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"Nos nossos dias não há crianças, mas moças de onze anos".

A apresentação do voto paradigma no HC 73.662-9 e a incorporação de uma abordagem patriarcal na atividade jurisprudencial

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29/07/2009 às 00:00
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"Nos nossos dias não há crianças, mas moças de onze anos": a apresentação do voto paradigma no HC 73.662-9 e a incorporação de uma abordagem patriarcal na atividade jurisprudencial à luz das relações entre direito e moral"

SUMÁRIO: 1.Apresentação do caso trazido a julgamento no HC 73.662-9 e breve consideração sobre o percurso de abordagem. 2.Exposição do tema: essenciais contornos e conteúdos da questão jurídica apresentada no voto condutor do HC 73.662-9 a partir da atividade jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal Federal. 3. Considerações a partir da exposição do tema e demarcação da inquietude:. 4.Referências bibliográficas:. ANEXO


1.Apresentação do caso trazido a julgamento no HC 73.662-9 e breve consideração sobre o percurso de abordagem

Mesmo não tendo sido uma decisão exercida em nível de controle de constitucionalidade, o caso escolhido consolidou-se como paradigma em relação à relativização da presunção de violência, pois, a partir de então, situações similares puderam receber o mesmo tratamento por parte daquela Suprema Corte, além de a jurisprudência ter sido fortemente seguida em nível de instância ordinária, mesmo não sendo o caso de vinculação obrigatória.

Sem deixar de mencionar, ainda, a riqueza de material que a decisão forneceu – e ainda fornece - para o estudo na área de gênero com incomum enfrentamento, já que o Supremo Tribunal ainda não se posicionou diante de uma questão mais recente – porém, não menos polêmica: as irrestritas críticas à Lei número 11.340/06, conhecida por Lei "Maria da Penha".

A decisão motivadora do voto do Ministro Relator produziu considerável mudança no entendimento que o Supremo Tribunal vinha adotando sobre a presunção de violência no caso de estupro de menor de 14 anos, porque, até então, tal presunção era compreendida e aplicada irrestritamente, sendo considerada uma presunção absoluta segundo a doutrina, de acordo com um critério etário estabelecido na lei e, portanto, derivada de decisão política do Legislativo.

Com o voto, porém, esboçaram-se algumas interessantes linhas sobre as relações entre moral e direito observadas na atividade jurisprudencial que articulou o mencionado voto, provocando importante debate sobre as linhas fronteiriças da atuação do Judiciário diante de um modelo clássico de separação de poderes que subordina toda a atividade estatal (e, portanto, a dicção de direito) à legislação.

O debate central se expõe, assim, no conteúdo do voto condutor, que aparentemente se fundamentou em argumentos balizados, tomados por razoáveis segundo critérios de racionalidade, coerentes e juridicamente articulados em torno alguns desses postulados de salvaguarda de direitos fundamentais que, por outro lado, podem expor e evidenciar um contra-senso à idéia de democracia na qual inexistiria uma prevalência de poderes, mesmo ao argumento de inovação interpretativa da lei penal que, segundo o Relator, "cede à realidade" [04].

Esse é um dos elementos centrais da motivação do voto, despontando a necessidade de melhor compreensão e destaque, numa abordagem jus-política em sua dimensão constitucional, que incorpora o colorido conceitual apresentado por Heleieth Saffioti [05] em relação aos conceitos de gênero e patriarcado [06].

Importante considerar, dentro disso, que a abordagem jurídico-penal não está incorporada ao desenvolvimento do tema como elemento principal e imprescindível, pois o desmembramento dogmático no âmbito do direito penal [07], bem como seus reflexos para o deslinde do caso, estabeleceu-se como minus no voto condutor, do qual se extrai a forte imbricação valorativa de "indexação" moral do comportamento da vítima a uma expectativa nítida de um modelo patriarcal, sendo tarefa contraproducente em relação aos objetivos desse ensaio.

Para tanto, importante a reprodução integral dos fragmentos do voto condutor para que não se incorra no argumento de escolha arbitrária de elementos de análise no espaço amostral.

