1 Nova regulação
A Lei nº 12.015/2009, que entrou em vigor no dia 10/08/2009, reestruturou o Título VI da Parte Especial do Código Penal. Referido título era antes denominado "DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES", sendo que, por força da norma em evidência passou a ser intitulado "DOS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL", conforme segue:
Título VI – Dos crimes contra a dignidade sexual
Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual – arts. 213 a 216-A
Capítulo II – Dos crimes sexuais contra vulnerável – arts. 217 a 218-B
Capítulo III – Do rapto – arts. 219 a 222 (todos revogados)
Capítulo IV – Disposições gerais – arts. 223 a 226 (revogados os arts. 223 e 224)
Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual – arts. 227 a 232 (revogado art. 232)
Capítulo VI – Do ultraje público ao pudor – arts. 233 e 234
Capítulo VII – Disposições gerais – arts. 234-A a 234-C
2 Estupro
Conforme visto acima, são considerados crimes contra a liberdade sexual (Parte Especial do CP, Título VI, Capítulo I) aqueles descritos nos artigos 213 a 216-A do CP, quais sejam:
- estupro (art. 213);
- violação sexual mediante fraude (art. 215);
- assédio sexual (art. 216-A).
Os artigos 214 e 216 encontram-se revogados.
O primeiro delito contra a liberdade sexual descrito no CP é o de estupro, que tem a seguinte tipificação básica:
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
2.1 Comentário introdutório
Antes da Lei 12.015/2009 o delito de estupro compreendia apenas a conjunção carnal (assim entendida como a introdução do pênis na vagina) forçada praticada em detrimento da mulher. Os demais atos libidinosos impostos mediante violência ou grave ameaça eram tidos como atentado violento ao pudor, tipificado no art. 214 do CP, agora revogado. A revogação desse artigo, contudo, não significou um abolitio criminis, pois a conduta antes prevista no art. 214 do CP passou a ser descrita no artigo 213 do mesmo Código.
Anteriormente o art. 213 (estupro) descrevia a seguinte conduta criminosa: "Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça". E o art. 214 (atentado violento ao pudor) tipificava o seguinte comportamento: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal".
Atualmente não há mais o crime de atentado violento ao pudor, porém a conduta correspondente agora é considerada estupro; ou seja, a redação em vigor do art. 213 (estupro) alcança tanto a conduta antes considerada estupro como aquela anteriormente considerada como atentado violento ao pudor. O vocábulo estupro passou a ter, portanto, uma maior amplitude.
O crime em referência, em todas as modalidades, é considerado hediondo (art. 1º, V, da Lei nº 8.072/1990).
2.2 Objetos jurídico e material
Tem-se como objeto jurídico (bem juridicamente protegido) tanto a liberdade quanto a dignidade sexual (GRECO, 2010, v.III, p. 452). Ninguém pode ser forçado a práticas sexuais, sendo direito seu a escolha do parceiro com quem irá se relacionar. Tem-se em mira a liberdade de dispor do próprio corpo para práticas sexuais. Nesse passo também ensinam Pierangeli e Souza (2010, p. 10): "O bem juridicamente tutelado é a liberdade sexual do homem e da mulher, que têm o direito de dispor de seus corpos de acordo com sua eleição".
O objeto material é a pessoa (homem ou mulher) vítima do constrangimento.
2.3 Sujeitos ativo e passivo
Atualmente o crime de estupro compreende tanto a conjunção carnal forçada quanto a prática de outro ato libidinoso nas mesmas condições.
Ato libidinoso é qualquer ato destinado a satisfazer a lascívia, o apetite sexual (CAPEZ, 2011, v. 3, p. 26). Desse modo, a conjunção carnal é uma espécie de ato libidinoso. Tem, contudo, uma acepção mais restrita, pois "[…] caracteriza-se pela penetração total ou parcial do pênis na genitália feminina (introductio penis intra vas), com ou sem o objetivo de procriação e com ou sem ejaculação ou gozo genésico" (PIERANGELI e SOUZA, 2010, p. 11).
Para haver conjunção carnal, portanto, necessário se faz a penetração do pênis na vagina. Assim sendo, não é possível haver conjunção carnal entre pessoas do mesmo sexo.
