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A inconstitucionalidade da custódia de presos pela polícia judiciária à luz do princípio da legalidade

20/08/2009 às 00:00
Leia nesta página:

A Polícia Judiciária é um corpo de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Justiça - Polícia Federal, e dos secretários da segurança dos Estados-membros - Polícias Civis, fiscalizadas todas nos termos da lei.

Tem a Polícia Judiciária a função constitucional de apurar as infrações penais e a sua autoria por meio do inquérito policial, procedimento administrativo com característica inquisitiva, que serve, em regra, de base à pretensão punitiva do Estado formulada pelo Ministério Público, titular da ação penal pública, segundo preceito do art. 129, I, da CF.

Assim, a Constituição Federal em seu artigo 144 determina quais os órgãos que exercerão a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Constituição Federal

[01]

Art. 144

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

§ 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

§ 4º

- Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. 

Leciona De Plácido e Silva quanto às atribuições da polícia judiciária:

Denominação dada ao órgão policial, a que se comete a missão de averiguar a respeito dos fatos delituosos ocorridos ou das contravenções verificadas, a fim de que sejam os respectivos delinqüentes ou contraventores punidos por seus delitos ou por suas infrações. (...) procura, pela investigação dos fatos criminosos ou contravencionais, recolher as provas que os demonstram, descobrir os autores deles, entregando-os às autoridades judiciárias, para que cumpram a lei. [02]

Analisemos ainda a Constituição Federal [03]. Vejamos:

Art. 5º, II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Art. 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

Consagrado na Constituição Federal, o princípio da legalidade, como o próprio nome sugere, diz respeito à obediência às leis, expresso como determinação legal de observação obrigatória. Assim, podemos concluir que a administração pública possui limites, que não está livre para fazer ou deixar de fazer algo de acordo com a vontade do administrador, devendo obedecer a lei em toda a sua atuação.

Segundo ensinamentos do nobre jurista Hely Lopes Meirelles:

Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa "pode fazer assim", para o administrador público significa "deve fazer assim". [04]

Maria Sylvia Zanella di Pietro:

Segundo o princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei permite. No âmbito das relações entre particulares, o princípio aplicável é o da autonomia da vontade, que lhes permite fazer tudo o que a lei não proíbe.(...) Em decorrência disso, a Administração Pública não pode, por simples ato administrativo, conceder direitos de qualquer espécie, criar obrigações ou impor vedações aos administrados; para tanto, ela depende de lei. [05]

Diante do esposado, a custódia de presos pela Polícia Judiciária está travestida em patente inconstitucionalidade. O ato de custodiar presos nas instalações das Policias Judiciárias não encontra respaldo legal no ordenamento jurídico conglobado, além de ferir flagrantemente a Carta Magna.

Eis jurisprudência que corrobora com o nosso posicionamento:

Se a conduta do paciente não é prevista em lei como infratora (já que não é dever do agente de polícia civil a custódia de presos), o ato punitivo não contém motivação válida para embasá-lo. E motivação falsa (ou inválida) é o mesmo que ausência de motivação, caracterizando ilegalidade a ser corrigida pelo writ constitucional. [06]

É público, notório e comum – sem ser normal, legal e exemplar – a utilização de Delegacias de Polícia para ‘guarda’ de presos provisórios e condenados definitivamente pela Justiça, em nosso Estado. Delegacia de Polícia não é cadeia pública. Delegacia de Polícia não é Penitenciária. Delegacia de Polícia não é Casa de Albergado, nem Colônia Agrícola ou Industrial. Delegacia de Polícia é a sede da Polícia Judiciária, encarregada da atividade investigativa. [07]

No mesmo sentido sinaliza o Superior Tribunal de Justiça, vejamos:

Por outro lado, se a conduta do paciente não é prevista em lei como infratora (já que não é dever do agente de polícia civil a custódia de preso), o ato punitivo não contém motivação válida para embasá-lo. E motivação falsa (ou inválida) é o mesmo que ausência de motivação. [08]

Ainda, o Des. Hamilton Carli, do TJMS, aduz que a função administrativa se subordina à legislativa não apenas porque a lei pode estabelecer proibições e vedações à Administração, mas também porque esta somente pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza. Como não há lei atribuindo a custódia de presos à polícia civil, ela não pode ser obrigada a tanto, uma vez que preceitos restritivos de direito se interpretam restritivamente. [09]

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Em 2008, a parlamentar, deputada Marina Maggessi, ingressou com projeto de lei proibindo a utilização das dependências da Polícia Civil (judiciária) para custodiar presos. Assim, após sua aprovação, esta inconstitucionalidade estará por sanada.

