1. O que têm em comum a origem do assado de carne suína e os Juizados Federais?
Muitos provavelmente já leram ou pelo menos ouviram falar da "fábula dos porcos assados". A sua autoria é incerta, porém é um texto realmente intrigante e que pode ser obtido facilmente por meio da internet. Diz ele, em resumo, que certa vez uma floresta foi acidentalmente incendiada. Quando os moradores daquela região conseguiram dominar o fogo, notaram que havia entre as cinzas alguns porcos completamente assados. Foi então que se descobriu a verdadeira delícia que era aquela carne, até então servida crua.
A partir daquele momento, "logicamente", toda vez que se pretendia saborear um porco assado, tocava-se fogo na floresta. Com o passar do tempo e o conseqüente aumento da demanda, foi necessário aprimorar as técnicas de ignição e, principalmente, de controle dos suínos – que, como se sabe, são animais arredios por natureza e não se lançam ao fogo tão facilmente.
Então o "sistema" teve que ser "aperfeiçoado". Diversos profissionais foram treinados (inclusive em Universidades estrangeiras). Criaram-se áreas de atuação específicas e, consequentemente, toda uma estrutura burocrática, que ao longo do tempo foi aumentada para gerir de forma mais "eficiente" todo o procedimento de assadura dos porcos.
Porém não tardou a que problemas surgissem, pois o "sistema" não dava mais conta da demanda, exponencialmente crescente. E havia sempre alguém a declarar que ele estava à beira da falência. Promoviam-se seminários, congressos e "audiências públicas", com a participação dos mais notáveis especialistas. Novas idéias surgiam e mudanças eram realizadas. Mas os problemas não só persistiam como aumentavam.
Um cidadão, cujo nome era João Bom-Senso, por fim resolveu dar a sua colaboração e encaminhou-se ao "Diretor Geral de Assamento" afirmando que o problema todo se resolveria a partir de uma prática muito simples. Ao invés de queimar a floresta, bastava matar o porco, limpá-lo e assá-lo, colocando-o sobre uma grelha acima de uma fogueira previamente preparada.
Embora aquele alto burocrata tivesse reconhecido a logicidade da idéia, ele concluiu que ela não funcionaria "na prática", pois não se previa solução para outro problema que surgiria em face da sua aplicação: o que se faria com todo o "sistema" (que se criou, evidentemente, a partir de uma concepção absolutamente equivocada do problema original?).
Não é preciso dizer que ele foi convencido pelo Diretor a abandonar as suas teorias, pois até mesmo poderia vir a enfrentar problemas na sua promissora "carreira" de "acendedor de bosques".
Vez por outra volto a ler esta estória e a encaminho para outros juízes. E a cada nova leitura ainda mais me convenço de que ela, sem que o seu autor ao menos imaginasse, tornou-se uma caricatura do que é hoje em dia o sistema federal de Justiça, especialmente os Juizados Especiais Federais (JEF’s) especializados em questões previdenciárias.
A meu ver (tentarei explicar o meu ponto de vista com mais profundidade adiante, a partir de um exemplo prático), a proliferação sempre insuficiente destes Juizados decorre de uma concepção originariamente equivocada de atuação Judicial e que tem contribuído para tornar toda a administração pública ineficiente.
2. Cada um deveria resolver os seus próprios problemas (o caso Viktor Navorski)
O que aconteceria hoje se uma mãe, que se considerasse dependente do filho falecido, resolvesse requerer ao INSS a fruição do benefício de pensão em função da sua morte? Se a Lei fosse efetivamente aplicada pela Autarquia Previdenciária, os seus agentes, inicialmente, inquiririam algumas testemunhas arroladas, nos termos do artigo 108 da Lei n. 8.213/1991 (Mediante justificação processada perante a Previdência Social, observado o disposto no § 3º do art. 55 e na forma estabelecida no Regulamento, poderá ser suprida a falta de documento ou provado ato do interesse de beneficiário ou empresa, salvo no que se refere a registro público).