É por essa razão que Rogério Greco (2010, v. III, p. 453), acertadamente afirma:
Assim, sujeito ativo no estupro, quando a finalidade for a conjunção carnal, poderá ser tanto o homem quanto a mulher. No entanto, nesse caso, o sujeito passivo, obrigatoriamente, deverá ser do sexo oposto, pressupondo uma relação heterossexual.
No que diz respeito à prática de outro ato libidinoso, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo, bem como sujeito passivo, tratando-se, nesse caso, de um delito comum.
Desse modo, em regra podem ser sujeito ativo ou passivo do crime de estupro tanto homem quanto mulher. Daí Rogério Sanches Cunha (2010, v. 3, p. 250) alertar que se trata de crime bicomum, podendo qualquer pessoa praticar ou ser vítima de referida infração penal.
Alerte-se, todavia, conforme bem pontuado por Greco, que quando a conduta for mediante conjunção carnal, exige-se que o sujeito ativo imediato e vítima sejam de sexos opostos, pois não é possível ocorrer conjunção carnal entre pessoas do mesmo sexo.
Outrossim, não pode figurar como sujeito passivo do crime em deslinde menor de catorze anos, considerando que a relação sexual com pessoa nesta condição acarreta a incidência do art. 217-A do CP (estupro de vulnerável), seja o ato sexual forçado ou consentido.
Antigamente havia discussão sobre a possibilidade da mulher ser sujeito passivo do crime de estupro praticado pelo seu próprio marido. Alegava-se que como há o dever de relações sexuais entre os cônjuges, o marido que obrigava sua esposa à prestação sexual estaria escudado pelo exercício regular de direito. Esta visão hoje está totalmente superada, entendendo-se que embora a relação sexual constitua dever recíproco entre os cônjuges, sua obtenção não pode se dar por meios juridicamente inadmissíveis e moralmente reprováveis (CAPEZ, 2011, v. 3, p. 33).
Outra discussão outrora existente era sobre a possibilidade da prostituta ser vítima de estupro. Atualmente não há mais dúvidas que a mesma pode ser sujeito passivo do delito em análise, visto que o fato de manter relações sexuais mediante pagamento não elimina o seu direito de escolha de parceiros, corolário de sua liberdade e dignidade sexual.
2.4 Tipo objetivo
Consoante já evidenciado, descreve o art. 213 do CP a seguinte conduta proscrita: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".
Constranger significa forçar, coagir, obrigar. No estupro constrange-se alguém (ser humano – homem ou mulher).
O meio de execução é a violência ou grave ameaça.
A violência consiste no emprego de força física (conhecida como vis corporalis ou vis absoluta) para obtenção da satisfação sexual. Ocorre quando a vítima é efetivamente agredida, amarrada, ou de qualquer modo tolhida em sua capacidade de resistir através da aplicação de força física.
A grave ameaça consiste na violência moral (vis compulsiva). No caso do estupro, a mesma interfere no plano psíquico da vítima, fazendo-a ceder, por intimidação, aos desejos do criminoso. O mal prometido pode ser contra a própria vítima (ameaçá-la de morte, por exemplo) ou contra terceiros a ela ligados (dizer, p. ex., que vai matar o seu genitor se ela não ceder). Não é necessário que esse mal seja injusto, podendo até ser justo (por exemplo: sujeito que força a vítima a manter relações sexuais com ele, ameaçando-a de denunciá-la por um crime que ela efetivamente praticou).
A gravidade da ameaça deve ser analisada sob o ponto de vista da vítima, demandando-se uma análise do caso concreto para fins de averiguar se o mal prometido foi suficientemente grave para fazê-la ceder [01]. Por exemplo: uma mesma ameaça pode ser insuficiente para intimidar uma pessoa culta e experiente, porém suficiente para levar uma pessoa simplória a concordar em se submeter aos desejos de outrem.
No delito em estudo, mediante violência ou grave ameaça, o agente constrange a vítima a: a) ter conjunção carnal; b) praticar outro ato libidinoso; c) permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.
A conjunção carnal consiste, consoante já explicado, na introdução do pênis na vagina. Limita-se a este ato.
Já o ato libidinoso consiste em gênero que abarca todos os atos voltados à satisfação da lascívia (por exemplo: sexo oral, masturbação, sexo anal etc.), sendo, inclusive, a conjunção carnal uma espécie de ato libidinoso.
