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Tutelas de urgência na recusa de transfusão de sangue

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31/07/2009 às 00:00
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A recusa de transfusões de sangue por motivos religiosos há muito tempo desperta grande celeuma nos meios médico e jurídico. Em geral, as pessoas não entendem por que alguém estaria disposto a arriscar a sua própria vida ou a de seus filhos em virtude de uma crença religiosa.

RESUMO: A recusa de transfusões de sangue por motivos religiosos há muito tempo desperta grande celeuma nos meios médico e jurídico. Em geral, as pessoas não entendem por que alguém estaria disposto a arriscar a sua própria vida ou a de seus filhos em virtude de uma crença religiosa. Por meio de exaustiva pesquisa em todo o país, verificou-se que, na maioria dos casos em que os pacientes eram transfundidos contra sua vontade, o resultado era desastroso. Diversamente, ao terem seu direito de escolha respeitado pela equipe médica, normalmente alcançava-se êxito. O texto deste artigo corresponde a um dos estudos preliminares realizados para a elaboração da pesquisa de mestrado, que posteriormente converteu-se no livro Responsabilidade médica diante da recusa de transfusão de sangue.*

Palavras-chave: transfusão de sangue; direito de recusa; tratamento médico sem sangue.

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Análise de casos ocorridos no Brasil. 3. Jurisprudência internacional. 4. Riscos transfusionais. 5. Alternativas médicas às transfusões de sangue. 6. Aspectos processuais. 7. A questão sob o prisma dos direitos fundamentais. 8. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Estabelece a Constituição Federal, no caput de seu art. 5.º, a "inviolabilidade do direito à vida". No mesmo sentido, determina que "a saúde é direito de todos e dever do Estado" (CF, art. 196). Outrossim, objetivando assegurar o tratamento médico necessário para preservar a vida e a saúde dos cidadãos, observa-se hodiernamente uma ampla utilização de medidas que visam à obtenção célere do provimento jurisdicional, tais como a cautelar inominada e a antecipação da tutela.

Situações peculiares que têm despertado o interesse dos doutrinadores são aquelas em que a ação judicial é utilizada não pelo paciente que busca assistência médica, mas, em vez disso, pelo próprio hospital ou Poder Público, a fim de impor ao paciente um tratamento por ele não desejado. Mencione-se a hipótese na qual, a pretexto de salvar a vida de um paciente, seja requerida uma autorização judicial para amputar-lhe uma perna contra a sua vontade. Ou, como trazido à baila por Carreira Alvim, as transfusões de sangue não autorizadas por motivos religiosos. Sobre esse tema, salienta o eminente autor: "Sempre que houver uma carga de probabilidade suficiente para convencer o julgador da verossimilhança da alegação, tem cabimento a concessão da liminar; não, se o Juiz se convence do contrário". [01]

Indubitavelmente, questão de extrema delicadeza é suscitada quando a prestação jurisdicional é direcionada à proteção da vida humana. A concessão de liminares inaudita altera pars tem ocorrido nesse campo, sob a justificativa de que, se da liminar depende a própria sobrevivência do direito material — in casu a vida humana — tornar-se-ia inviável um juízo de probabilidade muito rígido, sob pena de se tornar imprestável ao fim a que se destina. [02]

A solução, porém, não é tão simples como possa parecer. No caso da hemoterapia não desejada pelo paciente, os próprios riscos a ela associados, bem como o contínuo desenvolvimento de substitutos eficazes do sangue, devem levar-nos a reflexões mais profundas. O tema tem sido freqüentemente abordado pela doutrina, mas raramente como objeto de análise mais cuidadosa. Por sua singularidade e relevância, considerando-se não só o crescente número de ocorrências, mas também o fato de que a escolha de tratamento médico está inserida no contexto mais amplo dos direitos fundamentais do ser humano, entendemos que o assunto merece um exame mais atento, sendo escolhido como objeto de estudo no presente trabalho.


