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Tutelas de urgência na recusa de transfusão de sangue

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31/07/2009 às 00:00
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4. OS RISCOS TRANSFUSIONAIS

Tratados de medicina em geral indicam que as hemotransfusõesenvolvem riscos sérios, às vezes letais, para os pacientes submetidos a tal forma de tratamento médico. A pesquisa na moderna literatura médica expõe o erro de presumir que a transfusão de sangue seja sempre uma terapia que "salva a vida". Ela também pode reduzir a probabilidade de o paciente continuar vivo. [19] Em recente e conceituado trabalho científico, Hébert et al. comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa, entre as transfusões sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva. [20]

Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas categorias: primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou por hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de natureza imunológica, imediatas ou tardias, e não imunológicas, como reações febris ou reações hemolíticas.

Alguns exemplos de doenças infecciosas, transmitidas por transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até mesmo fatais, são: a AIDS (sigla, em inglês, para "síndrome da imunodeficiência adquirida", causada pelo vírus HIV), algumas formas de hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a citomegalovirose e as infecções produzidas pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (sigla, em inglês, para "vírus da leucemia e linfoma de células T") e por bactérias ou protozoários. [21].

Mollison, Engelfriet e Contreras, na consagrada obra Blood Transfusion in Clinical Medicine, declaram que "a maioria das mortes causadas por transfusão de sangue são devidas à transmissão de vírus, bactérias ou protozoários." [22] E acrescentam: "Testes apropriados para exames sistemáticos das unidades de sangue doado estão disponíveis para a maioria dos agentes infecciosos capazes de causar significativa morbidade nos receptores; porém, a maioria dos testes não detectam todos os doadores infectados." [23]

Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a hemoterapia, tais como, erros humanos operacionais (e.g., transfusão de tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a supressão do sistema imunológico do paciente, provocando aumento das chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores. Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: "Atualmente, o único meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as transfusões." [24]


5. ALTERNATIVAS MÉDICAS ÀS TRANSFUSÕES DE SANGUE

Dentre os poucos autores da área jurídica que se propuseram a enfrentar o tema acerca dos riscos transfusionais de modo mais abrangente, encontramos Artur Marques da Silva. Em brilhante artigo no qual trata da responsabilidade civil dos médicos nas transfusões de sangue, o insigne autor, após alistar uma série de perigos e complicações associadas ao uso da hemoterapia, conclui dizendo: "É incontornável que todo o esforço médico deve ser empreendido para que se evite o procedimento inseguro de uma transfusão." [25]

O grande óbice para atingir-se essa meta plenamente, até algum tempo atrás, era a escassez de alternativas médicas às transfusões. Como salienta Rabinovich-Berkman: "Se a transfusão era perigosa, mas insubstituível, não havia outro remédio senão submeter-se a ela. A dicotomia apresentava-se assim: transfusão ou morte, numa situação de estado de necessidade". [26] No entanto, explica o mesmo autor: "[...] nas últimas décadas a ciência médica desenvolveu técnicas e tratamentos destinados a tornar possível a cirurgia e o cuidado sem sangue alogênico (de outra pessoa)." [27]

Em consonância com as palavras do renomado autor, no fim do século 20 e início do século 21 tem-se presenciado significativo avanço científico na busca por seguras alternativas médicas às transfusões de sangue. Em 1997, líamos em mundialmente conhecida revista de notícias que "cada vez mais pacientes estão clamando por opções mais seguras e mais eficazes do que as transfusões, seja por motivos religiosos, seja pelo medo de contrair doenças" [28].

Estratégias e programas que empregam alternativas às transfusões de sangue têm tornado possível que pacientes recebam o necessário tratamento médico e cirúrgico, ao passo que se conservam intactos os valores intelectuais, morais e religiosos destes pacientes. É o que a Medicina chama de "tratar o paciente como um todo", e não apenas o aspecto físico da sua doença [29].

Não nos cabe, neste trabalho, por sua própria natureza diversa, relacionar exaustivamente as alternativas hoje empregadas para se evitar transfusões de sangue. Registre-se apenas que num simpósio médico, realizado no Canadá, em fins da década de 1990, tratou-se extensamente do assunto, relacionando-se em pormenores as alternativas às transfusões. Entre elas figuram os medicamentos que estimulam o corpo do próprio paciente a produzir os diversos tipos de células sangüíneas (eritropoetina humana recombinante, fatores recombinantes de estimulação do crescimento de colônias de granulócitos e macrófagos, interleucina-11 etc.); agentes hemostáticos (ácidos aminocapróico e tranexâmico, aprotinina, agentes hemostáticos tópicos, adesivos de tecidos, vitamina K1 etc.); expansores do volume do plasma que não contêm sangue (colóides e cristalóides) e os chamados substitutos do sangue (perfluoroquímicos, hemoglobina recombinante e polimerizada etc.). Acrescente-se aos medicamentos os equipamentos e aparelhos que reduzem o sangramento ou querecuperam o sangue do próprio paciente durante a cirurgia, tais como bisturis hemostáticos, dispositivos de recuperação intra-operatória de sangue autólogo (comumente chamados "cellsavers") e aparelhos de monitoração não invasiva de oxigênio que reduzem as perdas ocasionadas por freqüentes coletas para exames laboratoriais, entre outros. [30]