2.5 Tipo subjetivo
Pune-se a conduta do art. 213 do CP somente na forma dolosa. Nesse sentido ensinam Pierangeli e Souza (2010, p. 21): "Trata-se de crime exclusivamente doloso, e o dolo se expressa como consciência e vontade de realizar a conduta proibida, consistente em constranger, forçar, obrigar alguém à conjunção carnal ou ao ato libidinoso".
Entende a doutrina majoritária que não se exige finalidade especial do agente (elemento subjetivo do tipo específico) para configuração do crime. Quanto a este ponto Fernado Capez (2011, v. 3, p. 36) faz os seguintes comentários:
Na realidade, o que poderia causar certa dúvida é o fato de que tal crime exige a finalidade de satisfação da lascívia para a sua caracterização. Ocorre que se trata de um delito de tendência, em que tal intenção se encontra ínsita no dolo, ou seja, na vontade de praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Desse modo, o agente que constrange mulher mediante o emprego de violência ou grave ameaça à prática de cópula vagínica não agiria com nenhuma finalidade específica, apenas atuaria com a consciência e vontade de realizar a ação típica e com isso satisfazer sua libido (o até então chamado dolo genérico).
Em algumas situações práticas, a exigência ou não da finalidade especial do agente de satisfação da lascívia, referida pelo autor transcrito acima, é importante para definir se o fato será enquadrado como estupro. Leia-se o seguinte exemplo dado por Rogério Greco (2010, v. III, pp. 484-485):
Assim, mesmo que com a finalidade de humilhar a vítima, se o agente, fisicamente mais forte, em vez de um simples tapa nas nádegas, introduzir o dedo em seu ânus, o delito não poderá ser entendido como mera injúria real, visto que, tanto objetiva quanto subjetivamente, o agente tinha conhecimento de que levava a efeito um ato grave e ofensivo à dignidade sexual da vítima, razão pela qual deverá ser responsabilizado pelo delito tipificado no art. 213 do Código Penal.
Note-se que no exemplo dado por Greco, se houvesse a exigência da finalidade especial do agente de satisfazer sua lascívia, o crime não poderia ser enquadrado como estupro; porém, como não há essa exigência, mesmo sendo intenção do agente unicamente humilhar a vítima, deverá responder pelo crime tipificado no art. 213 do CP, considerando que o fato enquadra-se perfeitamente na descrição típica.
2.6 Consumação e tentativa
Já dissemos antes que no delito em estudo, mediante violência ou grave ameaça, o agente constrange a vítima a: a) ter conjunção carnal; b) praticar outro ato libidinoso; ou c) permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.
Quando a prática for de conjunção carnal forçada, a consumação se dá com a penetração, parcial ou total, do pênis na vagina, exclusivamente. Logo, deve ser uma relação sexual entre homem e mulher.
Outra forma de se consumar o delito é através da prática de outro ato libidinoso por parte da vítima constrangida. Esse ato libidinoso pode ser praticado nela mesma (sem contato físico com outra pessoa), no sujeito ativo ou em terceiros. Pode, portanto, a vítima ser forçada, por exemplo, a se masturbar [02], a fazer sexo oral no agressor ou em terceira pessoa; em ambos os casos haverá o crime de estupro, que se consuma com a efetiva prática do ato libidinoso.
Por último, pode a vítima ser forçada a consentir que com ela se pratique outro ato libidinoso. Seria o caso, por exemplo, da vítima ser constrangida a permitir que o agente nela pratique sexo oral. Neste caso, também se consuma o delito com a efetiva prática do ato libidinoso.
A tentativa é possível nas três formas didaticamente esmiuçadas, desde que, por razões alheias à sua vontade, o agente não consiga consumar o delito. É possível o reconhecimento da desistência voluntária (art. 15 do CP), caso o agente, antes de consumar o crime, desista voluntariamente de sua prática, sendo que responderá apenas pelos atos até então praticados.
Sabe-se que o iter criminis comporta a seguintes fases: a) cogitação; b) preparação (atos preparatórios); c) execução; e d) consumação. Para ser reconhecida a tentativa, como é cediço, tem que se iniciar a fase de execução.
