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"Nos nossos dias não há crianças, mas moças de onze anos".

A apresentação do voto paradigma no HC 73.662-9 e a incorporação de uma abordagem patriarcal na atividade jurisprudencial

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29/07/2009 às 00:00
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3.Considerações a partir da exposição do tema e demarcação da inquietude:

O ensaio apresentou no voto do Ministro Relator Marco Aurélio Mello no HC 73.662-9 o desnudamento a de um discurso patriarcal fortemente presente nos fundamentos da decisão, a partir incorporação da abordagem de gênero dentro da atividade jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de uma movimentação em torno das aproximações e repulsas entre direito e moral.

Para tanto, foi apresentado o caso, envolvendo o julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de um encanador mineiro de 24 anos (à época), condenado por estupro na modalidade de violência presumida em face de uma menor de 12 anos de idade.

Apresentou-se, posteriormente, a estrutura integral do voto, contextualizando o caso dentro de uma modificação dos costumes, fortemente motivada pelos meios de comunicação, e, a partir daí, foi apontado o conflito entre a preservação de liberdade individual, materializada na discussão sobre a incidência, ou não, da lei penal incriminadora em face do agente de 24 anos e a dupla tutela de proteção incidental em relação à vítima, menor de 12 anos: sistema de proteção que lhe confere guarda o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei número 8.069/90) e a intersecção de condição de mulher alegada pelo Ministro.

Considerou-se, a partir daí, fortemente presente no voto condutor, um hiato fincado no descompromisso com a expressão plúrima acima descrita, revelando, por outra sorte, uma visão patriarcal, e marcadamente preconceituosa que redundou numa visão que não incorpora as verdadeiras dimensões históricas e políticas que cercam o conceito de gênero dentro de um primado comunistarista.

Percebeu-se o reforço a um modelo patriarcal de institucionalização da dicção do direito erigida à categoria de supra-poder, marcado por uma percepção moral puramente fincada no juízo valorativo estritamente pessoal, que buscou um fundamento de legitimidade na composição de um argumento de cunho moral – e individual hábil a sustentar a decisão, ao mesmo tempo em que representou uma quebra de sentido republicano de prevalência ao Legislativo como centro irradiador de soberania popular, já que a decisão, por assim dizer, dissociou-se contra legem do que foi conferido pelo primado popular, podendo acenar para uma autocracia conferida ao Judiciário.

Não se está, por agora, adotando um posicionamento de expurgo de uma re-orientação moral no âmbito das decisões judiciais, pois esse não é o objetivo do ensaio, mas, antes, provocar a reflexão sobre toda a trajetória incongruente que, ao final, sustentou moralmente (na moral androcêntrica) o afastamento da aplicação da lei, denunciando, assim, num sistema ainda em democratização, no qual se discutem as funções e as inter-relações dos poderes da República.


Referências bibliográficas:

CASTRO, Marcus Faro. Política e Relações Internacionais: Fundamentos Clássicos, Brasília, Ed. UnB, 2005.

CITTADINO, Gisele Guimarães. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2000.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã.

Saffioti Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Direito: São Paulo, Lany/Loyola, 2002.