2. ANÁLISE DE CASOS OCORRIDOS NO BRASIL

Para melhor entendimento dos diversos aspectos envolvidos na utilização das tutelas de urgência que visam impor ao paciente um tratamento hemoterápico não consentido, fomos buscar na jurisprudência brasileira exemplos dessa ocorrência. Saliente-se, desde logo, que os casos verificados no Brasil raramente chegam aos Tribunais, sendo normalmente encerrados em primeira instância. Trata-se de situações em que, embora sendo concedida a medida para transfundir o paciente contra sua vontade expressa, as transfusões acabam não sendo realizadas, quer por absoluta desnecessidade para a recuperação do enfermo, que tem sua saúde restabelecida por outros meios com igual ou maior eficácia, quer pela constatação da impropriedade do meio transfusional para a salvaguarda de sua vida. [03]

O primeiro caso encontrado refere-se a uma ação cautelar inominada (Processo n.º 523/024.000.063.164, 7.ª Vara Criminal da Comarca de Vitória, ES) [04] envolvendo uma paciente vítima de acidente automobilístico, com indicação de intervenção cirúrgica. M. L. N., com 39 anos de idade, deu entrada no nosocômio consciente e subscreveu um termo de isenção de responsabilidade para a equipe médica, declarando não aceitar "nenhuma transfusão de sangue ou de constituintes do sangue (total, glóbulos vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma sangüíneo)", embora concordasse com a cirurgia e aceitasse tratamentos médicos sem o uso de sangue. Contrariando sua vontade expressa, o diretor clínico do hospital peticionou ao Judiciário, curiosamente sem se fazer representar por advogado habilitado, e requereu autorização para transfundi-la. Consta como principal fundamento do pedido: "[M. L. N.] necessita de intervenção cirúrgica (Craniotomia para drenagem de hematoma cerebral traumático extra-dural) podendo ser necessário transfusão de sangue, face ao risco de complicações per operatórias, tipo choque hipovolêmico e infecções" (sic). Em que pese à falta de precisão na indicação da terapia transfusional, foi concedida liminarmente uma autorização judicial para realizá-la. Não obstante, a cirurgia foi concretizada sem a necessidade de utilização de sangue, tendo a paciente se recuperado e recebido alta hospitalar.

O segundo caso de que tomamos conhecimento retrata a situação do paciente R. E. A. D. S., com 27 anos de idade, advogado. O paciente internou-se para ser submetido a uma cirurgia visando ao tratamento de um problema intestinal chamado "Doença de Crohn". A cirurgia foi feita com êxito sem o uso de sangue. No pós-operatório, porém, surgiu uma fístula no local da incisão que, segundo a equipe médica, precisaria ser removida por meio de novo procedimento cirúrgico, desta feita, segundo os facultativos, com a realização de transfusões. O chefe da equipe médica ingressou então com um requerimento em juízo, no qual se autorizou o procedimento por meio da antecipação da tutela, concedida inaudita altera pars. (Processo n.º 1.092/99, 4.ª Vara Cível da Comarca de Marília, SP). Inconformado com a decisão judicial, o paciente transferiu-se para outro nosocômio, onde recebeu tratamento sem a necessidade de transfusões sangüíneas, tendo boa convalescença.

Outra ocorrência, com resultado semelhante, diz respeito ao paciente R. C. G., com 50 anos de idade, internado em um hospital com o diagnóstico de varizes esofágicas e quadro de hemorragia digestiva alta, com hipotensão ortostática e taquicardia reflexa. Por motivos de convicções religiosas, o paciente solicitou tratamento médico isento de sangue. Discordando do posicionamento do paciente, o nosocômio ajuizou uma ação cautelar inominada, obtendo liminar inaudita altera pars autorizadora da hemotransfusão. Ao tomar conhecimento da decisão, o paciente abandonou o hospital, mesmo sem alta médica, partindo em busca de tratamento médico compatível com seus mais profundos ideais. Foi tratado em outra instituição hospitalar, sem a necessidade de transfusões de sangue, com recuperação plena. No mérito, a ação foi julgada improcedente, porquanto restou evidenciado que o paciente não recusava tratamento médico necessário, mas tão-somente desejava ser tratado em harmonia com seus valores pessoais. Eis alguns trechos da sentença: "Inconforma-se que um médico, quer por preconceito religioso, quer por limitação profissional, venha a juízo requerer autorização judicial para violar direitos individuais consagrados, com base em um atestado incompleto, com o claro objetivo de justificar o iminente risco de vida, tão iminente que o paciente ainda está vivo, a par de não ter sido procedida a transfusão sangüínea [...]. O direito ao tratamento há de abranger a integridade da pessoa do doente, observando-se os aspectos religiosos, jurídicos, intelectuais e físicos." (Processo n.º 01193306956, 16.ª Vara Cível de Porto Alegre, RS). [05]