Em seguida, profeririam uma decisão, confirmando ou não o fato da efetiva dependência. Se ela fosse favorável à beneficiária, ela passaria a receber, a partir da data de entrada do requerimento, o benefício respectivo. Se não, o requerimento seria indeferido e então o acesso ao Judiciário estaria livre, já que, a partir de então, haveria lesão a direito.
Porém, o magistrado, ao decidir a causa, faria a análise do procedimento administrativo para primeiro emitir um juízo acerca da sua validade: a pretensa dependente teve a ampla oportunidade de produzir a prova da sua alegação? Se sim, então ele estaria apto a produzir um segundo juízo a respeito do próprio mérito da pretensão, a partir da resposta à seguinte indagação: de acordo com as provas produzidas no processo administrativo, ela comprovou a alegada dependência econômica?
Se a resposta fosse negativa, a pretensão teria que ser rejeitada. Em caso contrário, o pedido seria acolhido, emitida ordem para que o benefício fosse pago e prolatada condenação do INSS no pagamento das parcelas em atraso desde a entrada do requerimento. Tudo isto, logicamente, sem a realização de qualquer prova, pois ela toda já estaria contida nos autos do processo administrativo (o mandado de segurança, por exemplo, seria a ação ideal).
Mas quem sabe como as coisas funcionam tem noção de que a Lei, neste aspecto em particular, raramente é observada. O que há, na vida real, é algo semelhante ao que foi retratado no filme "O Terminal", dirigido por Steven Spielberg.
Ele narra a estória de Viktor Navorski (interpretado por Tom Hanks), um cidadão que desembarca no aeroporto de Nova York no exato momento em que há um golpe de Estado no seu país de origem (a ficcional Krakozia). Os EUA não o reconhecem mais como nação e o seu visto perde a validade. Como não se pode voltar (devido à guerra civil instaurada) ou ser admitido na América, ele passa então a viver no aeroporto. Mas a situação se torna problemática para o administrador do terminal. E como ela é, de fato, insolúvel, ele resolve induzir Viktor a abandoná-lo, pois se isto acontecesse, ele se tornaria um P.O.P. (Problema de Outra Pessoa).
No filme, porém, Viktor (percebendo que iria entrar numa fria) decide ficar, obrigando a administração do terminal a resolver o seu próprio problema ao invés de repassá-lo às autoridades de imigração.
Mas no caso da pensionista, isto não acontece. Fora das telas, os agentes do INSS sequer admitem o processamento da justificação administrativa, fundamentando a sua decisão na ausência de "início de prova material" (a depender do ponto de vista, ela até poderia ser considerada correta) ou na mera não-comprovação da dependência econômica.
Porém, o mais interessante é que, ainda nos casos em que aquele "início de prova" existe, o benefício é indeferido e nunca (eu disse nunca) é realizada a justificação. Benefícios de pensão, nesta hipótese, tão-só são deferidos se a dependência econômica é provada por documentos que, por si só, já demonstram uma verdade incontestável (se a mãe, por exemplo, já constava há muitos anos como dependente do filho para efeitos de imposto de renda).
Na esmagadora maioria dos casos, a requerente recebe a decisão de indeferimento e, ao contrário de Viktor Navorski, passa pelas portas da agência do INSS em direção à rua e se torna um P.O.P. (Problema de Outra Pessoa).
Aliás, ela se torna um P.P.J. (Problema do Poder Judiciário).
3. O princípio constitucional do "coitadinho" e sua aplicação prática
E o que faz o Judiciário?
Ele recebe a pretensão da beneficiária, cita o réu e instrui o processo de forma integral – isto é, produz a prova oral em audiência, inquirindo as testemunhas que os agentes do INSS não quiseram inquirir (afinal, a obrigação de realizar a justificação, de acordo com a Lei, era deles e não do Juiz).
