Ante os questionamentos atinentes à configuração (ou não) de crime, seja pelo porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, seja pela mera posse de munição, buscar-se-á desenvolver, sumariamente embora, uma resposta constitucionalmente adequada [01] à Carta Política de 1988.
Inicialmente, cumpre que se proceda à identificação e à adequada exegese dos dispositivos legais incriminadores pertinentes, sob a égide do modelo do sistema penal minimalista garantista [02], com primazia aos princípios relacionados [03] à missão fundamental do direito penal e ao fato do agente – especialmente, os da proteção exclusiva de bens jurídicos relevantes e o da ofensividade do fato -, para somente então situar as manifestações do Supremo Tribunal Federal exaradas a respeito, nos autos do RHC 81057/SP e HC 96922/RS.
Decerto, é missão fundamental do direito penal minimalista garantista a exclusiva proteção dos bens jurídicos mais relevantes, os quais desempenham, entre as funções enunciadas por Luiz Regis Prado, as seguintes:
fundamentadora do injusto ou de garantia [04], na qual o bem jurídico é alçado a conceito-limite na dimensão material da norma, o que restringe o jus puniendi estatal e atribui, na construção dos tipos penais, sentido informador, bem assim ensejando tal noção a compreensão dos valores aos quais o ordenamento jurídico concede ou não status jurídico-penal, de acordo com valores e diretrizes consagrados constitucionalmente; e
interpretativa/exegética/hermenêutica, pela qual os tipos penais devem ser interpretados conforme o bem jurídico tutelado.
Correlatamente a tal missão, estruturante do direito penal moderno, exsurge o princípio da ofensividade, pelo qual o fato cometido, para se convolar em fato punível, deve afetar concreta e efetivamente o bem jurídico protegido pela norma. Daí que não haverá crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado (nullum crimen sine iniuria), motivo pelo qual, se o fato não for ofensivo materialmente, não haverá delito, vedando-se, por consequência, o denominado delito de perigo abstrato, sob pena de se "(...) restringir direitos fundamentais básicos como a liberdade ou o patrimônio sem que seja para tutelar concretas ofensas a outros direitos." [05]
No que interessa, as questões suscitadas vinculam-se à análise da dicção e conteúdo do artigo 14, caput, da Lei n.° 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), cujo dispositivo, adotando como nomen juris o "porte ilegal de arma de fogo de uso permitido", assim incrimina a conduta de "Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar" (grifos meus).
Diante do quadro teórico exposto, afiguram-se pertinentes as indagações:
qual o bem jurídico protegido no caso do artigo 14 da Lei do Desarmamento?
as condutas de portar de arma de fogo desmuniciada ou mera munição estariam aptas penalmente a ofendê-lo?
No caso vertente, tem-se a exclusiva proteção a bem jurídico de matiz supraindividual ou coletivo, voltado à tutela da incolumidade pública, que mesmo ostentado uma conotação mais fluida ou abstrata, demanda para a sua configuração ofensidade típica/fato penalmente relevante, ou seja, somente "(...) quando as duas órbitas da disponibilidade (uma, material, a da arma carregada, e outra jurídica, a do comportamento humano que rompe o princípio de confiança criando um risco proibido relevante) se encontram é que surge a ofensividade típica (aquela não querida pela norma penal, reprovável, punível). Em outras palavras, o fato torna-se penalmente relevante (exclusivamente) quando o bem jurídico coletivo (no caso) entra no raio de ação da conduta criadora do risco proibido e relevante" [06] – o que é suficiente, frise-se, para afastar a incriminação do porte de arma de fogo desmuniciada ou da mera posse de munição, por falta do objeto material do tipo (arma inidônea para a produção de disparos).
Endossando a moderna teoria do garantismo penal, decidiu o STF, no julgamento do RHC 81057/SP (DJ 29.4.2005), que, no caso em exame, cumpre distinguir duas situações, à luz do princípio da disponibilidade, para a configuração material da figura típica em espécie, quais sejam: i) arma desmuniciada + munição adequada à mão = arma disponível e, portanto, realização do tipo penal; e ii) arma desmuniciada + inexistência ou inacessibilidade de munição = inidoneidade para a produção de disparos, por isso, não se concretiza a figura típica.