Desfecho diverso ocorreu com J. L. T., de 39 anos, acometida de "Lúpus Eritematoso Sistêmico". A paciente informou ao seu médico assistente, verbalmente e por escrito, que aceitava qualquer tratamento médico, exceto hemotransfusões, invocando suas convicções religiosas. O facultativo ingressou com uma ação cautelar requerendo a concessão de liminar que autorizasse o uso da terapia objetada pela paciente, supostamente necessária para salvar-lhe a vida (Processo n.º 00100014613-8, 2.ª Vara Cível da Comarca de Natal, RN). A liminar foi concedida em 12 de outubro de 2000 pela juíza plantonista sob o fundamento de que "o Estado tem obrigação de preservar a vida das pessoas, bem supremo." Alicerçou seu entendimento no art. 5.º, caput, da Constituição Federal, que garante "a inviolabilidade do direito à vida". Cumprida a liminar, a paciente evoluiu a óbito na manhã do dia 16 de outubro de 2000.

Fato semelhante ocorreu com a paciente S. M. A., de 23 anos de idade, que após ser submetida a tratamento para trombose com um medicamento anticoagulante, começou a apresentar hemorragias diversas, com conseqüente anemia. Hospitalizada, solicitou terapia sem o uso de transfusões de sangue. Um dos membros de sua família, porém, ingressou em juízo, na data de 15 de agosto de 1999, requerendo alvará judicial determinando fosse procedida a transfusão (Processo n.º 1.579/99, 3.ª Vara Cível da Comarca de Presidente Prudente, SP). Deferido imediatamente o pedido e cumprida a ordem judicial, a paciente veio a falecer poucas horas depois de receber a transfusão.

Encontra-se também registrado um caso envolvendo o paciente J. R. B., de 74 anos, com insuficiência renal crônica. Submetendo-se a sessões de hemodiálise, o paciente teve queda nos seus níveis de hemoglobina. Foi internado às pressas, solicitando a utilização de quaisquer procedimentos médicos que não envolvessem o uso de sangue. A equipe médica estava decidida a agir em harmonia com a vontade do paciente, não lhe aplicando hemoderivados, quando um de seus filhos conseguiu uma liminar, determinando a transfusão. (Processo n.º 331/99, 3.ª Vara de Família da Comarca de Feira de Santana, BA). O paciente morreu logo após a realização do procedimento transfusional.

Outra situação envolveu a paciente adulta A. R. H. A., internada para a realização de um parto cesariano. Após a cesárea sofreu hemorragia, motivando a equipe médica a prescrever a realização de transfusões sangüíneas, visando tratar o quadro anêmico no qual se encontrava. Consciente, requereu que lhe fossem aplicados substitutivos do sangue, pedido que não foi atendido pelo hospital. Este, ao contrário, interpôs ação cautelar inominada (Processo n.º 1.327/00, 2.ª Vara Cível da Comarca de Caçapava, SP), obtendo liminar que autorizou a hemoterapia. Cumprida a decisão judicial, com a administração de oito transfusões de sangue, a paciente faleceu.

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Situação concreta similar foi relatada pelo Juiz de Direito Artur Arnildo Ludwig, em artigo publicado na revista Direito em Debate [06]. Estando de plantão em 10 de maio de 1992, foi consultado por um médico atendente do Hospital Conceição, em Porto Alegre, RS, que indagava como proceder diante da recusa de uma paciente em receber transfusão de sangue. Tratava-se de M. C. L. F., de 19 anos de idade, casada, que fora transferida para a UTI daquele nosocômio, com diagnóstico de septicemia causada por complicações decorrentes de uma operação cesariana. O magistrado pronunciou-se favoravelmente à realização da transfusão mesmo contra a vontade da paciente, na premissa de salvar-lhe a vida. Procedeu-se à transfusão de quatro unidades de concentrado de hemácias. Ainda assim, o quadro geral da paciente continuou a piorar, apresentando ela a primeira parada cárdio-respiratória em 17 de maio de 1992, e falecendo em 26 de junho de 1992. [07]