O voto condutor é bem sucinto, composto por pontuais e esclarecedoras seis páginas que estão dispostas para consulta como anexo ao ensaio. A veiculação dos argumentos – pontuados em seqüência – foi imprescindível para se verificar, ao final, se o resultado do raciocínio jurídico incorporado pela dogmática penal (erro de tipo e absolvição do acusado) constitui resultado de uma imiscuição moral dentro da demarcação racionalizada em nível de formalismo jurídico-penal.

Seguindo esse percurso metodológico, o voto paradigma revela a compreensão do Relator sobre a necessidade de ajuste da legislação às mudanças experimentadas pela sociedade, pontuando a modificação dos costumes nas últimas décadas, produzida pela divulgação midiática e maciça de informações, feita sem "medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças":

Portanto, é de se ver que já não socorre à sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e, em algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos. Com certeza, o conceito de liberdade é tão discrepante daquele de outrora que só seria comparado aos que norteavam antigamente a noção de libertinagem, anarquia, cinismo e desfaçatez.

Alfim, cabe uma pergunta que, de tão óbvia, transparece à primeira vista como que desnecessária, conquanto ainda não devidamente respondida: a sociedade envelhece; as leis não?

Encerrando esse primeiro ponto de fundamentação do voto, o Relator prosseguiu ponderando a necessidade de acompanhamento da interpretação da lei ao que compreende como sendo uma "evolução" nos "costumes":

Ora, enrijecida a legislação – que, ao invés de obnubilar a evolução dos costumes, deveria acompanhá-la, dessa forma protegendo-a – cabe ao intérprete da lei o papel de arrefecer tanta austeridade, flexibilizando, sob o ângulo literal, o texto normativo, tornando-o, destarte, adequado e oportuno, sem o que o argumento da segurança transmuda-se em sofisma e servirá, ao reverso, ao despotismo inexorável dos arquiconservadores de plantão, nunca a sociedade que se quer global, ágil e avançada – tecnológica, social e espiritualmente.

Os três fragmentos acima descritos forneceram para o Relator o argumento de obsoletismo da lei penal diante de uma "evolução" experimentada pela sociedade, acarretando, por parte do intérprete, a necessidade de sopesamento e flexibilização da lei, para adequá-la, por assim dizer, aos "costumes" dos novos tempos.

E quais seriam, especificamente no caso concreto, as novas inspirações, os novos valores a embalar tamanha mudança na sociedade cambiante? Em outro momento do voto fornece a resposta:

(...) não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão, são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionado sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pelas dessemelhanças. Assim é que, sendo irrestrito o acesso à mídia, não se mostra incomum reparar-se a precocidade com que as crianças de hoje lidam, sem embaraços quaisquer, com assuntos concernentes à sexualidade, tudo de uma forma espontânea, quase natural.

Os novos costumes seriam defluência da propalação maciça de informações midiáticas que não são sequer selecionadas de acordo com critérios satisfaçam expectativas e exigências da pluralidade que confere sentido à dessemelhança mencionada no voto, característica peculiar da sociedade brasileira, sensivelmente marcada por coletividades, grupos e etnias que materializam uma riqueza cultural e, portanto, valorativa.

Mais à frente, fechando o ciclo, o paradigma sintetiza:

Ora, passados, mais de cinqüenta anos – e que anos: a meu ver, correspondem, na história da humanidade, a algumas dezenas de séculos bem vividos – não há que se igualar, por absoltamente inconcebível, as duas situações [08]. Nos nossos dias não há crianças, mas moças de doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definida a ponto de vislumbrarem toda a sorte de conseqüências que lhes pode advir. Tal lucidez é que de fato só virá com o tempo, ainda que o massacre da massificação da notícia, imposto pela mídia que se pretende onisciente e muitas vezes sabe-se irresponsável diante do papel social que lhe cumpre, leve à precipitação de acontecimentos que só são bem-vindos com o tempo, esse amigo inseparável da sabedoria.

Desponta do fragmento o substrato rico e fértil para a abordagem em torno de uma proposta do presente ensaio, podendo ser inferido do paradigma o conflito entre a preservação de liberdade individual, materializada na discussão sobre a incidência, ou não, da lei penal incriminadora em face do agente de 24 anos e a dupla tutela de proteção incidental em relação à vítima, menor de 12 anos: sistema de proteção que lhe confere guarda o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei número 8.069/90) e a intersecção de condição de mulher alegada pelo Ministro.