É significativo que muitas de tais técnicas que visam substituir a utilização da terapia transfusional não têm sido usadas apenas nos chamados países desenvolvidos, mas em todo o mundo, inclusive no nosso país. À guisa de exemplificação, relembre-se matéria pertinente escrita no jornal O Estado de São Paulo, sob o título "Crescem no País as cirurgias sem transfusão", em que se afirma que o método pelo qual os facultativos empregam estratégias e medicamentos para evitar a transfusão de sangue estocado "está sendo adotado por um número crescente de médicos e de hospitais no Brasil. E deve tornar-se cada vez mais comum aqui no Brasil." [31] Isso corrobora o que já fora escrito no jornal Gazeta Mercantil, sob a manchete "Técnicas simples podem descartar transfusões de sangue em cirurgias". O artigo, de 1991, propalava que "três técnicas simples, bem articuladas num programa integrado, podem transformar em prática do passado a clássica transfusão de sangue com todos os seus riscos – e mesmo altos custos, quando se pensa em termos de saúde pública." [32]

Na virada do século, constatamos na literatura médica relatos sobre grandes cirurgias cardíacas [33], neurológicas [34], ortopédicas [35], ginecológicas [36] e mesmo transplantes de fígado [37], de pulmão [38] e de coração [39] feitas sem a utilização de sangue alogênico (de bancos de sangue). Antes, o progresso científico tem patrocinado a utilização de alternativas médicas às transfusões e, desse modo, permitido tais façanhas, sem prejuízos para os pacientes.


6. ASPECTOS PROCESSUAIS

Diante de todos os fatores apresentados, percebe-se que a complexa e intrincada problemática sub examine não pode ser considerada de modo por demais simplista. Além disso, a análise honesta, coerente e imparcial requer sejam primeiramente afastadas algumas das falsas premissas que com freqüência têm sido inadvertidamente prestigiadas na abordagem do tema.

A pesquisa revelou que, no esforço de obter um autorização judicial, não raro, certos médicos têm exagerado a gravidade do quadro clínico do paciente. Em alguns dos casos investigados, muito embora fosse afirmado na petição inicial que transfundir o paciente era imprescindível para a manutenção de sua vida, tal procedimento acabou não sendo realizado, mostrando-se por fim desnecessário. O enfermo teve sua saúde restabelecida com a utilização de alternativas médicas sem sangue. Por outro lado, nas hipóteses em que os pacientes realmente corriam risco de vida, o procedimento transfusional não foi capaz de salvá-los. Destarte, já não se pode aceitar o raciocínio simplório de que transfusão é sinônimo de vida.

Perante esse quadro fático que se nos apresenta, não vemos como deixar de perscrutar sob a lupa de critérios mais rigorosos as argumentações daqueles que recorrem ao Judiciário sustentando que a transfusão de sangue é a única terapia que pode salvar a vida do paciente. Ademais, há que se ter cautela diante de declarações singelas de que o paciente encontra-se em situação de risco iminente a exigir com urgência o amparo da tutela jurisdicional. Como advertiu a ilustre magistrada Christine Santini Muriel, "no caso de recusa do paciente a respeito de recebimento de transfusão de sangue, deve em primeiro lugar ser analisada a efetiva existência da necessidade do ato." [40]

Observa-se, com freqüência, por parte de alguns profissionais da área da saúde, uma tentativa de transferir para o Judiciário o risco de uma decisão eminentemente médica. Na incerteza sobre a real necessidade e eficácia da terapia transfusional, imaginam erroneamente estarem eximidos de responsabilidade pela obtenção de uma liminar judicial. Concordamos, nesse particular, com a decisão do TJRS: "Não pode o Judiciário estar fornecendo alvarás para realização de tratamentos médico-hospitalares ou cirúrgicos. Médicos e hospitais devem assumir os riscos óbvios inerentes à atividade que exercem, como o assumem todos os profissionais." (RJTJRS 171/384)

Ocorre que nosso ordenamento jurídico positivo não considera constrangimento ilegal: "I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir suicídio." (CP, art. 146, § 3.º, I e II) Em consonância, determina o Código de Ética Médica: "É vedado ao médico: Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida." (CEM, Resolução CFM 1.246/88, art. 46)

Deste modo, a própria busca de autorização judicial, sob o argumento de que o paciente recusa o único tratamento eficaz para retirá-lo da alegada situação de iminente perigo de vida, já revela, por si mesma, a desnecessidade do provimento jurisdicional. Afinal, estivesse o paciente sob morte iminente, imediata, e recusasse a realização do único tratamento médico apto a salvá-lo, não haveria necessidade — e nem tempo hábil — para se buscar uma autorização de quem quer que fosse.