Mas se esta é uma atribuição do próprio INSS, porque os Juízes em geral admitem que isto aconteça? Acredito que haja várias respostas, mas a principal é: "porque sempre foi assim" (em outras palavras, já se tornou normal tocar fogo no mato quando se quer assar carne de porco). O Judiciário assimilou esta atividade e a maioria dos Juízes já foi criada dentro desta realidade (anteriormente já foram advogados, servidores da Justiça ou do próprio INSS, procuradores federais, etc.) e nunca exerceram um Juízo crítico acerca desta questão (no meu próprio caso, apenas percebi este absurdo após já ter ouvido, provavelmente, mais de dez mil testemunhos).
Muitos Juízes com quem tenho discutido esta questão afirmam que até compreendem que o INSS está errado (e até admitem que, a depender do caso concreto, a hipótese pode caracterizar o crime de prevaricação), mas ficam com pena do segurado ou beneficiário, que ao ajuizar a sua demanda esperava uma resposta definitiva para a sua questão.
Eis aí uma hipótese de aplicação prática do princípio constitucional do "coitadinho".
Porém, o que tem acontecido nos últimos quinze anos é que esta transferência da atividade administrativa para os Juízes, com o consequente e óbvio aumento da sua carga de trabalho, tem forçado a criação de soluções (às vezes péssimas) dentro da própria Justiça ao invés de induzir a ampliação e a melhoria dos serviços do INSS. A criação dos JEF’s, especialmente os previdenciários, e a demanda crescente pela sua expansão são a prova mais evidente da falta de solução do verdadeiro problema. Hoje, quase 100% das audiências designadas para a produção de prova oral naqueles Juizados são, na realidade, justificações administrativas que não foram realizadas no INSS (É necessário convir, todavia, que a estratégia é genial: eu transfiro o meu serviço para o Judiciário e ainda tenho o direito de contestar e recorrer se o Judiciário não o fizer direito).
Porém, isto deveria mudar. Mas, mudar por quê? Apenas por que os Juízes têm feito muitas audiências? Não, pois o efeito mais pernicioso desta situação é que o segurado ou beneficiário que efetivamente tenha direito a um benefício – e que poderia recebê-lo após poucos meses de tramitação de um processo administrativo simples, informal, sem direito a contraditório em favor do INSS ou a intermináveis recursos que ele pudesse interpor – tão-só o tem reconhecido ao final de uma demanda judicial que pode durar anos, pois os JEF’s se burocratizaram, estão congestionados e já não respondem com a efetividade que se pretendia tivessem quando foram criados.
E o pior de tudo é que este excesso de demanda é artificial, pois induvidosamente decorre da inoperância do Poder Executivo. A esmagadora maioria dos requerimentos de concessão de benefício, que demandariam a inquirição de testemunhas para a comprovação dos seus requisitos, é indeferida pelo INSS sem que a justificação administrativa seja realizada.
4. Mas qual é a solução (aliás, há solução?)
Só há uma forma de mudar esta realidade: devolver ao INSS o trabalho que sempre foi dele. Quando exerci o cargo de Juiz junto ao JEF Previdenciário de Itajaí – SC, não admitia que ao Judiciário fosse transferida tarefa que era da própria Autarquia. Costumava limitar o conhecimento da lide ao que efetivamente havia sido decidido no âmbito da administração e não acolhia pretensões que não tivessem sido lá de fato formuladas ou efetivamente decididas.
A sentença proferida nos autos JEF n. 2006.72.08.003294-9 dá a exata noção deste ponto de vista:
A cópia da carteira de trabalho do autor (fl. 40) prova que as anotações estão em ordem cronológica, sem rasuras aparentes e sem qualquer indício de que tenham sido adulteradas. Além disso, o INSS não juntou qualquer documento que pudesse elidir a sua presunção de veracidade. Desta forma, o contrato devidamente anotado e não considerado pelo INSS (2-8-1973 a 29-2-1980), deve ser computado no tempo total de serviço.
