RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar ser inadequado o Parecer 055/2006, emanado da Advocacia Geral da União, como instrumento que vise vincular a Administração Tributária no sentido de que a mesma se abstenha de constituir créditos do Fundo de Previdência, com fundamento na solidariedade, em nome da administração pública. Embora parte da doutrina entenda haver sido extinto tal mecanismo do nosso ordenamento, após a vigência da Lei 9.711/98, veremos que não é bem assim. Sobrevive tal instituto à vigência desta Lei.
Palavras-chave: Solidariedade passiva. Administração pública. Contribuição social.
1.INTRODUÇÃO
A solidariedade passiva, por si só, apresenta-se como um tema ainda carregado de controvérsias na seara do Direito Tributário. Ganha maior importância quando esta solidariedade, como é o caso do objeto do presente estudo, penaliza o próprio ente estatal.
Hodiernamente, quando se proclama a vitória da tese do Estado mínimo, fundada na constatação de que o mesmo não dispõe de recursos para atender o desejável e necessário aos seus cidadãos, temos, em relação ao tema proposto, o desafio de demonstrar que poderia ser um pouco melhor. Isto porque o Estado, ao assumir - através do instituto da solidariedade - pagar duas vezes pelo mesmo produto, está a mal versar o dinheiro dos contribuintes, gerindo da forma mais indesejável os interesses da comunidade e permitindo que particulares se apropriem ilegalmente destes recursos.
Justificam o enfrentamento do problema e solidificam a relevância prática da questão dois interesses que se contrapõem: de um lado, a instituição previdenciária, que busca receber os direitos com os quais mantém o sistema de seguro previdenciário funcionando (pagando seus segurados) e, de outro lado, o cidadão/sociedade (União, estados, municípios), que pagam seus tributos para ver o dinheiro aplicado eficaz e corretamente naquilo que são suas necessidades. Tais as razões que entendemos socialmente válidas para autorizar o enfrentamento da questão.
Também contribui para dar maior importância a este trabalho o fato de haver escasso debate doutrinário. Poucos estudiosos debruçaram-se sobre o assunto; não apenas em relação à solidariedade passiva dos entes da Administração Pública relativa às contribuições previdenciárias, mas em relação ao próprio ramo do Direito Previdenciário. A propósito, temos, inclusive, posições doutrinárias que entendem não existir, atualmente, o instituto da solidariedade para garantia do crédito previdenciário. Neste sentido, o Parecer AC-055/2006, da Advocacia Geral da União vinculando a Administração Tributária e as representações jurídicas da União à determinação de não constituição – ou, se constituído, a não execução – de créditos previdenciários oriundos da solidariedade, quando o sujeito passivo for órgãos da União. Esta e outras questões serão enfrentadas no sentido de, ao final, termos algo capaz de nos subsidiar para avaliarmos a eficácia do instituto da solidariedade, no específico caso dos entes públicos, para garantia do crédito previdenciário.
2.DA CONTRIBUIÇÃO PARA A PREVIDÊNCIA SOCIAL
MACHADO (1997, p. 305), lecionando sobre as contribuições sociais, espécie tributária da qual é sub-espécie a contribuição para a Previdência Social, afirma: "Com características ora de imposto, ora de taxa, as contribuições ditas paraestatais, ou sociais, ou de previdência, constituem para a doutrina jurídica, nacional e estrangeira, um ponto de intermináveis controvérsias." De fato, quando palmilhamos as veredas do sistema tributário nacional, à luz de nossa Carta Magna, não há como negar que assiste razão ao nobre doutrinador.
É terreno deveras complicado.
A começar porque a maioria dos doutrinadores refere-se às várias contribuições para a seguridade social como se fossem uma. A rigor, mesmo a Lei 8.212/91, que denomina a contribuição prevista no art. 195, inciso I, a e inciso II de contribuição da seguridade social, seria mais precisa e correta se as denominasse de contribuição previdenciária. Porque tais contribuições são específicas para o custeio da Previdência Social e não podem, de forma alguma, ser dirigidas a outros fins que não o pagamento de benefícios da Previdência Social, mesmo que para a seguridade social (saúde e assistência social).
