5. A alteração promovida pela Lei. 11.232/2005 no art. 162, §1º.
O CPC de 73 tinha como traço distintivo uma rígida [20] separação entre os processos de conhecimento, de execução e cautelar. Essa divisão, vista como um avanço à época da elaboração do Código, revelou-se, posteriormente, um entrave à efetiva prestação jurisdicional [21].
Buscou-se na última onda reformatória, por isso, um processo "sincrético" [22], com uma fase [23] executiva, denominada cumprimento de sentença, logo após a fase de conhecimento. [24]
Inevitavelmente, a mudança sistemática do código exigiu a modificação do conceito de sentença, pois esta deixou de ser o ato que extinguiria o processo. [25] A sentença, quando dependente de "cumprimento", apenas colocará fim a uma fase do processo, a de conhecimento, para dar início a uma nova fase, a executiva. A antiga redação do §1º, do art. 162, se já não era adequada para definir sentença, precisava definitivamente mudar.
Ocorre, no entanto, que o legislador, tentando tirar da sentença o efeito de extinção do processo, acabou por dar-lhe uma definição vaga, imprecisa e problemática. [26] A redação do art. 162 ficou como se segue:
Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
§1º Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei.
§2º Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente. (...)
Sentença é definida, agora, como o ato que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269, os quais tratam, respectivamente, de situações de extinção do processo sem resolução do mérito e de situações de resolução do mérito do processo.
Esse conceito, infelizmente, não diz muita coisa, o que deu margem a diversas interpretações, dentre as quais, com vários adeptos, a que defende haver sentença sempre que se decidir acerca das hipóteses previstas nos artigos acima mencionados, independentemente do momento em que a decisão for proferida.
De acordo com essa corrente, a sentença deixa de ser vista pelos seus efeitos e passa a ser encarada apenas pelo seu conteúdo. O que importa é verificar o que foi decidido. Acolheu-se ou rejeitou-se pedido do autor? O juiz pronunciou decadência ou prescrição? Então é uma sentença. Julgou-se questão incidente, não disposta nos arts. 267 ou 269? Então estar-se-ia diante de decisão interlocutória.
Considerando que a sentença deixou de ser um ato extintivo e passou a se caracterizar pelo conteúdo da decisão, começou-se a aceitar, consequentemente, mais de uma sentença no mesmo processo. De acordo com Rodrigo Strobel Pinto, "se no regime anterior era admissível a prolação de apenas uma sentença em cada processo; na atual sistemática é possível o proferimento de inúmeras". [27]
6. Impossibilidade de aceitação de sentenças interlocutórias e o conceito de sentença.
Não obstante a posição apresentada acima, a alteração promovida no art. 162, §1º não é suficiente para modificar a ideia de sentença como ato final, por um único e inafastável motivo: o sistema processual brasileiro não o permite.
Uma interpretação sistemática inviabiliza o sentido e os efeitos que grande parte da doutrina tenta dar à nova redação do art. 162, §1º.
Inicie-se pelo §2º, do mesmo artigo, o 162. O Código apresenta, ali, a definição de decisão interlocutória, intocada pela Lei 11.232/2005: "Decisão é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente". Perceba-se a expressão curso do processo. A decisão interlocutória continua a ter como traço distintivo, portanto, o momento em que é proferida.
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery já se pronunciaram sobre o assunto no mesmo sentido: "Com o advento da L 11232/05, que alterou o conceito de sentença estabelecido no CPC 162 § 1.º, houve modificação de rótulo, mas não de essência, pois referida lei manteve inalterado o conceito de decisão interlocutória, que continua a ser o descrito no CPC 162 § 2.º, em sua redação originária, de 1973". [28]
O legislador não alterou o conceito de decisão interlocutória para lhe atribuir função subsidiária à da sentença. Muito pelo contrário. Como conciliar esses dois dispositivos, então? Se o juiz resolve questão incidente no curso do processo relacionada a alguma das hipóteses do art. 269, por exemplo, proferirá sentença ou decisão interlocutória?
Sempre se aceitou que matérias relacionadas aos art. 267 e 269 fossem decididas através de decisões interlocutórias. Dessa maneira, o juiz poderia julgar improcedente um dos pedidos do demandante – porque a obrigação estaria prescrita, por exemplo – através de uma decisão interlocutória, impugnada por agravo. Nunca houve (e não há) nenhum problema nisso.
O segundo fator que impossibilita a existência de sentenças "interlocutórias" se mostra muito mais grave e não nos parece possível solucioná-lo até que haja uma verdadeira reforma legislativa. Os nossos recursos não foram adaptados ao "novo" conceito de sentença: a apelação continua a ser o recurso cabível de sentença [29] e o agravo continua a ser o recurso cabível de decisão interlocutória [30].
Aqui surgem os maiores problemas. Para diversos autores, a sentença que não extingue o processo, nem encerra fase do procedimento deve ser atacada por agravo.