Essa dicotomização conflitual remonta à discussão sobre gênero, envolvendo, assim, múltiplos valores, como liberdade, dignidade, integridade física, mental, moral e espiritual. Dentro disso, quais as relações visíveis entre direito e moral na atividade jurisprudencial realizada pelo Supremo Tribunal Federal naquele importante julgado? Qual seria o papel ali realizado pela Corte no modelo político brasileiro?

Parece transparecer num primeiro momento a sedução de uma compreensão político-filosófica liberal de dimensão interpretativa da aplicação da lei penal em face do sopesamento constitucional dos valores dentro do conflito acima descrito [09], uma vez que foram priorizados direitos fundamentais circundantes ao acusado, principalmente em relação à liberdade de ir e vir ameaçada pela coercibilidade da lei penal que dele estava tão próxima.

Aplicou-se, para tanto, um raciocínio jurídico que respaldasse a tese de absolvição: erro de tipo em relação à presunção de violência. O acusado, diante de uma situação em que julgou estar diante de uma "moça" de 16 anos, teve relações sexuais com ela a partir do consentimento, não considerando, portanto, que se tratava de uma criança.

A proteção à liberdade do acusado a partir de uma subsunção do caso ao império da lei ainda fica bem evidente no aditamento feito pelo Ministro em seu voto, invocando a chancela constitucional na previsão do art. 226 em face do casamento do réu, com a conseqüente constituição de núcleo familiar.

O voto parece ter incorporado, assim, uma interpretação que, ao final, com a absolvição, possibilitou ao réu a realização de seu projeto de vida pessoal, em consonância à compreensão liberal que motiva uma concepção de justiça garantidora da autodeterminação dos indivíduos e delimitadora da atuação estatal, compatível com uma organização política republicana de ponderação nas atividades empreendidas pelos poderes regrados pela lei, que estabelece regramentos e limites à liberdade e autonomia individuais.

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Esse ponto, em especial, sinaliza para a compreensão do que Gisele Citadino bem expõe em sua obra, ao correlacionar a primazia que os liberais conferem aos direitos fundamentais, prestigiando-se a autonomia privada, ao mesmo tempo em que se assegura a configuração de um Estado neutro – no caso, Estado-juiz, guardião constitucional – que se funda na restrição conferida pelos direitos fundamentais à legislação democrática (2000, p 06).

Reunindo-se os elementos do voto, não se pode deixar de chamar a atenção para o relevo que o Relator conferiu à dimensão da autonomia privada que se estabeleceu no consentimento mútuo para o estabelecimento da relação sexual, partindo da premissa que a menina de doze anos poderia anuir e, assim fazendo - como expressão de vontade - o sexo entre ambos poderia, como, de fato, foi, quedar legitimado pela flexibilização da uma lei penal.

Curioso observar, nesse sentido, anterior – e paradoxal - manifestação do Relator em relação ao Código Penal de 1940 [10], que despontava, segundo o Ministro, "glorioso e como símbolo da modernidade e liberalismo" e, no calor da atualidade, "vetusto" para regrar a cambiância dos costumes. Porém, a sedução ao argumento de constituir o voto uma demonstração inequívoca de compromisso com uma dimensão comunistarista queda ao vento.

Mesmo que o voto do Ministro tenha prestigiado a referência à mudança de "valores" e de "costumes" presentes na sociedade – elementos aferidores de uma possível acepção comunitarista – o exercício jurisprudencial nele formado não enfrentou o tema no plano de percepção (e exposição no voto) da concretude que revela uma sociedade composta por grupos que se aglutinam em torno da pluralidade de idéias, valores e crenças presentes na comunidade.

Assim, longe de revelar em sua interpretação um conteúdo específico e claro que preencha o significado das palavras "valores", "costumes" e "evolução", o voto não trouxe inovação no sentido de se firmar como argumento juridicamente relevante para fundamentar, posteriormente, a absolvição do acusado como resultado de comprometimento com expectativas de grupos e coletividades, já que o acusado não está sendo considerado de maneira relacional, dentro de um grupamento específico.