Cabe perguntar o porquê de tal posicionamento, se mesmo a Constituição Federal chama-a de contribuição para a seguridade social no art. 195. É verdade. Porém, a Constituição no art. 195 faz referência a um grupo de contribuições para a seguridade social, dentre elas as destinadas ao custeio do sistema previdenciário.
Como já vimos, a seguridade social, no nosso sistema constitucional, é conceito abrangente. Envolve saúde, assistência social e previdência social. Assim, temos que previdência social está inclusa na seguridade social; o contrário, por óbvio, não se sustenta. Já a Lei 8.212/91 apenas trata das contribuições destinadas ao sistema previdenciário [01], daí a posição aqui defendida. Poucos doutrinadores e jurisconsultos, além dos próprios operadores das instituições envolvidas, i.e., servidores da Receita Federal do Brasil e do Instituto Nacional do Seguro Social, fazem tal distinção.
Depois, porque esta contribuição possui algo de sui generis em sua constituição: natureza de imposto e taxa numa mesma espécie tributária. De um lado, imposto, quando analisamos a partir da perspectiva da empresa, que contribui sobre o total de sua folha de salários – a chamada quota patronal – sem, no entanto, receber algum benefício, haja vista que a mesma não se aposenta. Por outro lado, se configura como taxa quando a análise considera o enfoque do empregado que contribui sobre sua remuneração – dentro de um limite – tendo como reciprocidade uma promessa de benefício futuro. Isto torna complexa sua compreensão.
Desta forma, a espécie tributária em estudo está inclusa no gênero contribuições sociais, distingue-se das outras e qualifica-se de previdenciária, em síntese, por se destinar a uma finalidade específica, qual seja custear o sistema previdenciário público brasileiro. Há que se considerar, também, não se tratar de retribuir uma atividade estatal divisível referente a pessoa específica, mas de ingressos qualificados pela destinação. Atente-se para o fato de que o sujeito passivo deve pagá-las ainda que não chegue a utilizar o sistema por elas financiado. Trata-se de assumir riscos de eventos cuja existência real pode não ocorrer.
2.2.Natureza Jurídica [02]
Nas palavras de MARTINS (2004, p. 90), "Analisar a natureza jurídica de um instituto é procurar enquadrá-lo na categoria a que pertence no ramo do Direito". A doutrina e a jurisprudência pátrias, durante muito tempo, mantiveram em seu seio um debate acalorado em torno da questão, apenas amainado com o advento da Constituição de 1988, quando a mesma pôs fim à polêmica informando, sem reticências, o caráter tributário das contribuições sociais, aí inclusa a previdenciária. Porém, até que isso ocorresse, várias teorias buscaram dar respostas ao problema
O mesmo MARTINS (2004, p. 90), fazendo um apanhado sobre as mesmas, enumerou seis correntes distintas: teoria do prêmio de seguro; teoria do salário diferido; teoria do salário atual; teoria fiscal; teoria parafiscal e teoria da exação sui generis. Não nos aprofundaremos muito no assunto, até porque não é o objeto do presente trabalho, mas podemos dizer que, à exceção da teoria fiscal, as demais não resistem a um exame mais minucioso.
Tal teoria, em síntese, entende ser a contribuição previdenciária uma espécie de tributo, considerando seu aspecto compulsório e previsão legal. Os que a contestam o fazem pelo frágil motivo de que a mesma não se enquadra nas espécies elencadas pelo art. 5º do CTN, i.e., imposto, taxa ou contribuição de melhoria. Portanto, a teoria fiscal, brindada pelo atual sistema constitucional, apresenta-se mais coerente em relação às demais. De fato, não mais há dúvidas sobre o caráter tributário da contribuição previdenciária. Poucas e inaudíveis são as vozes dissonantes. Senão vejamos: esta contribuição é prestação pecuniária; é compulsória e prevista em lei; não constitui sanção de ato ilícito; sua cobrança é feita via atividade administrativa plenamente vinculada; a execução de seus créditos se dá pela Lei 6.830/80.