O princípio da adequação dos recursos impede, todavia, que seja usado recurso diverso do previsto em lei para atacar determinada decisão. [31] Para cada decisão há um recurso, sendo "grosseiro" o erro derivado da interposição de recurso diverso do previsto em lei. [32] E como foi dito, a lei continua expressa ao estabelecer a apelação como o recurso cabível de sentença.
Admitir a apelação no curso do processo, entretanto, implicaria uma violação imensurável do princípio da celeridade processual, pois a cada recurso o processo seria suspenso e os autos teriam que subir ao Tribunal. [33]
Destarte, como resolver o insuperável conflito prático de se apelar de uma sentença proferida no meio do processo, tendo em vista que esse recurso foi estruturado para ser utilizado contra decisões que extinguiam o processo em primeiro grau de jurisdição?
Surge, então, a proposta de se fazer uma apelação por instrumento, já adotada inclusive pela 5ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre-RS e aceita pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. [34]
Jorge de Oliveira Vargas, adepto da apelação por instrumento, afirma que o princípio da celeridade não impede a utilização do recurso de apelação, já que ou os autos sobem ao Tribunal e o processo continua em primeira instância através de autos suplementares, ou a apelação sobe por traslado, adotando-se, por analogia, o disposto no art. 583, parágrafo único do CPP. [35] Teresa Arruda Alvim Wambier também aceita a apelação por instrumento, já que seria a única solução, para a autora, que preservaria o princípio da isonomia. [36]
Ainda que a apelação por instrumento pareça menos ofensiva que a utilização do recurso de agravo contra a sentença, também não deve ser aceita. [37]
Têm toda a razão os autores que alegam não haver nenhum artigo que obrigue a subida dos autos ao tribunal por conta do recurso da apelação. [38] E mesmo assim sempre subiram. A subida dos autos sempre foi um procedimento lógico e consequente da apelação, já que a sentença era o ato final; não havia necessidade de previsão expressa nesse sentido.
Percebe-se, como já foi dito, que todo o sistema recursal foi construído em vista da sentença como ato final. E nada nesse sistema foi alterado para recepcionar um ‘novo’ conceito de sentença.
Nesse sentido, deve-se aceitar as palavras de Fredie Didier Jr, Paula Braga e Rafael Oliveira: "Em que pese a alteração legislativa, é preciso continuar compreendendo a sentença como o ato que, analisando ou não o mérito da demanda, encerra uma das etapas (cognitiva ou executiva) do procedimento em primeira instância". [39]
Marinoni e Arenhart adotam posição similar e afirmam que "O ato judicial que implica alguma das situações do art. 269 somente pode ser definido como sentença quando extingue o processo ou quando encerra a fase de conhecimento". [40]
Para que se aceite um novo conceito de sentença é necessário que haja uma reforma estrutural do CPC, adequando o sistema recursal aos novos tipos de decisão, bem como modificando o conceito de decisão interlocutória. Por enquanto, a nova redação do art. 161, §1º não parece ter outra função senão a de autorizar, no mesmo processo, a fase de cumprimento de sentença.
Fica a lição de Marinoni e Arenhart: "É preciso interpretar as normas dos arts. 162, §1º, e 269, caput, de acordo com a finalidade da própria lei que as previu e sem perder de vista a racionalidade do sistema recursal, que sempre foi admitido como coerente e lógico pela doutrina e pela prática forense". [41]
7. Considerações finais.
O processo é um instrumento. Existe para que a tutela jurisdicional seja prestada de maneira célere, justa e imparcial. Para que isso ocorra, é preciso que o devido processo legal seja sempre observado.
A inserção do §6º ao art. 273 do CPC vem ao encontro dessa ideia: não é justo impor àquele que tem direito uma espera desnecessária. Por esse motivo, esse dispositivo deve ser interpretado de maneira ampla, de modo a lhe garantir eficácia. Não são exigidos, portanto, os requisitos para as outras modalidades de tutela antecipada. No mesmo sentido, o dispositivo deve ser utilizado quando não houver mais controvérsia real acerca da matéria (existência de provas a serem produzidas) e quando, tendo o demandante formulado um único pedido, parcela do mérito puder ser antecipada.
Trata-se de antecipação dos efeitos da tutela e não de julgamento antecipado do mérito. O legislador foi expresso nesse sentido e não se pode permitir uma interpretação diversa e, por isso, absolutamente contra legem.
Discorda-se também da suposta perda de objeto do dispositivo, tendo em vista que agora o juiz poderia proferir sentenças parciais ao invés de simplesmente antecipar os efeitos da tutela.
Promover uma reforma estrutural do CPC em razão de uma alteração pouco significativa na redação do art. 161, §1º parece um pouco exagerado.
Não há sentido em ignorar os artigos 161, §2º, 513 e 522 e simplesmente excluir a existência do art. 273, §6º, apenas porque a sentença não mais "extingue" o processo; efeito que, em verdade, nunca foi necessário para caracterizar o ato. Ademais, deve-se ter em mente que o "novo" conceito de sentença buscou, tão-somente, adequar o art. 161, §1º à possibilidade de cumprimento da sentença no mesmo processo.
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