Eis o PL [10]:

PROJETO DE LEI N º4051/2008 (Da Sra. Dep. Marina Maggessi)

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º O Art. 82 da Lei nº 7.210, de 11 de junho de 1984, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo:

Art. 82 § 3º Fica vedado o uso das dependências da Polícia Civil para custodiar os presos referidos no caput deste artigo, mesmo que a prisão se dê em caráter temporário.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Segundo a parlamentar, embora a lei de execuções penais estabelecer em seu texto quais os estabelecimentos penais destinados à custódia de presos, a Polícia Civil vem, full time, fazendo as vezes de estabelecimento carcerário. Assim, destarte, o princípio constitucional da legalidade está sendo ceifado, pois, qualquer função estranha às dispostas no texto constitucional não poderia enquadrar-se dentre as atribuições dos policiais civis.

Apesar de ser clara a interpretação de que não cabe o desempenho de funções que não lhe sejam atribuídas, em obediência ao princípio constitucional da legalidade, cumpre-nos estabelecer a referida vedação em instrumento legal, pela gravidade do número de casos que a Polícia Civil vem tendo que custodiar. No intuito de corrigir essa grave distorção, apresentamos este projeto de lei, que, embora estabeleça vedação implicitamente contemplada pelo texto constitucional e por meio do princípio da legalidade, apresenta-se necessário e oportuno, por não vir sendo devidamente aplicada. [11]

O Ministério Publico do RN, (re)presentado pelo promotor de justiça criminal Wendell Beethoven, reitera nosso posicionamento enfatizando que nenhum policial está obrigado a fazer o que não está previsto em lei, ajuizando ação civil pública que foi julgada pela 4ª Vara da Fazenda Pública, determinando que qualquer agente de polícia pode se recusar a trabalhar como agente carcerário ou qualquer outro tipo de serviço que não esteja em suas atribuições.

Destarte, fica claramente evidenciada a patente inconstitucionalidade da prática da Polícia Judiciária em custodiar presos, mesmo porque se trata de atribuição não prevista em lei, o que flagrantemente não coaduna ao quanto preceituado na Lei Magna.


Bibliografia

Câmara dos Deputados.

Disponível em: www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp? CodTeor=60148.

Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988.

Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/...constituiçao.htm

DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 616.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Disponível em: www.forumseguranca.org.br.

Jornal de Hoje.

Disponível em: http://www.jornaldehoje.com.br/noticia.php?id=17655.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Malheiros Editores, 24a Edição.

PIETRO, Maria Sylvia di. Direito Administrativo, Ed. Atlas, 16a Edição.

STJ - Agravo de Instrumento nº 676.561-MS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 08.06.2005.

TJMS - MS 2003.008086-4, rel. Des. Paulo Alfeu Puccinelli, 11.12.03.

TJMS - Voto do relator do MS 2003.008086-4.

TJMS - Apelação Cível nº 2005.017597-9/0000-00-Dourados, rel. Des. Hamilton Carli.


Notas

  1. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. www.planalto.gov.br/ccivil_03/.../constituiçao.htm
  2. DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 616.
  3. Constituição Federal. Op.cit
  4. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, Ed. Malheiros Editores, 24a Edição.
  5. PIETRO, Maria Sylvia di. Direito Administrativo, Ed. Atlas, 16a Edição.
  6. TJMS - MS 2003.008086-4, rel. Des. Paulo Alfeu Puccinelli, 11.12.03.
  7. TJMS - Voto do relator do MS 2003.008086-4.
  8. STJ - Agravo de Instrumento nº 676.561-MS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 08.06.2005.
  9. TJMS - Apelação Cível nº 2005.017597-9/0000-00-Dourados, rel. Des. Hamilton Carli.
  10. Câmara dos Deputados.Disponível em: www.camara.gov.br/sileg/MostrarIntegra.asp? CodTeor=601483.
  11. Fórum de Segurança. Disponível em: www.forumseguranca.org.br/.../projeto-proibe-custodia-de-presos-na-policia-civil.
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Sobre o autor
José Ricardo Chagas

Criminalista. Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino. Especialista em Ciências Criminais pela Uniahna. Especialista em Polícia Comunitária pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAGAS, José Ricardo. A inconstitucionalidade da custódia de presos pela polícia judiciária à luz do princípio da legalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2241, 20 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13355. Acesso em: 29 mar. 2024.

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