Caso com igual desfecho encontra-se relatado por D. J. Kipper e W. S. Hossne, na revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina, da seguinte forma: "M. P. F., 38 anos, casado, [...] Ao exame físico apresentava-se lúcido, orientado, hipocorado, taquicardíaco, porém hemodinamicamente estável, levemente dispnéico e ansioso. Os exames laboratoriais foram compatíveis com o diagnóstico de leucemia aguda. [...] Logo à admissão ao hospital, o paciente comunicou à equipe médica que era Testemunha de Jeová e, por isso, recusava-se terminantemente a receber tratamento com sangue ou derivados, [...], apresentando, inclusive, documento de identificação como pertencente à referida religião. Sua posição foi apoiada por sua esposa, que também pertencia à mesma religião. Os demais familiares (sua mãe e irmãos), ao indagarem sobre a situação, posicionaram-se contrariamente ao paciente e sua esposa quanto à realização da hemotransfusão, tentando exaustivamente convencer o mesmo a submeter-se ao tratamento indicado, sem sucesso. [...] Os familiares resolveram recorrer à Justiça e conseguiram um despacho judicial autorizando o hospital a realizar a hemotransfusão [...] Por sua vez, o hospital também solicitou liminar judicial autorizando a realização dos procedimentos, após consulta ao CRM-DF. Cerca de 24 horas após a admissão, o paciente foi submetido à transfusão de plaquetas e sangue, sob efeito de sedativos. [...] A despeito das hemotransfusões realizadas, houve piora do quadro e o paciente evoluiu para óbito [...]". [08]

Os casos encontrados realmente nos induzem a sérias reflexões. Em sua totalidade, os pacientes envolvidos não desejavam dispor da própria vida. Queriam viver, tanto que de forma geral buscaram socorro médico por sua própria iniciativa. Sobre o assunto, comenta o emérito professor Léo Meyer Coutinho, in verbis: "Pode ser alegado que a recusa à transfusão significa suicídio. Não é assim. A morte desejada é suicídio, a admissível sem desejá-la, não. A Testemunha de Jeová não deseja a morte, mas sim que sejam utilizados todos os meios para impedi-la, excluída a transfusão de sangue." [09]

Diante disso, concordamos com Maria Celina Bodin de Moraes, quando cita o último caso relatado como exemplo de uma "situação em que a liberdade de crença deveria ser integralmente garantida". Comentando acerca desta e de outras questões correlatas, a autora conclui: "O respeito à pessoa humana, única em sua individualidade, mas necessariamente solidária da comunidade em que se encontra inserida, resta talvez como único princípio de coerência possível em uma democracia humanista, e que, confia-se, um dia venha a ter alcance universal." [10] Do mesmo modo, analisando o caso relatado na revista Bioética, Maria T. M. Pacheco observou: "As decisões de tratamento de saúde envolvem muito mais do que preocupações meramente médicas. Quanto a decisões sobre o que deve ser feito com referência ao corpo de uma pessoa, é o paciente, e não a opinião pública, a classe médica, ou algum juiz, que deve tomar a decisão altamente subjetiva, baseada em valores morais, sobre qual a forma de tratamento ‘melhor’ ou ‘certa’. Ao tomar decisões sobre tratamentos de saúde, não deve haver dúvida de que são os valores do paciente que devem determinar quais os riscos e benefícios que valem a pena ser tomados." [11]


3. JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL

Após analisar uma série de casos ocorridos na Argentina, nos quais os juízes autorizaram os médicos a imporem a transfusão contra a vontade do paciente, Oscar Ernesto Garay conclui dizendo: "Só me resta destacar a futilidade destas decisões na prática. Cayetano, que podia ter sido tratado com terapias alternativas, foi transfundido à força, e ficou afetado psicologicamente. Natalia, apesar de que o juiz ordenou transfundi-la para salvar a sua vida, foi tratada com terapias alternativas, e sarou. Beatriz opôs tanta resistência que, não obstante a decisão, não conseguiram transfundi-la, e foi salva com alternativas. Olga não teve essa sorte: foi transfundida à força, e faleceu. Victor Hugo, transfundido à força, quase morre por causa do edema pulmonar resultante. Rosa, apesar da decisão, foi operada com êxito em outro hospital, sem transfusões. Em suma, ou as decisões não serviram para nada, ou só trouxeram mais problemas." [12]

