É impressionante como o legislador brasileiro, com certa frequência, não consegue superar algumas deficiências do ordenamento jurídico. A criminalidade organizada está avançando a cada dia, já tomou conta de vários setores públicos e privados, gera grande intranqüilidade na sociedade mas, mesmo assim, ainda não foi tratada com a devida atenção no plano legislativo. O atraso da legislação brasileira é mais que evidente. Mas talvez seja insuperável no âmbito da criminalidade organizada.
No art. 1º da Lei 9.034/1995 (com redação alterada pela Lei 10.217/2001) salienta-se que ela cuida dos ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando (1ª hipótese) ou organizações (2ª hipótese) ou associações criminosas de qualquer tipo (3ª hipótese).
O delito de quadrilha ou bando está definido no art. 288 do CP, a lei de drogas (Lei 11.343/2006) define uma hipótese de associação criminosa para o tráfico, mas nenhum diploma legal no Brasil definiu o que se entende por organizações criminosas. A lacuna legislativa é patente (e vem sendo denunciada há muitos anos). Nenhum juiz pode, por analogia, chegar a essa definição legal por conta própria (sob pena de violação do princípio da legalidade, donde decorre a proibição de analogia contra o réu). O tratado de Palermo tampouco ajuda, seja porque cuida da criminalidade transnacional (que não se confunde com a interna, nacional), seja porque os tratados que não possuem valor supraconstitucional (conta com esse status o Tratado de Roma, v.g., que criou o TPI) não podem disciplinar delitos que valem para o âmbito interno de cada país (porque nosso Poder Legislativo, nesse caso, só ratifica o tratado, não tendo poder de cuidar ou alterar suas definições).
A lei atual (sobre criminalidade organizada) cuida da ação controlada, da quebra do sigilo fiscal, bancário, financeiro e eleitoral, da interceptação ambiental e do agente infiltrado (art. 2º). Para além da pobreza normativa (veja, por exemplo, a questão do agente infiltrado, que foi disciplinada em apertadas linhas), a problemática mais séria reside na miséria estrutural da polícia e do Ministério Público para investigar a criminalidade organizada. Ressalvando-se as boas investigações na área da corrupção (sobretudo política) que vêm sendo feitas pela Polícia Federal, no mais, os resultados investigativos (no setor da criminalidade organizada) são muito precários (ou seja: carentes de eficácia notável).
O art. 3º da Lei 9.034/1995 acha-se hoje totalmente fulminado, a partir do posicionamento do STF na ADIn 1570 (que acabou com a possibilidade do juiz investigador e sigiloso). O referido artigo violava o princípio acusatório, que impede o juiz de investigar e ser o juiz da causa ao mesmo tempo. O juiz que investiga se vincula psicologicamente com o fato, perde sua imparcialidade e se torna um julgador contaminado. Caso ele venha a presidir o processo, a nulidade é patente (porque todo acusado tem direito a um juiz imparcial, nos termos do art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
A identificação criminal (obrigatória?) prevista no art. 5º da citada lei foi derrogada pela Lei 10.054/2000 (cf. STJ, RHC 12.965). A colaboração premiada do art. 6º foi precariamente disciplinada na lei, não se sabendo, até hoje, se o juiz pode ou não participar de um eventual acordo celebrado entre o réu e o Ministério Público. O acordo vincula o juiz? Não. Consequentemente, sua eficácia prática é quase nula na medida em que quem manda na pena final é o juiz (não as partes). Pode ser que as partes cheguem a um acordo e o juiz, na sentença, não o atenda. A lei foi lacunosa nesse ponto.
O art. 7º proíbe a liberdade provisória, com ou sem fiança, dos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa. Primeiro não se sabe o que é organização criminosa. Em segundo lugar hoje se sabe que o legislador não pode, com critérios dele, proibir liberdade provisória (tal como ficou reconhecido na ADIn 3112, que anulou dispositivo semelhante contido na lei do desarmamento).
Um dos poucos dispositivos válidos da Lei 9.034/1995 é o art. 8º, que cuida do tempo de duração do processo (na primeira instância): o processo tem que terminar em 81 dias (se o réu está preso) ou 120 (se o réu está solto). A praxe forense, entretanto, vem demonstrando sua permanente inobservância, em flagrante violação ao princípio da duração razoável do processo.
A proibição de apelar em liberdade (art. 9º) é típica do Direito penal do inimigo. Já foi questionada pelo STF na Reclamação 2.391. Aliás, o CPP acabou com essa aberração no ano de 2008, revogando o art. 594 do CPP. Na atualidade, por força do art. 8º, 2, "h", da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, todo réu, no âmbito criminal, tem direito de apelar a uma outra instância, não podendo a prisão ser condição para o conhecimento desse recurso. No caso Daslu, não faz muito tempo, a juíza invocou o art. 9º citado para decretar a prisão da ré, que foi revogada (acertadamente) em menos de vinte e quatro horas.
A progressão de regime está assegurada pelo art. 10. No HC 92.959 o STF deixou claro que nenhuma lei no Brasil pode proibir a progressão de regime, ainda que se trate de crime hediondo. Na esteira dessa decisão a Lei 11.464/2007 passou a admitir progressão de regime em todos os crimes hediondos.
Incontáveis, como se vê, são os problemas legislativos contidos na Lei 9.034/1995. Urgentemente compete ao legislador brasileiro uma atualização nesse setor. Não que a lei, por si só, seja a solução, de qualquer modo, nenhuma política de controle das organizações criminosas pode ter sucesso sem ter um ponto de partida legal claro e indiscutível. E que o legislador não caia na tentação do Direito penal do inimigo, que significa dividir o Direito penal em dois: o do cidadão, com garantias, e o do inimigo, sem garantias. As inúmeras inconstitucionalidades reconhecidas pelo STF (ADIn 1570, ADIn 3112, HC 92.959 etc.) devem servir de guia para o legislador brasileiro (caso ele queira elaborar uma legislação prudente, sensata e ao mesmo tempo eficaz).