No caso do estupro a execução identifica-se com o constrangimento mediante violência ou grave ameaça visando o ato libidinoso (aí incluída a conjunção carnal, que é uma espécie de ato libidinoso) [03]. A consumação, conforme dito, ocorre com a efetiva prática desse ato.
Não há estupro quando a pessoa é constrangida a apenas presenciar a prática de ato libidinoso, consoante bem explicita Cleber Masson (2011, v. 3, p. 11): "De qualquer modo, não há estupro no ato de constranger alguém a presenciar ou assistir a realização de conjunção carnal ou outro ato libidinoso. A análise do art. 213, caput, do Código Penal autoriza a conclusão no sentido que o ato sexual deve ser praticado pela, com ou sobre a vítima coagida".
Por derradeiro, destacamos algumas situações que podem despertar dúvidas quanto à consumação do delito em estudo:
a) tratando-se de indivíduo que possui a patologia conhecida como ejaculação precoce, acaso pretenda consumar conjunção carnal ou sexo anal contra vítima coagida, se ejacula antes de concretizar seu intento, resta reconhecer a ocorrência apenas de tentativa se não tiver realizado no contexto outros atos libidinosos considerados autônomos;
b) no caso de homens acometidos de impotência coeundi (incapacidade de ereção peniana), acaso tentem estuprar alguém mediante penetração, estará caracterizado crime impossível (art. 17 do CP). Não cabe esta ressalva para homens acometidos de impotência generandi (incapacidade de procriação), pois esta não se confunde com a incapacidade de ereção.
2.7 Formas qualificadas
As qualificadoras do crime de estupro estão previstas nos §§ 1º e 2º do art. 213 do CP, conforme transcrevemos a seguir:
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
A parte inicial do § 1º estabelece como circunstância qualificadora a lesão corporal grave sofrida pela vítima em decorrência do estupro. São consideradas graves para tais efeitos as lesões previstas nos §§ 1º (lesões corporais graves) e 2º (lesões corporais gravíssimas) do art. 129 do CP. Tal resultado agravador deve sobrevir a título de culpa (trata-se de delito preterdoloso), pois havendo dolo do agente, deve responder por estupro em concurso com o crime de lesão corporal. Exige-se, portanto, para caracterização da qualificadora em comento o dolo em relação ao estupro (antecedente) e culpa em relação à lesão corporal (consequente).
A parte final do § 1º traz como qualificadora a circunstância da vítima ser menor de dezoito e maior de catorze anos. A razão do limite mínimo de catorze anos é que se a vítima for mais nova ocorrerá estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).
Interpretando a expressão "maior de 14 (catorze) anos" contida no dispositivo em análise, Fernando Capez (2011, v. 3, p. 49) afirma que "[…] a qualificadora não incidirá se o crime for praticado na data em que a vítima completa seu 14º aniversário". Essa também é a posição de Rogério Sanches Cunha (2009, p. 37). De outro modo, Rogério Greco (2010, v. III, p. 49) defende posição contrária, ensinando que no dia em que completa a idade prevista pelo tipo a pessoa já é considerada, no caso, maior de catorze anos; devendo, portanto, incidir a qualificadora. Filiamo-nos a esta última posição, apesar de ser a minoritária na doutrina.
O § 2º do dispositivo em comento elege como circunstância qualificadora a morte da vítima como resultado do estupro. Este resultado agravador, assim como no caso da lesão grave, também deve sobrevir a título de culpa, pois se for causado dolosamente deve o agente responder por estupro em concurso com homicídio, submetendo-se a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Nos casos de estupro tentado, em que sobrevém a morte culposa ou lesão corporal também culposa, entende a doutrina majoritária [04] que deve o agente responder pelo estupro consumado qualificado, considerando a impossibilidade da ocorrência de crime preterdoloso tentado.
No caso de estupro contra menor de dezoito e maior de catorze anos, com resultado morte culposo em decorrência do crime sexual, incidirá apenas a qualificadora prevista no art. 213, § 2º, do CP. A idade da vítima não será valorada como qualificadora.