Na hipótese em apreço, porém, explicita Rabinovich-Berkman: "As Testemunhas de Jeová não buscam sua morte, nem a de seus filhos. Atualmente, a transfusão de sangue é apenas uma das muitas alternativas que estão disponíveis. As outras terapias são com freqüência muito menos perigosas, e sua aplicação é de praxe em todo o mundo desenvolvido. As Testemunhas de Jeová somente solicitam ser submetidos a algumas dessas outras opções." [41] Sob esse ângulo, não se está debaixo de uma questão de vida ou morte, de tratamento ou não, mas sim de escolha de tratamento.

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Diante desses fatores indagamos se deve o julgador admitir pedidos de autorização para transfundir um paciente contra sua vontade. Ademais, há que se questionar especialmente se tais requerimentos devem ser recebidos em sede de cautelar, vez que se tornam indiscutivelmente satisfativos. Nesse sentido, há que se perscrutar se não seria mais apropriada a utilização do instituto da antecipação da tutela; afinal, como bem expressou Luiz Guilherme Marinoni, "não é mais admissível — após a reforma do Código — que alguém pretenda propor ação (de cognição) sumária ‘satisfativa’ com base no artigo 798." [42]

Verificando o juiz que a sua decisão terá cunho nitidamente satisfativo, e mais do que isso, que antecipará uma decisão de mérito, que em regra somente deveria ocorrer depois de exaurida a apreciação de toda a controvérsia, deve receber o pleito como um processo de conhecimento e avaliar o pedido liminar à luz dos requisitos estabelecidos expressamente no artigo 273, caput e inciso I, do CPC: a) existência de prova inequívoca; b) verossimilhança da alegação; e c) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

Quanto ao requisito da reversibilidade do provimento antecipado (CPC, art. 273, §2.º), concordamos, em parte, com Costa Machado, quando defende que "não faz nenhum sentido admitir que em situações de tamanha gravidade a interpretação literal de um dispositivo do CPC possa ser sobreposto à vida". [43] Por outro lado, entendemos que, exatamente por se tratar de proteção a bem de tamanha magnitude, não se pode também deixar de lado a segurança jurídica (no sentido do acerto da decisão firmada em bases probatórias sólidas), especialmente quando a experiência demonstra que tais autorizações baseadas em meras afirmações unilaterais e subjetivas têm-se revelado, no mínimo, temerárias, vez que não raro produzem mais malefícios do que benefícios. Nesse sentido, convém lembrar que "o que se entende por justiça efetiva não é necessariamente justiça mais rápida, mas sim melhor. Por isso, os procedimentos diferenciados que busquem uma maior efetividade para o processo devem respeitar os princípios do devido processo legal, sob pena de criarem maiores injustiças do que benefícios, e também sob pena de violação constitucional." [44]

Fosse a transfusão sangüínea um procedimento absolutamente inócuo, talvez a questão se apresentasse como menos controvertida. O insofismável dilema, contudo, consiste em que a transfusão não é um procedimento isento de riscos. Além disso, a hemoterapia, qual ramo da medicina, não faz parte de uma ciência exata. O que constitui iminente risco de vida sob o ponto de vista de um médico, pode não passar de erro de diagnóstico para outro mais experiente. E no entanto, pela concessão de liminares inaudita altera pars, subtrai-se do paciente o direito de obter uma segunda opinião médica, e de optar por uma forma mais segura de tratamento. [45]

Nos casos analisados constata-se que a maioria das liminares foram concedidas sem a análise mais acurada dos fatos, e sem a verificação mais atenta de suspeitosos e inexatos documentos anexados no afã de justificar a obtenção de uma tutela de urgência. Só posteriormente percebeu-se que a falta de transfusão não constituía real e iminente perigo de vida para o paciente, o qual realmente poderia ser tratado de outra forma mais segura.

Evidentemente, há situações de real emergência, em que não é possível a oitiva prévia do paciente, nem a análise mais acurada dos fatos. Nestas hipóteses, entendemos que ao julgador caberá agir com redobrada cautela. Em se tratando de deferir a medida pleiteada, deverá determinar que antes sejam esgotados todos os outros meios disponíveis de tratamentos médicos sem sangue, e caso seja procedida a transfusão, que os médicos certifiquem-se da absoluta necessidade e segurança do procedimento.

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Sobre o autor
Wilson Ricardo Ligiera

Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIGIERA, Wilson Ricardo. Tutelas de urgência na recusa de transfusão de sangue. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2221, 31 jul. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13243. Acesso em: 26 abr. 2024.

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