer na fase processual a que estão subordinados59.
A importância desta norma está ligada à natureza do sistema processual brasileiro, que é dividido em fases: se ultrapassado o momento processual (fase) sem que o demandante realize os atos a ela atinentes, essa falta implicará necessariamente na preclusão, que nada mais é do que uma penalidade aplicada contra quem burla o sistema da eventualidade.
Como a prova deve ser produzida em fase processual apropriada – instrução do processo –, e o artigo 6º, inciso VIII, do CDC estabelece uma regra de processo60, não há que se atribuir ao fornecedor, já na fase da prolação da sentença, o ônus de provar algo que não estaria definido como encargo seu desde o início, pois restaria violado o devido processo legal e seu consectário, o princípio da eventualidade, porque encerrada a fase processual pertinente.
4.9 Princípio da motivação das decisões
Não se pode determinar a inversão do ônus da prova automaticamente, cabendo ao julgador demonstrar os motivos que o levaram a reconhecer a hipossuficiência do consumidor e/ou a verossimilhança de suas alegações.
As regras que distribuem o ônus da prova são importantes para a prestação jurisdicional e também para estabelecer a pacificação social. Ademais, a efetiva distribuição do encargo probatório guarda influência direta com o conhecimento do vencedor da demanda. Com isso, a decisão deve estar adequadamente fundamentada, pois, sabedor dos motivos que convenceram o julgador, o fornecedor insatisfeito e que se sentir lesado poderá utilizar o direito de recorrer.
4.10 Princípio da imparcialidade do juiz
Se o julgador inverte o ônus da prova sob o singelo fundamento de que a lei é favorável ao consumidor, em última análise, viola-se o princípio da imparcialidade do juiz, pela evidente ausência de equidistância em relação a uma das partes e aos interesses da mesma, conforme esclarece Greco61:
"A justiça não pode estar a serviço de uma classe, de um grupo, de um segmento ou de uma corrente de opinião existente dentro da sociedade, ainda que majoritária, mas a serviço da liberdade e da dignidade humana. O juiz não é o tutor do interesse público, mas o guardião dos direitos reconhecidos no ordenamento jurídico".