3.DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO SUJEITO PASSIVO DA RELAÇÃO JURÍDICO TRIBUTÁRIA
Segundo JORGE (2005, p. 1), para compreendermos o presente e projetarmos para o futuro as hipóteses plausíveis, necessário se faz conhecer os fenômenos do passado. Costumamos pagar um preço muito alto quando não damos a devida importância à compreensão histórica dos fatos. Isto é regra em relação a todo o conjunto da vida em sociedade, máxime em relação aos institutos do direito, haja vista serem estes uma construção histórica. Fazemos a afirmação supra apenas para, de forma rápida, verificarmos, no ordenamento pátrio, os momentos em que o instituto da solidariedade, em relação às contribuições devidas ao Fundo Previdenciário, foi aplicado à Administração Pública.
Num primeiro momento tivemos a Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS, Lei 3.807 de 26 de agosto de 1960, que regulamentou a questão da solidariedade tributária entre contratante e contratado no que diz respeito à contratação de empreiteiros, em obra de construção civil. Posteriormente, veio a lume o Decreto nº 89.312, de 23 de janeiro de 1984, expedindo nova edição da Consolidação das Leis da Previdência Social mantendo o entendimento asseverado, nos termos do artigo 139, parágrafos 2º e 3º.
Nesse período, portanto, o proprietário é solidário tributário com o construtor quanto ao cumprimento das obrigações previdenciárias. Considerando que a Administração Pública se enquadra no conceito de proprietário, decorre daí que, neste período, ela se submetia ao instituto em estudo. Após, adveio o Decreto-Lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1986, dispondo sobre licitações e contratos da administração pública federal, neste momento excluindo expressamente, em seu art. 61, a solidariedade da Administração Pública quanto aos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais. Ressalte-se que apenas aqui temos uma regulação dos contratos com a Administração Pública. Como pode ser observado, pela data de vigência do Decreto-Lei 2.300, o mesmo estava sendo publicado quando uma Assembleia Constituinte acabara de ser eleita. O mesmo foi recepcionado pela nova Carta Política e sua previsão, no que diz respeito ao tema tratado, teve vida curta; ou seja, a proibição expressa da aplicação da solidariedade à Administração Pública por conta de créditos previdenciários oriundos da execução de seus contratos com particulares, deixou de ter vigência quando sobreveio a Lei 8.212 de 24 de julho de 1991. Esta lei, em seu art. 30, inciso VI e art. 31, institui novamente a solidariedade tributária do contratante.
Ocorre que, num espaço de apenas dois anos, novamente temos uma mudança de rumos provocada agora pela nova lei de licitações e contratos. Esta Lei, a 8.666 de 21 de junho de 1993, estabeleceu normas gerais sobre licitações e contratos com a Administração Pública nos três níveis de governo, revogando o citado Decreto-Lei nº 2.300, porém revigorando o entendimento esposado pelo mesmo no que concerne à solidariedade dos entes públicos; qual seja, o da inexigibilidade da solidariedade tributária entre contratante e contratado na obra de construção civil contratada por órgãos públicos, de acordo com o seu artigo 71. Porém, a partir das Leis nº 9.032, de 28 de abril de 1995, e nº 9.129, de 20 de novembro de 1995, alteradoras de dispositivos da Lei 8.212/91, restaurou-se o instituto da solidariedade para os casos estudados; ou seja, à luz do atual ordenamento em vigor, pode a Administração Pública responder solidariamente pelos créditos previdenciários cujo fato gerador tenha origem na execução de contratos celebrados entre a Administração Pública e o particular.