2.8 Classificação doutrinária
Para Nucci (2009, p. 17), com as inovações introduzidas pela Lei nº 12.015/2009:
O crime passa a ser comum (pode ser cometido por qualquer pessoa) e de forma livre (pode ser cometido tanto por conjunção carnal como por qualquer outro ato libidinoso). Continua a ser material (demanda resultado naturalístico, consistente no efetivo tolhimento à liberdade sexual); comissivo (os verbos do tipo indicam ação); instantâneo (o resultado se dá de maneira definida no tempo); de dano (a consumação demanda lesão ao bem tutelado); unissubjetivo (pode ser cometido por uma só pessoa); plurissubsistente (é praticado em vários atos).
Ressalte-se que apesar do crime em estudo ser comissivo, é possível que seja reconhecida a forma omissiva imprópria (comissiva por omissão). Acontece isso, por exemplo, no caso da mãe que, podendo evitar, nada faz para impedir o estupro de sua filha menor pelo padrasto. Deve ela, no caso, responder pelo art. 213 do CP, considerando-se os termos do art. 13, § 2º, "a", do mesmo Código.
2.9 Outras peculiaridades
Selecionamos sem seguimento algumas peculiaridades inerentes ao crime em estudo, ainda não abordadas nos itens anteriores, mas que julgamos ser imprescindível o conhecimento.
2.9.1 Estupro e importunação ofensiva ao pudor
Atualmente qualquer ato libidinoso forçado poderá levar à caracterização do crime de estupro, se formos considerar apenas o aspecto formal. Para que não ocorram injustiças, porém, há uma preocupação da doutrina de estabelecer parâmetros de razoabilidade para evitar que atos que efetivamente não agridam de forma relevante a dignidade sexual levem à caracterização de crime tão grave, com pena mínima de seis anos de reclusão.
Nesse andar, defendem Pierangeli e Souza (2010, pp. 22-23) que os aos libidinosos forçados irrelevantes não devem servir para enquadrar o fato como estupro. Eis as palavras dos ilustres autores (idem, p. 23):
Entre nós, diante do grau reduzido de reprovabilidade da conduta, da inexpressividade da lesão jurídica e do princípio da proporcionalidade, defendemos que resta ao julgador aplicar uma das seguintes soluções: a) a contravenção do art. 61 (importunação ofensiva ao pudor) ou do art. 65 (perturbação da tranqulidade); b) ou o princípio da insignificância ou da bagatela.
O art. 61 da Lei de Contravenções Penais – LCP (Decreto-Lei nº 3.668/1941) prevê como contravenção a seguinte conduta: "Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – multa". Já o art. 65 do mesmo DL descreve a seguinte infração penal: "Art. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável: Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa".
Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 23) também leciona, referindo-se ao art. 61 da LCP, que "[...] atos de pouca importância, ainda que ofensivos ao pudor, não devem ser classificados como estupro (ou tentativa de estupro), comportando tipificação no cenário da contravenção".
De fato, não podemos pretender submeter a uma pena de seis a dez anos uma pessoa que agarrou a outra e passou leve e rapidamente a mão em suas nádegas.
Quanto a alguém que, furtivamente, passa rapidamente a mão em parte íntima de terceira pessoa, também entendemos não ser pertinente o enquadramento como estupro, pois no caso sequer há violência ou grave ameaça exigível pelo tipo. Pode no caso haver a incidência do art. 61 da LCP (importunação ofensiva ao pudor) ou mesmo do art. 140 do CP (injúria), dependendo da situação concreta.
2.9.2 Resistência da vítima
Conforme já visto, o crime de estupro depende da violência ou grave ameaça para sua caracterização. Nesse contexto, é óbvio que deve haver uma sincera resistência da vítima à prática sexual para o crime se caracterizar. Aliás, se há uma relação sexual consentida, não há constrangimento.
Teoriza a doutrina que algumas vezes, principalmente a mulher, diz não ao contato sexual, porém essa negativa não é sincera, fazendo apenas parte do jogo de sedução. Daí surge um problema de identificar se realmente houve a resistência da suposta vítima ao ato libidinoso.
Por exemplo: suponhamos que um homem oferece carona para uma amiga, e já no seu carro começa a acariciá-la. Esta diz não querer contato sexual, mas corresponde às carícias; diante disso o homem avança o sinal e acaba tendo conjunção carnal com a moça, que continua dizendo não, porém sem apresentar qualquer negativa mais contundente, sendo segurada fortemente pelo varão durante o ato sexual. Imaginemos, ainda, que se trata de uma mulher casada, e depois, vindo o marido a descobrir o fato, alega que foi estuprada. Seria legítima, nesse caso, a imputação do crime de estupro? Obviamente que não.