Este processo demonstra a absoluta falta de respeito do INSS pelos seus segurados e, principalmente, a total e induvidosa desconsideração (ou ignorância?) da lei vigente por seus servidores. O autor requereu benefício em 11-11-2005 (fl. 13). Juntou documentos relativos a atividade rural (fls. 14 e 20 a 26) e foi submetido a entrevista (fls. 26 a 29). A conclusão do entrevistador - que não se sabe quem é, pois não houve identificação - é representada pela seguinte pérola: "diz o declarante que a família trabalhava junto na lavoura em regime familiar" (é até compreensível que o emissor de tal bobagem quisesse permanecer anônimo). Nada mais! Em 15-2-2006 surge a "decisão" administrativa (fl. 35): "DESPACHO: 35 INDEFERIMENTO MOTIVO: 024 - FALTA DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO ATÉ 16/12/98 OU ATÉ A DATA DE ENTRADA DO REQUERIMENTO".
Nem uma única palavra acerca do motivo pelo qual o tempo de serviço rural não foi computado. Trata-se de evidente negativa de vigência do inciso I do artigo 50 da Lei n. 9.784/99: "Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses" (grifei).
Além disso, apesar da óbvia existência de início de prova material, ignorou-se outro dispositivo de lei vigente, o artigo 108 da Lei n. 8.213/91: "Mediante justificação processada perante a Previdência Social, observado o disposto no § 3º do Art. 55 e na forma estabelecida no Regulamento, poderá ser suprida a falta de documento ou provado ato do interesse de beneficiário ou empresa, salvo no que se refere a registro público" (grifei).
Início de prova material, como disse, efetivamente há (fls. 14 e 20 a 26), razão pela qual acolho parcialmente a pretensão do autor para: [a] declarar a existência do vínculo empregatício no período de 2-8-1973 a 29-2-1980; [b] declarar a existência de início de prova material para fins de reconhecimento de atividade rural (30-7-1963 a 1-8-1973); e [c] determinar ao INSS que reabra o procedimento administrativo de interesse do autor, proceda à justificação, intimando-o a apresentar rol de testemunhas e outras provas, se desejar; e, [d] por fim, decida de forma motivada o seu requerimento, indicando expressamente os fatos e fundamentos jurídicos na hipótese de negativa do seu eventual direito.
Lavre-se ofício ao Superintendente do INSS em Santa Catarina e ao Procurador da República em Itajaí, a fim de que tenham ciência do ocorrido nos autos do PA n. 137.388.477-8 e tomem as providências que a hipótese exige.
Se não houver uma mudança radical e genérica neste sentido, não tenho dúvidas que no futuro continuaremos a ter um INSS ruim – porém, além disso, teremos JEF’s ainda piores, pois com o incremento da demanda fatalmente haverá necessidade de ampliação. E, cedo ou tarde, ela esbarrará em contingências orçamentárias e a qualidade dos serviços prestados continuará a decair (nesse dia, então, os segurados e beneficiários não terão mais a quem recorrer).
5. Conclusão
A crescente assimilação e a direta realização de atividades tipicamente administrativas pelo Poder Judiciário, além de inconstitucional, têm contribuído para que toda a administração se torne cada vez mais ineficiente. As soluções que deveriam ser fomentadas no âmbito da própria Autarquia não têm sido sequer consideradas. Isto porque os atos administrativos que, de acordo com a Lei, lá deveriam ser praticados têm sido ilicitamente (em muitos casos criminosamente) transferidos aos Juízes Federais, que na prática se transformaram, sem se aperceber, em chefes de agência do INSS.
À Justiça deve ser reservada a tarefa de controlar a legalidade dos atos administrativos seus e dos demais poderes – não lhe cabe praticá-los diretamente. Se não há estrutura material e de pessoal suficientes para que o próprio Poder Executivo exerça as suas atribuições, este é um problema que ele mesmo deve resolver (a Receita Federal do Brasil não teria atingido o nível de excelência que possui hoje se esta fosse uma tarefa impossível).
Os segurados e beneficiários da Previdência Social que possuem direito a um benefício com certeza gostariam de recebê-lo sem necessidade do ajuizamento de qualquer demanda. Em suma, elesquerem ser vistos como um problema do próprio INSS e não como um problema de outra pessoa.