O último movimento produzido pelo legislador no instituto da solidariedade foi a Lei 9.711, de 20 de novembro de 1998 – com a qual alterou-se o disposto no art. 31 da Lei 8.212/91, para instituir a retenção de 11% (onze por cento) sobre o valor da fatura de cessão de mão-de-obra e o repasse, incontinenti, ao Fundo Previdenciário – transformando o vínculo da relação antes indireta (através da solidariedade) para responsabilidade direta (através da substituição do sujeito passivo da obrigação tributária).
Ressalte-se que a alteração deu-se apenas em relação a este objeto contratual, isto é, cessão de mão-de-obra. Tal alteração legislativa produziu um emaranhado de interpretações, a ponto de parte da doutrina entender não haver mais solidariedade da administração pública em relação às obrigações previdenciárias de seus contratados.
4.DA SOBREVIVÊNCIA DA SOLIDARIEDADE IN CASU APÓS VIGÊNCIA DA LEI 9.711/98
No entender de MARTINS (2004, p. 245), a alteração no art. 31 da Lei 8.212/91 promovida pela Lei 9.711/98, substituindo a responsabilidade solidária do contratante pela retenção de 11% (onze por cento) sobre a nota fiscal ou fatura da contratada, extinguiu por completo o instituto da solidariedade em relação aos contratos celebrados pela Administração Pública. No seu entendimento, apenas restou a obrigação de reter o percentual acima, aplicado sobre o valor bruto da nota fiscal ou fatura da empresa contratada.
Porém, data venia, discordamos da posição do ilustre professor. Acreditamos que seu entendimento decorre de uma interpretação isolada do art. 31 da Lei 8.212/91, além do fato de não ter atentado para a sentença "[...] serviços executados mediante cessão de mão-de-obra [03]" constante do referido artigo. Expliquemos, a partir da segunda afirmação, começando por ver o que diz o indigitado art. 31 da Lei 8.212/91, in verbis:
Art. 31. A empresa contratante de serviços executados mediante cessão de mão-de-obra, inclusive em regime de trabalho temporário, deverá reter onze por cento do valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços e recolher a importância retida até o dia dois do mês subseqüente ao da emissão da respectiva nota fiscal ou fatura, em nome da empresa cedente da mão-de-obra, observado o disposto no § 5º do art. 33. (Redação dada pela Lei nº 9.711, de 20.11.98)
Ao se referir à forma de contratação, especificando a cessão de mão-de-obra, a lei reconhece, implicitamente, outras formas de contratar. E, de fato, outras formas existem e podem ocorrer. Ao se limitar à forma supra, a lei regulou, para o fato, apenas esta modalidade contratual, deixando fora, v.g., a contratação por empreitada total, e isto altera radicalmente a conclusão sobre a subsistência da responsabilidade solidária após o advento da Lei 9.711/98.
A propósito da cessão de mão-de-obra, o conceito legal apresenta alguns elementos que merecem de nossa parte algumas considerações, são eles: dependências de terceiros, serviços contínuos e colocação à disposição da empresa contratante. Encontramos as definições destes elementos nos parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 143 da Instrução Normativa SRP nº 3 de 14 de julho de 2005. Ali temos uma evidente limitação para o enquadramento pretendido, qual seja o de que todos os contratos com a Administração Pública devam estar compreendidos no disposto do artigo 31 da Lei 8.212/91. Apenas, e tão somente, se o contrato puder passar pelo crivo destes conceitos é que poderá se submeter à retenção obrigatória prevista na lei 9.711/98.
Em relação ao aspecto de que deve-se à interpretação isolada do disposto no art. 31 da Lei 8.212/91 o entendimento de que não haveria mais a responsabilidade solidária da Administração Pública, vamos tentar nos fazer entendidos.
Temos, no dizer da Lei 8.666/93, art. 10, que as obras e serviços da Administração Pública poderão ser executados de forma direta, quando a própria Administração os executa; e indireta, quando contratados terceiros para tal fim. Atente-se para o fato de que apenas sobressai, com rigor, duas formas: empreitada e tarefa, sendo que a primeira se apresenta como gênero da qual decorrem três espécies. A lei atreve-se a conceituar [04], porém, segundo DI PIETRO (2004, p. 287), "não dá idéia nem aproximada do que sejam essas várias modalidades ou da distinção entre uma e outra, além de deixar de mencionar a concessão de obra pública".