Ensaiando esbarrar no universalismo platônico o Relator menciona, no plano abstrato e homogeneizante, os elementos acima descritos, sem, contudo, atentar para a inserção histórica, política e social do assunto numa coletividade tão axiologicamente diversificada como a brasileira.

Quando arriscou fazê-lo, trouxe para o voto a superposição entre direito e moral a partir de uma forte carga androcêntrica [11], na predileção por uma interpretação que não atentasse para o posicionamento da vítima como titular de direitos, bastando perceber o silêncio do voto em relação a isso, já que agrega em seu conteúdo a valoração do comportamento da menina.

O universalismo platônico revela-se ali no fundamento de um ideal abstrato de bem comum como ponto de partida para o estabelecimento de uma ordem social, conquanto o governante - e, no anacronismo de se considerar, para efeitos de alcance do conceito, o intérprete da lei: o Ministro do Supremo Tribunal Federal - também se preordene naquele fundamento, na advertência de Marcus Faro de Castro, em sua leitura de Platão (2005, p. 22).

De fato, a menção a "valores", "evolução" e "costumes" aparentemente pode induzir a uma expressão de concretude e, portanto, em perfeito alinhamento com a compreensão particularista e pluralista de Aristóteles - a respeito do particularismo aristotélico, (FARO, 2005, p. 25) - já que é feita a referência à sociedade atual, cambiante e pulsátil, que se espelha na irradiação comportamental realizada indiscriminadamente pela mídia.

Um importante equívoco, porém, reside na mera declinação dos enunciados sem a capitulação, em concreto, donde se extrai a diversidade que colore e dá sustentação ao significado do que vem a ser, na compreensão do Ministro, os mencionados elementos.

Mesmo que aparentemente a referência expressa no voto sobre os valores e costumes em evolução na sociedade brasileira tenha balizado o entendimento do Relator com a pretensão de se firmar numa acepção plúrima [12], nada se depreende dali a respeito de um conteúdo que aponte a diversidade, marca maior de um compromisso de interpretação comunitarista.

Sem deixar de mencionar – de acordo com os objetivos firmados na introdução – a indiferença no voto paradigma em relação à outra titular de direitos: a dupla tutela de proteção em relação à vítima, menor de 12 anos que, de um lado, mesmo sendo sujeito e titular de todo um sistema de proteção conferido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei número 8.069/90) à época do voto, não teve consolidada em seu favor a interpretação que lhe conferisse, no plano da concretude de sua infância regrada por aquele diploma legal, a efetividade de uma decisão que a tenha prestigiado sua infância.

No sopesamento, portanto, entre duas dimensões de expressão de liberdade individual que, a rigor, não entrariam sequer em conflito – dada a prevalência em face da criança e do adolescente em face da vulnerabilidade – optou o voto pela predileção, pura e simples, da tutela de liberdade de ir e vir, com a restrição quanto à intervenção penal do Estado.

Ao contrário e, num segundo momento, o status legalmente atribuído à vítima em virtude de sua idade – criança – foi contra legem substituído pelo deslocamento para a atribuição de um outro status - mulher e, a partir daí, de igual maneira, não foram incorporados ao voto as dimensões histórica e política que cercam o conceito de gênero [13] dentro de um primado comunistarista, apontando, ao contrário, um modelo patriarcal de institucionalização e, portanto, de dicção do direito, marcado por uma percepção moral puramente fincada no juízo valorativo estritamente pessoal.

A importância da incorporação de uma dimensão feminista – e, no caso, da ausência de compromisso com tal agregação, por parte da atividade interpretativa – haveria de surgir a partir do reconhecimento de déficits históricos em detrimento do feminino. Ao contrário, o rol de elementos trazidos pelo Ministro acrescentou a um já questionável discurso legislativo uma pauta judicial que deixa transparecer nas entrelinhas um androcentrismo excludente que se manifesta principalmente na eterna dicotomização epistemologicamente amparada numa teoria do conhecimento que separa razão e emoção, sujeito e objeto, razão e espírito.