Semelhante caso, conhecido como "Bahamondez", foi levado à Suprema Corte de Justiça da Argentina. Salienta Rabinovich-Berkman [13] que, embora ao tempo do julgamento o paciente já tivesse se recuperado sem a necessidade de receber sangue, sua importância como precedente tornou-se enorme, não só pela claridade de seus conceitos, como por provir do Supremo Tribunal daquele país. Analisando o art. 19 da Lei argentina n.º 17.132, a qual impõe aos médicos o dever de respeitar a vontade do paciente quanto à sua negativa de tratar-se ou internar-se, decidiu aquele sodalício que "a estrita interpretação da mencionada disposição legal afasta toda possibilidade de submeter uma pessoa maior e capaz a qualquer intervenção em seu próprio corpo sem o seu consentimento". Assentou adicionalmente que sob o ângulo constitucional não seria justificada uma decisão judicial que autorizasse submeter uma pessoa adulta a um tratamento de saúde contra sua vontade, quando a decisão do indivíduo tivesse sido feita com pleno discernimento e não afetasse diretamente os direitos de terceiros, concluindo que "o alicerce da norma constitucional ‘... é a própria base da liberdade moderna, ou seja, a autonomia da consciência e a vontade pessoal, a convicção segundo a qual é exigência elementar da ética que os atos dignos de méritos se realizem fundamentados na livre e incoercível crença da pessoa nos valores que o determinam...’." [14]

Conforme bem observado pela ilustre magistrada Christine Santini Muriel, "é preciso que se diga que, no caso específico dos seguidores [...] Testemunhas de Jeová, a jurisprudência internacional tem evoluído no sentido de que se respeite a vontade do paciente independentemente dos riscos dela decorrentes. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, alguns hospitais e Cortes adotam a teoria de que qualquer paciente adulto que não seja declarado incapaz tem o direito de recusar um tratamento, não importa quão prejudicial tal recusa possa ser para sua saúde. Adota-se em regra geral naquele país a teoria da necessidade do consentimento esclarecido do paciente para a prática de intervenção médica". [15]

Nesse diapasão, encontramos famosa decisão proferida pela Suprema Corte do Mississipi: "A norma do consentimento informado repousa sobre o firme alicerce do respeito deste Estado pelo direito da pessoa de estar livre de invasões corporais indesejadas, não importa quão bem-intencionadas. O consentimento informado sugere também um corolário: o paciente deve ser informado da natureza, dos meios e das prováveis conseqüências do tratamento proposto, a fim de que ele possa ‘conscientemente’ decidir o que deve fazer — uma de suas opções sendo a rejeição." [16]

Similarmente, no Canadá deparamo-nos com a seguinte decisão proferida pela Corte de Apelações: "Um adulto capaz tem de modo geral o direito de recusar um tratamento específico ou todo tratamento, ou selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que a decisão possa envolver riscos tão sérios quanto a morte e possa parecer equivocada aos olhos da profissão médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o paciente que tem a palavra final quanto a submeter-se ao tratamento. Embora numa emergência o conceito de iminente perigo de vida possa proteger o médico que age sem consentimento, ele não está livre para desconsiderar as instruções antecipadas de um paciente." [17]

No mesmo sentido, há decisão oriunda do Japão, prolatada pelo Tribunal Superior de Justiça de Tóquio: "No caso em tela, o propósito dos recorrentes de realizar uma cirurgia adequada, condizente com o padrão de serviço médico, para retirar o tumor do fígado de Misae, pode ser considerado um comportamento natural de um médico que se dedica ao trabalho de cuidar da vida e da saúde das pessoas. Porém, quando o paciente manifesta claramente a vontade de rejeitar as práticas médicas que envolvem a transfusão de sangue, pelo fato de a transfusão ir contra a sua convicção religiosa, o direito de tomar tal decisão deverá ser respeitado como um componente do direito pessoal." [18]

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Sobre o autor
Wilson Ricardo Ligiera

Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIGIERA, Wilson Ricardo. Tutelas de urgência na recusa de transfusão de sangue. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2221, 31 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13243. Acesso em: 28 mar. 2024.

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