Das hipóteses de empreitada citadas na lei temos que, basicamente, se distinguem pela maneira como são remuneradas. É o que ocorre com a empreitada por preço global, quando o pagamento é total e por preço unitário, em que a execução se dá por etapas e pago por unidade de execução. Essencial, em relação ao contrato de empreitada, é o fato de que no mesmo não existe relação de subordinação entre contratante e contratado; assim, a Administração comete ao particular a execução de obra ou serviço, para que o mesmo o execute por sua conta e risco, mediante remuneração previamente acertada. Estas definições têm validade para dirimir dúvidas quando o fato a solucionar disser respeito às aquisições da Administração, ou seja, as definições valem para o objeto desta lei: a licitação.
De outro lado, sendo a 8.212/91 uma lei especial, tem-se que a mesma tem prioridade na solução dos problemas que se apresentam no seu objeto de regulação, i.e., o custeio do sistema previdenciário brasileiro. Nesta lei, a empreitada [05] pode se dar de forma total ou parcial. E aí, chegamos ao ponto do problema: apenas há previsão obrigatória de retenção dos 11% (onze por cento) sobre a nota fiscal ou fatura do contratado nos casos de cessão de mão-de-obra ou empreitada parcial; a empreitada total se manteve com o instituto da solidariedade, que pode ser elidido com a retenção facultativa feita pelo contratante. O ponto de partida para tal interpretação se encontra no art. 30, inciso VI da Lei de Custeio da Previdência.
Importante verificar, também, a legislação infralegal como o art. 220, do Decreto 3.048 de 06 de maio de 1999 e art. 413 e incisos da Instrução Normativa 03 de 14 de julho de 2005 para uma melhor compreensão dos conceitos aqui tratados. Ora, fica evidente que a Administração Pública pode enquadrar-se como contratante de obras na figura de proprietária dos imóveis ou, no mínimo, como dona da obra. Também, a quase totalidade de seus contratos de obra de construção civil, caso aqui tratado, se dá pela forma da empreitada total. A propósito disso, a própria legislação previdenciária trata de aproximar os conceitos da Lei de Licitações aos seus, conforme prevê o art. 185, seus incisos e parágrafo, da Instrução Normativa SRP/03/05.
A favor da doutrina aqui combatida deve-se dizer que, de fato, em relação a todas outras situações, a Lei 9.711/98 extinguiu a responsabilidade solidária da Administração Pública; restando, apenas, em relação às obras de construção civil, desde que contratadas por empreitada total; é o que, explicitamente, dispõe os arts. 169 e 176, incisos, da supracitada IN 03/05. Aplicável a retenção, portanto, à contratação por empreitada parcial e de mão-de-obra, além da cessão de mão-de-obra.
Ainda cabe esclarecer que, enquadrando-se na situação de retenção, não fazendo-a, a Administração passa a responder diretamente pelo valor que deveria ter retido, uma vez que se presume feita a retenção.
É de se ver que, pelo fato de apenas restar esta possibilidade de enquadramento no regime da responsabilidade solidária, poderíamos imaginar que seria irrisória a participação no conjunto das contratações promovidas pela Administração Pública, i.e., pelo fato de tal regime ter sobrevivido apenas aos casos de contrato de empreitada total, a solidariedade ficaria em desuso. A verdade é que poucos são os contratos da Administração Pública que não se enquadram na situação de empreitada total, portanto, na modalidade que impõe ao ente público o regime da responsabilidade solidária.
Cabe ainda ressaltar que – considerando a interpretação teleológica - o legislador, quando aprovou a Lei 9.711/98, não tinha em mente enfraquecer ou reduzir os instrumentos de garantia do crédito previdenciário, muito pelo contrário. Buscava ele uma forma mais eficiente e de menos custo que permitisse o órgão encarregado da arrecadação e fiscalização previdenciária cumprir seu mister.