Notas

  1. A partir de alguns conceitos elaborados por Heleieth I. B. Saffioti em "Gênero, patriarcado e violência" (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004).
  2. Em recente palestra aqui em Brasília, por ocasião do II Seminário Nacional de Psicologia e Direitos Humanos, o filósofo, sociólogo, advogado e educador Edgar Morin advertiu para essa importante característica da modernidade, mencionando a relevância de se discutirem possibilidades como caminhos plúrimos de acesso ao conhecimento, e não doutrinas ou idéias fechadas que, a pretexto de tentarem resolver os dilemas da humanidade, apenas ratificariam e fomentariam a discriminação e o preconceito. É com esse substrato de alma que o percurso aqui será desenvolvido.
  3. Lembrando que o art. 213 faz referência a "constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça", enquanto o art. 224 "a" menciona: "presume-se violência, se a vítima: (...) a) não é maior de 14 (catorze) anos".
  4. Expressão descrita no voto condutor, disponível em versão digitalizada: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(73662.NUME.%20OU%2073662.ACMS.)&base=baseAcordaos, acesso em 21 de julho de 2009.
  5. Heleieth Iara Bongiovani Saffioti é livre docente na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, atuano principalmente nos seguintes temas: Mulher, Gênero, Educação, Violência, Trabalho, Epi, Sociologia do Conhecimento, Sociologia do Desenvolvimento, Epistemologia. Curriculum lattes disponível em http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=K4780353J6, acesso em 21 de julho de 2009.
  6. Importante frisar que o tema gênero e sua relação com patriarcado não se exaure nesse ensaio, porquanto inúmeros os marcos teóricos dentro do feminismo que explicam a estruturação de toda uma realidade discriminatória da mulher. O presente ensaio contenta-se com a exposição do tema no voto condutor.
  7. A utilização de letras minúsculas para a designação de "direito" ou "direito penal" justifica-se na predileção pelo questionamento em relação à cientificidade de tais ramos do conhecimento humano, bem como à indagação quanto à unidade epistemológica. Não é objeto do presente ensaio o exaurimento do tema, mas por uma questão de precisão na utilização dos verbetes, relevante a observação, para que não denote simples displicências gráfica ou ortográfica.
  8. Importante frisar que a situação mencionada refere-se à sociedade da época de elaboração do Código Penal de 1940, pois o fragmento acima veio logo a seguir de: "(...)Tanto não se diria nos idos dos anos 40, época em que exsurgia, glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo, o nosso vetusto e ainda vigente Código Penal. Àquela altura, uma pessoa que contasse com doze anos de idade era de fato considerada criança e, como tal, indefesa e despreparada para os sustos da vida".
  9. Mais uma vez vale a ressalva em relação ao julgado não ter por objeto o controle concentrado de constitucionalidade, pois, mesmo que a decisão não tenha abordado a dimensão explícita de prevalência de valores em relação a conflitos trazidos diretamente ao Supremo Tribunal Federal, o caso em exame ofereceu rico, vasto e exuberante material para que as considerações sobre o conflito acima explicitado pudessem vir à tona.
  10. Mesmo que o Código Penal de 1940 tenha sido engendrado em uma conjuntura política nitidamente antidemocrática (governo Vargas), o texto foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que lhe conferiu fundamento de validade e o incorporou no ordenamento jurídico como expressão democrática coerente com o primado republicano de estabelecimento de liberdades.
  11. Androcentrismo é a compreensão de mundo a partir do universo masculino, que se coloca como eixo central de orientação. Quando o androcentrismo se materializa em um regime de dominação-exploração, tem-se o modelo patriarcal descrito anteriormente, no qual a discriminação em face da mulher encontra-se presente em vários momentos, desde a elaboração da técnica jurídica, até a aplicação do direito ao caso concreto.
  12. Motivação esta que se permite inferir pela referência feita pelo Relator ao Código Penal "liberal" de 1940, ao mesmo tempo em que prestigia a invocação de uma mudança evolucionista nos costumes e no comportamento humano influenciado pela mídia.
  13. Para a proposta do presente ensaio, Heleieth Saffioti conceitua gênero: "construção social do masculino e do feminino" (2004, p. 45), sendo, portanto, uma categoria histórica, que se concebe em várias instâncias: símbolos culturais, conceitos normativos, organizações, identidade subjetiva. A partir do conceito de gênero, a autora apresenta a percepção de patriarcado, que implica uma relação desigual de regime de exploração-dominação das mulheres pelos homens, desencadeadora, em vários segmentos e instituições (inclusive no direito) do forte sexismo – apartação em prol do masculino – onde a vítima é transformada em algoz e julgada simbolicamente por ocasião da absolvição do acusado.
  14. A propósito do tema, o diálogo com o texto da Henrique Cláudio de Lima Vaz despertou uma inquietude ímpar, materializada na proposta de superação de uma universalidade nomotético em que a visão divinizada de filiação a uma ordem cósmica para uma universalidade hipotética que romperia com uma compreensão apriori de um fundamento, para abrigar a exigibilidade de uma busca de fundamento baseado da dedução de conseqüências (2002, p. 214). Interessante frisar, nesse momento, que a noção de universalidade hipotética fundamentaria uma separação entre política e ética (bem como suas respectivas relações com o direito), a partir de uma reformulação do conceito de Physis (a vinculação entre homem e cosmos) que, para o autor, baliza todo o direito natural moderno e, por resultado, irradiaria para as formulações de aplicação do direito um fundamento de racionalidade que, mesmo em antagonismo à moral, encontra substrato em postulados de alto grau de abstração que seguiriam o modelo galileiano-newtoniano. O ponto central para a proposição de novos paradigmas que possam encontrar fundamentos para a incorporação de um discurso feminista – ou, pelo menos, de reconhecimento em termos de gênero – deverá construir uma ponte para outro modelo de ciência, aproveitando as recentes descobertas em termos de modelos quânticos, nos quais a relação com a Natureza (Physis) retorna com força total, rediscutindo-se a fragmentariedade (dualidade) que provocaria uma cisão entre direito e ética, filosofia e moral). Talvez, nesse sentido, mais adiante, possa surgir uma proposta que se coloque entre os dois contrapontos de relações entre moral e direito. Com essa angústia que o percurso pela disciplina Filosofia Política e direito constitucional foi realizado. Eis a dúvida, que não será, por certo, respondida aqui.
  15. Seria o retorno – com nova roupagem – da percepção de universalidade nomotética que outrora transformava o intérprete num verdadeiro oráculo?
  16. A perspectiva psicanalítica trazida no texto "Judiciário como superego da sociedade" de Ingeborg Maus revela e reforça o voto condutor, porquanto a figura paterna se projeta na função de moralidade pública que se revela por trás da decisão.
  17. Basta observar no caso concreto tratar-se de uma criança de 12 anos que foi julgada de acordo com uma reta de moralidade sexual.
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Sobre a autora
Alessandra de La Vega Miranda

mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília, professora universitária, advogada criminalista em Brasília (DF),Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB, Pesquisadora do Grupo de Ações Afirmativas e Direitos Humanos na Diversidade - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Alessandra La Vega. "Nos nossos dias não há crianças, mas moças de onze anos".: A apresentação do voto paradigma no HC 73.662-9 e a incorporação de uma abordagem patriarcal na atividade jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2219, 29 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13239. Acesso em: 25 abr. 2024.

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