O exemplo dado ilustra bem problemas do cotidiano que dão relevância ao debate empreendido neste item.
Sobre o dissenso (resistência) da vítima assim ensinam Pierangeli e Souza (2010, pp. 15-16):
O delito exige o dissenso da pessoa, homem ou mulher, pois quando há o consentimento válido não há constrangimento. São realidades que se opõem. O dissenso, que deve ser expresso e só excepcionalmente presumido, também deve ser sincero e positivo, mas não se exige uma oposição irresistível ou que constitua um ato de heroísmo. Não basta, portanto, um simples não, porque se requer uma real oposição.
Conforme visto, não basta que a vítima diga não ao ato sexual. Deve haver uma oposição sincera e materialmente demonstrada.
Como bem lembrado por Rogério Greco (2010, v. III, p. 464), pode até haver erro de tipo no caso, quando a vítima diz não, porém o agente prossegue pensando que aquilo é apenas parte do "jogo de sedução". Com o mesmo teor as colocações de Cleber Masson (2011, v. 3, p. 12): "De fato, se um dos envolvidos não demonstrar seriedade em sua repulsa ao ato sexual, e o outro nele insistir com violência ou grave ameaça, acreditando tratar-se o ‘não’ de fase do ritual da conquista, incidirá o instituto do erro de tipo, nos moldes do art. 20, caput, do Código Penal, afastando o dolo e conduzindo à atipicidade do fato".
Agora, se ficar claro o não da vítima, materialmente demonstrado, não há que se utilizar subterfúgios para fugir à responsabilização penal. Nesse ponto, Rogério Greco (2010, v.III, p. 465), comentado o julgado que condenou o boxeador Mike Tyson pelo estupro de Desiree Washington, pondera "[...] que a vítima, mesmo dando mostras anteriores que desejava o ato sexual, pode modificar sua vontade a qualquer tempo, antes da penetração, por exemplo. Somente o consentimento que precede imediatamente o ato sexual, como esclareceu o Tribunal norte-americano, é que deve ser considerado".
Pode ocorrer, ademais, que no início do ato sexual a vítima resista, porém depois venha a aquiescer. Ocorrendo isto restará afastada a imputação do delito, segundo explica Nucci (2009, p. 20):
Por outro lado, sustentamos deva durar o dissenso da vítima durante todo ato sexual. Não é viável admitir a dissensão apenas no início, havendo concordância ao final. Do mesmo modo, defendemos a possibilidade de cessação do consenso a qualquer momento, sem que exista a viabilidade legal para o agente prosseguir, valendo-se de força física ou qualquer outro método violento.
Pierangeli e Souza (2010, p. 16) também entendem que a resistência da vítima deve ser durante todo o ato sexual. Isso, por óbvio, não exclui a incidência do estupro quando inicialmente a vítima consente, mas depois, não querendo mais, é forçada a prosseguir. Apenas não haverá estupro se a vítima, inicialmente coagida, depois vem a consentir com o ato sexual ainda durante a sua prática.
2.9.3 Crime único e continuidade delitiva
O STF já havia consolidado o entendimento de que não era possível continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor por serem de espécies diferentes, ou seja, previstos em tipos diversos (arts. 213 e 214 do CP).
Com a unificação da conduta típica em um único artigo (art. 213) o debate ganha novos contornos.
A doutrina majoritária construída diante da Lei 12.015/2009 passou a entender que conjunção carnal e atos libidinosos forçados praticados em um mesmo contexto fático levam à caracterização de um crime único de estupro; e se ocorrem em momentos distintos, mas estiverem presentes os requisitos do artigo 71 do CP, restará configurada a continuidade delitiva.
É este o entendimento de Nucci (2009, pp. 18-19):
O concurso de crime altera-se substancialmente. Não há mais possibilidade de existir concurso material entre estupro e atentado violento ao pudor. Aliás, conforme o caso, nem mesmo crime continuado. Se o agente constranger a vítima a com ele manter conjunção carnal e cópula anal comete um único delito de estupro, pois a figura típica passar a ser mista alternativa. Somente se cuidará de crime continuado se o agente cometer, novamente, em outro cenário, ainda que contra a mesma vítima, outro estupro.