Tanto assim é que, em diversos julgados sobre a legitimidade da Lei 9.711/98, a justiça pátria se manifestou no sentido de que a mesma apenas apresentava uma nova forma de arrecadação. Trazemos à colação, para confirmação, dois exemplos buscados na jurisprudência do STJ: (RESP 410.355; Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma; DJ 13/05/02; RPFE – INSS p. 168) e (RESP 421.886; Rel. Min. José Delgado, 1ª Turma; DJ 10/06/02; RPFE – INSS p. 179). Tem-se, desta forma, que a modificação provocada no sistema de recolhimento da contribuição previdenciária pela Lei 9.711/98 – buscando com isso, maior eficiência no acompanhamento dos prestadores de serviço, setor que historicamente tem se mostrado de difícil controle – teve o objetivo de aumentar a garantia do crédito previdenciário, não a sua redução. Ao mudar o mecanismo de arrecadação utilizando-se do contratante como substituto tributário para os casos que já mencionamos, melhorou-se o controle dos prestadores de serviço e cedentes de mão-de-obra.
Porém, em relação à Administração Pública, na forma pretendida por MARTINS, não desapareceu a responsabilidade solidária. Ela sobrevive nos moldes do que afirma JORGE (2005, p. 425): "Em outras palavras, quando se tratar de empreitada total, o único regime possível será o da responsabilidade solidária". À guisa de conclusão, fechando este tópico, como elementos concordes, pontuamos:
Primeiro, o fato de a própria Lei de Licitações prever expressamente não ser a Administração responsável pelo descumprimento de obrigações trabalhistas, fiscais e comerciais do contratado e, em parágrafo apartado, determinar a responsabilidade solidária da mesma em relação aos créditos previdenciários oriundos da execução contratual; ou seja, não é por acidente de interpretação, é vontade da lei que o crédito previdenciário goze de tais privilégios.
Segundo, esta solidariedade aplicada à Administração em decorrência da inadimplência de seus contratados não decorre de ação isolada e impensada; a verificar o histórico da regulação do procedimento licitatório, veremos que tal comportamento se dá desde antes do atual sistema constitucional. Apenas para ficar com a legislação estudada, tivemos o Decreto-Lei 2.300/86, portanto anterior à vigência da atual Constituição, e, após esta, a Lei 8.666/93 que, embora num primeiro momento acomodasse pensamento diverso, teve a posição da responsabilização restabelecida. Portanto, por muito pouco tempo vigorou em nosso ordenamento a exclusão da desta responsabilidade.
Terceiro, há de se considerar que antes da vigência da Lei 9.711/98 havia um leque de situações que propiciavam a ocorrência da responsabilidade solidária que, a rigor, a lei não tinha a intenção de reduzir. De tal leque, ela excluiu aquelas abrangidas pelo art. 31 da Lei 8.212/91 e impôs mecânica diferente. Na nova metodologia, o contratante, ao invés de solidário, passava a contribuinte direto se não fizesse a retenção, já que a mesma se presume feita. A finalidade da lei é melhorar o controle e não se desfazer dele.
Finalmente, a subsistência apresenta-se incontestável no mundo das coisas, frente à posição administrativa através do Parecer 055/2006, emanado da Advocacia Geral da União com atributo vinculador, determinando à Administração Tributária constituir os créditos apenas em nome do contratado. Analisaremos logo abaixo tal Parecer.