Essa expressão dual orienta, assim, toda a trajetória de análise do mundo a partir de uma concepção fragmentada, donde se extrai a polarização sexista (macho e fêmea) que influiu na construção de todo um sistema de intervenção estatal que ainda hoje não se redimensiona para abrigar a superação de tal dicotomia [14].

Esse hiato finda por indicar, no voto, o descompromisso com a expressão plúrima das mobilizações sociais (feministas, no caso) pela incorporação na interpretação do texto constitucional aplicado aos casos concretos a desconstrução de uma tendência de naturalização de supremacia da diferença entre homens e mulheres em face do escólio da produção de saber e de conhecimento.

Assim, prevalece uma visão patriarcal, fomentadora de um universo simbólico que pode remeter a Justiça e seus intérpretes a uma divinização supra-positivada [15] e não-escrita que, à pretensão de se firmar como escólio de interesses plúrimos, pode estar se convertendo na mera expressão de imanação de poder irracional [16], encobridor de um arbítrio insensível à necessidade dos envolvidos num litígio [17].

Não se torna difícil observar no voto tal delineamento, pois Ministro apontou alguns elementos da instrução que denunciam o deslocamento do status de vítima – sua condição inerente em função da idade - para a posição de plenitude de exercício de sua vontade e, assim sendo, julgada em função de seu comportamento repreensível segundo a lógica de sexismo patriarcal.

Esclareceu o voto que a menor saía frequentemente de motocicleta com o acusado, indo a lugares desertos e trocando carícias, além de apontar a recorrência do comportamento da vítima em relação aos amigos do acusado. Em relação a isso, inclusive, o voto trouxe parte do depoimento de um dos amigos, que explicitamente se referia à menor como "prostitutazinha".

Mais adiante, o voto aborda que o quadro se mostra estarrecedor, em face da "vida promíscua" que levava a menor, "saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes", numa demonstração de "vida dissoluta", evidenciando, assim, aparentava ter idade superior à que realmente tinha, de modo a consolidar o entendimento sobre a relativização da presunção de inocência, absolvendo-se, assim, o acusado.

O voto, assim, não corresponderia às expectativas de uma coletividade marcada pela pluralidade, já que não incorpora em seu discurso o colorido da proposta de enfoque a partir de gênero, emblema de lutas dentro do feminismo brasileiro.

Os valores reconhecidos na dinâmica social que espelha o pensamento feminista haveriam de ingressar, no âmbito da produção jurisprudencial, como, no mínimo, uma referência a ser analisada pelo intérprete, num modelo aberto baseado na dinamização do conceito de dignidade da pessoa humana, para a contemplação do reconhecimento da dignidade da mulher enquanto ser humano que esteve alijado dentro de processos históricos nitidamente desfavoráveis a ela.

O juízo meramente opinativo presente no voto, que transita, de maneira bipolar, pelas searas liberais e pelos arremedos de comunitarismo, acaba tangenciando – não sem produzir estragos, uma ampliação de funções do Judiciário, incrementando o poder de interpretação – como visto, até mesmo contra legem – ao mesmo tempo em que busca legitimidade na composição de um fundamento de cunho moral, hábil a encobrir (ou justificar) uma necessidade de busca de elementos que sustentem a decisão.

Aliás, ao se enveredar pela atribuição ao Judiciário de um estandarte moralizante de agregação de monopólio de declaração de direitos que, a bem da verdade, não foram contemplados pela lei – e, ainda, dela se dissociam – a percepção de soberania popular marcada numa concepção de republicanismo marcado pela prevalência de um poder legislativo (aglutinador, por excelência, da vontade soberana e popular), mas, antes, podendo se admitir uma autocracia conferida ao Judiciário.

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Sobre a autora
Alessandra de La Vega Miranda

mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília, professora universitária, advogada criminalista em Brasília (DF),Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB, Pesquisadora do Grupo de Ações Afirmativas e Direitos Humanos na Diversidade - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Alessandra La Vega. "Nos nossos dias não há crianças, mas moças de onze anos".: A apresentação do voto paradigma no HC 73.662-9 e a incorporação de uma abordagem patriarcal na atividade jurisprudencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2219, 29 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13239. Acesso em: 26 abr. 2024.

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