A propósito, entendimento contrário ao acima exarado conduziria à repelida antecipação e ao alargamento da tutela penal às suas últimas consequências, a exemplo da presunção legislativa segundo a qual é possível sancionar penalmente uma conduta individual (crime de perigo abstrato), ainda que ela não se revele per se lesiva ao bem jurídico.
Longe de ser mera conjetura, decidiu a Primeira Turma do STF – em sessão de 17.3.2009, nos autos do HC 96922/RS (rel. Min. Ricardo Lewandowski) –, ao adotar o entendimento acima exarado, que, para a configuração do crime de porte ilegal de arma de fogo não importa se a arma está municiada ou, ainda, se apresenta regular funcionamento" (grifei). A respeito, em ponderado comentário, assevera Luiz Flávio Gomes [07], que, afora representar tal decisum um retrocesso na jurisprudência do STF, "(...) coloca em risco o estatuto das liberdades típicas do Estado de Direito. Segue a linha do perigo abstrato, que ignora o Direito Penal da ofensividade assim como a teoria do bem jurídico, a questão da proporcionalidade etc."
Por todo o exposto, conclui-se, com fundamento no princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), no sentido de que, para a caracterização do tipo penal seja de porte ilegal de arma de fogo seja pela simples posse de munição, é imperiosa tanto a constatação pericial da idoneidade do objeto, ou seja, do potencial lesivo do armamento utilizado, quanto a análise valorativa da existência de conduta criadora de risco proibido relevante, consistente na conjugação de arma de fogo já municiada ou com munição a pronto alcance, com fulcro no princípio da disponibilidade.
Referências bibliográficas
ACÓRDÃO. Porte ilegal de arma sem munição. STF, RHC 81057-São Paulo, Informativo do STF n.º 385. Material da 1ª aula da Disciplina Princípios constitucionais penais e teoria constitucionalista do delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP/REDE LFG/IPAN.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2001.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
GOMES, Luiz Flávio. Limites do "Ius Puniendi" e Bases Principiológicas do Garantismo Penal. Material da 1ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP/REDE LFG/IPAN.
__________________. Arma de fogo: voltou a ser crime de perigo abstrato? Disponível em: https://www.lfg.com.br. Acesso em: 30 mar. 2009. Material da 1ª aula da Disciplina Princípios constitucionais penais e teoria constitucionalista do delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP/REDE LFG/IPAN.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
Notas
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2001, p. 80: "A compreensão da constituição tem de ser ‘construída’ com base num texto constitucional e não derivada ou desenvolvida a partir da teoria da constituição. Eis porque o conceito de constituição deve ser um conceito constitucionalmente adequado", grifos do autor.
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GOMES, Luiz Flávio. Limites do "Ius Puniendi" e Bases Principiológicas do Garantismo Penal. Material da 1ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu TeleVirtual em Ciências Penais - UNIDERP – IPAN – REDE LFG, p. 5. Compatível com o sentido de "mínima intervenção penal com as máximas garantias", a expressão em destaque remete à junção sistêmica de princípios do minimalismo penal e dos axiomas estruturantes do garantismo, a despeito de tais movimentos serem inconfundíveis.
Cf. GOMES, Luiz Flávio, Limites do "Ius Puniendi..., pp. 4-5. Os demais grupos de princípios são os seguintes: i) missão do direito penal - princípio da intervenção mínima; ii) fato do agente - exteriorização/materialização do fato e legalidade do fato.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 119. Afora as funções enumeradas, tem-se a sistemática pela qual a atividade de codificação adota o bem jurídico penalmente tutelado como substrato sistematizador das condutas incriminadas.
Cf. GOMES, Luiz Flávio, Limites do "Ius Puniendi..., p. 17.
ACÓRDÃO. Porte ilegal de arma sem munição. STF, RHC 81057-São Paulo, Informativo do STF n.º 385. Material da 1ª aula da Disciplina Princípios constitucionais penais e teoria constitucionalista do delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP/REDE LFG/IPAN, p. 3.
GOMES, Luiz Flávio. Arma de fogo: voltou a ser crime de perigo abstrato? Disponível em: https://www.lfg.com.br. Acesso em: 30 mar. 2009. Material da 1ª aula da Disciplina Princípios constitucionais penais e teoria constitucionalista do delito, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais – UNIDERP/REDE LFG/IPAN.