4.2.Análise do Parecer AGU [06] Nº AC-055 de 17/11/2006
A administração tributária previdenciária foi surpreendida com a publicação no Diário Oficial da União nº 225, de 24/11/2006, do Parecer AGU nº AC-055, de 17/11/2006, cujo teor, em síntese, entende não haver solidariedade da Administração Pública em relação às contribuições para a Previdência Social cujo fato gerador está previsto no art. 30, inciso VI, da Lei 8.212/91. São os seguintes os termos do Parecer aprovado, in verbis:
2.O Parecer AGU/MS 08/2006 analisa cada uma das espécies e a legislação pertinente - esta inclusive pelo perfil histórico - concluindo, à vista do art. 71 e §§ da Lei nº 8.666/93 e arts. 30, VI e 31 da Lei nº 8.212/91 (com as diferentes redações, bem assim a legislação previdenciária e de licitação anterior), no sentido de que na hipótese de contratação de serviços para execução de obra mediante cessão de mão de obra - art. 31, Lei 8.212/91- a responsabilidade do contratante público é tão só pela retenção (portanto obrigado tributário, não devedor solidário) sendo que nos contratos de obra não tem a administração qualquer responsabilidade pelas contribuições previdenciárias.
Tal Parecer, aprovado pelo Presidente da República, carrega o atributo da vinculação prevista no art. 40, parágrafo primeiro da Lei Complementar 73, de 10 de fevereiro de 1993. Não há se negar virtude à intenção; porém, é preciso analisar se a solução e o instrumento adotado são os adequados e atendem às formalidades que se espera num Estado Democrático de Direito. Vejamos então:
A Um, é de ressaltar e louvar a preocupação do ilustre parecerista da Consultoria Geral da União, no sentido de buscar maior eficiência, evitar um incessante bater-cabeça da Administração consigo mesma – além de reduzir o mais importante: a farra dos gastos que isto proporciona – nos processos que tramitam na Justiça, cujo objeto é a discussão da solidariedade aplicada aos entes da Administração Federal em relação aos créditos previdenciários.
Tal percepção é extraída dos próprios fundamentos do Parecer e do que lhe motivou a vinda ao mundo fenomênico. Com efeito, ali é informado que a Administração criou câmaras de conciliação e arbitramento - após improvisações na interpretação - com a finalidade de evitar a lide na Justiça; sendo que a lide se daria entre si e consigo mesma. Merece louvor porque, independente de qualquer resultado, tem o mérito de evitar o abarrotamento dos Tribunais com um enfrentamento inútil, reduzir gastos, poupar tempo, além de evitar que as interpretações dicotômicas ultrapassem os muros da própria Administração; algo que pareceria incoerente e que contribuiria para tornar menos palatável a Administração aos administrados.
A Dois, tal Parecer, como é sabido, não tem o condão de mudar o que a lei dispõe. A mudança na lei só se admite pela via de outra lei. Esclarecemos: como afirmamos supra, a própria existência do Parecer é o reconhecimento de que a solidariedade subsistiu à Lei 9.711/98; ela nasceu em decorrência de lei; Atentemos, ainda, para o fato de que o desuso não faz com que a lei perca sua eficácia formal, ou seja, formalmente a lei existe e vige, apesar de na realidade não ser observada por ninguém.
Segundo a LICC a revogação tácita se dá quando lei posterior seja incompatível com lei anterior, ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. Isto quer dizer que a disposição da Administração de não fazer uso do instituto, como deseja o Parecer da Consultoria-Geral da União, não vai revogá-lo. A rigor, no direito privado, esta é uma das propriedades do instituto: a de que o credor escolhe a quem executar. Portanto, se a Consultoria-Geral da União faz uso desse atributo do instituto (o de retirar do pólo passivo o ente público), está a reconhecer a vigência - no ordenamento - da solidariedade.
Porém lembremos que, no caso, não se trata de direito privado. Em princípio, não poderia o servidor público, investido na atribuição de lançar o crédito tributário, decidir deixar de nominar todos os possíveis sujeitos passivos do referido crédito, sob pena da punição por prevaricação. Isto quer dizer, a priori, que a liberdade de escolher a quem executar na cobrança do crédito, algo próprio do instituto da solidariedade no direito privado, não funciona assim de modo tão discricionário no direito público. Isto porque abriria espaço à violação do principio constitucional da impessoalidade, entre outros.
A Três, a constituição do crédito tributário é ato totalmente vinculado. O lançamento, com previsão legal detalhada da sua forma de execução, é ato mais vigiado que a prolação de uma sentença penal, pois esta apenas depende da convicção do magistrado, que, como sabemos, lida com os bens jurídicos mais preciosos para o cidadão.
No lançamento, a lei determina que se faça, entre outras coisas, a qualificação dos sujeitos passivos da obrigação tributária, não deixando margem para discricionariedade de qualquer espécie. A fuga a esta determinação pode, e deve, levar o agente tributário a responder pela desobediência. Em tal grau de vinculação à lei, em sentido estrito, não pode um parecer pretender sobrepor-se. A aceitar isto, ou seja, constituir ou não o crédito tributário tendo como fundamento um parecer (porque é isto que ocorreria como resultado da aplicação do mesmo), estaríamos a violentar de forma drástica o Estado de Direito. Tal ato desconheceria o princípio da legalidade. Até pode-se compreender que a representação jurídica da União eleja qual contribuinte – dentre os solidários – irá executar, levando em consideração o interesse público, diga-se; porém, não há como obrigar que o ato constitutivo do crédito não seja tão somente aquele determinado na lei; e, neste caso, elencar todos os sujeitos passivos que a lei prevê.
A Quatro, há que se lembrar que estamos tratando de contribuição para previdência social, ou seja, é uma espécie tributária, mas de propriedade do trabalhador. Cabe aqui contrariar alguns formadores de opinião que, não raramente e por conta da ignorância sobre o assunto, afirmam ser os recursos do Fundo Previdenciário do cidadão ou do trabalhador brasileiro. Não é assim. É do trabalhador, brasileiro ou estrangeiro, que contribuiu para o sistema.
O disposto na Constituição que autoriza usar o orçamento público – portanto, recursos oriundos de outras espécies tributárias, principalmente impostos – para cobrir déficits do sistema não transforma o Fundo em patrimônio de todos, uma vez que tal disposição apenas torna o orçamento uma espécie de fiador ou garantidor. Esta garantia é dada em função de que o Estado retira compulsoriamente recursos do trabalhador, utilizando-se de prepostos – o empregador – e assumindo a função de fiscalizar e arrecadar estes recursos fundado em sua competência tributária.
Ressalte-se que a Constituição criou um conselho, CNPS, cuja missão é definir e deliberar as políticas do sistema; inclusos ai, por óbvio, as renúncias de receitas. O parecer, desta forma, determina a perda da garantia de um crédito, que não pertence à União, frise-se, e não coloca nada em seu lugar. Outro problema que o Parecer não resolve é o que diz respeito aos créditos constituídos em nome dos outros entes da federação, quais sejam, Estados e Municípios, que pagaram ou parcelaram estes créditos, cujos valores não são irrisórios no conjunto de seus débitos com a Previdência Social. Neste momento estes entes estão honrando estas obrigações.
A Cinco e mais importante, é necessário sim retirar este ônus da administração pública, mas da forma possível no atual ordenamento jurídico: através de lei formal. Porém, algo deve ser colocado algo em seu lugar. Não podemos apenas quebrar o Fundo Previdenciário, retirando-lhes as garantias que surgiram com ele; temos que deslocar esta responsabilidade para o gestor. Foram os gestores que submeteram a Administração ao pagamento duplo do crédito previdenciário; isto porque a Administração Pública pagou ao liquidar o contrato – cujo preço licitado levou em conta as despesas tributárias do mesmo – e novamente paga ao ser incluída por solidariedade na constituição do crédito. A rigor, este comportamento do gestor já tem penalidades previstas na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) e deveriam ser estas as primeiras providências, porque mai eficaz é a responsabilização destes gestores baseada na referida Lei.
Porque estas são medidas necessárias? Porque da situação in concreto apenas pode ser possível duas realidades: ou o servidor da administração tributária cometeu excesso na exação, e portanto também deve ser punido; ou o gestor do ente fiscalizado deixou de cumprir determinação legal - uma vez que a lei previdenciária prevê como elidir a solidariedade passiva - e, assim procedendo, permitiu, no mínimo, que terceiros se apropriassem de receitas públicas.