Em sentido similar às colocações transcritas são os posicionamentos de Fernando Capez (2011, v. 3, p. 44), Rogério Sanches Cunha (2010, v. 3, p. 252) e Rogério Greco (2010, v. III, p. 49).
Preenchidos os requisitos do art. 71 do CP, também é possível o reconhecimento da continuidade delitiva mesmo que em estupros contra vítimas diferentes (CAPEZ, 2011, v. 3, p. 47).
O posicionamento quanto ao reconhecimento da continuidade delitiva entre as violações sexuais através de conjunção carnal e aquelas levadas a efeito via outros atos libidinosos (conduta antes prevista como atentado violento ao pudor – art. 214 do CP) tem reflexo, inclusive, em fatos ocorridos antes da vigência da Lei 12.015/2009, por ser esta mais benéfica para os agentes. Assim, torna-se possível a revisão de condenações nas quais foi reconhecido o concurso material entre estupro e atentado violento ao pudor, cujas circunstâncias hoje autorizem vislumbrar a presença de crime único ou de continuidade delitiva (CUNHA, 2010, v. 3, p. 252; no mesmo sentido: STJ, 6ª Turma, HC 144870-DF, j. 09/02/2010).
O STF e o STJ têm reconhecido recentemente a continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, aplicando retroativamente a Lei 12.015/2009 (por exemplo: STF – HC 86110/SP; STJ – HC 139956/SP).
Ressalte-se que apesar dos vários posicionamentos já referidos sobre a presença de crime único quando, no mesmo contexto fático, a vítima for constrangida à prática de conjunção carnal e de outros atos libidinosos, esse entendimento não é pacífico. Pierangeli e Souza (2010, pp. 28-29) informam que Vicente Greco Filho, Gianpaolo Poggio Smanio e Walter Tebet Filho continuam entendendo haver concurso material quando houver conjunção carnal e outros atos libidinosos com desígnios autônomos (sexo anal, por exemplo), mesmo que praticados em um mesmo contexto fático. Essa linha de raciocínio afasta o caráter misto alternativo do art. 213, reconhecendo-o como misto cumulativo. Essa posição também foi defendida no julgamento do HC 104724/MS, STJ, 5ª Turma, j. 22-06-2010.
Destarte, no âmbito do STJ há, inclusive, julgados negando a continuidade delitiva quando se tratar de crimes de estupro praticados em um mesmo contexto fático, em se tratando de outras violações graves (sexo anal, por exemplo) cometidas em concomitância com conjunção carnal, ao argumento de que tais condutas têm modos de execução distintos [05]. Em julgados posteriores, contudo, o STJ vem unificando entendimento quanto à possibilidade de continuidade delitiva, conforme noticiado pelo seu site oficial em 12/04/2011 [06]:
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é possível a figura do crime continuado entre estupro e atentado violento ao pudor – tipos penais tratados separadamente pelo Código Penal até 2009, quando foram reunidos num mesmo artigo sob a denominação geral de estupro.
Com a decisão, o STJ passa a ter um entendimento unificado sobre o tema, pois a Sexta Turma já vinha se manifestando pela possibilidade do crime continuado
– que significa que o réu é condenado à pena de um dos crimes cometidos em sequência, aumentada de um sexto a dois terços, em vez de suportar uma pena para cada crime.[…]
A decisão da Quinta Turma, rejeitando o recurso do Ministério Público e assim mantendo o acórdão do TJSP, não foi unânime. Dos cinco integrantes, dois votaram pelo entendimento de que, embora do mesmo gênero, os crimes não seriam da mesma espécie, tendo modos de execução diferentes, e por isso não poderiam ser enquadrados na hipótese de crime continuado. (Grifos nossos)
Nota-se, portanto, que a tendência, no âmbito do STJ, é a unificação do entendimento jurisprudencial quanto à possibilidade do reconhecimento de continuidade delitiva na situação enfocada. Resta, não obstante, aguardar o posicionamento da sua Terceira Seção (que reúne membros das Turmas que decidem matéria criminal – Quinta e Sexta) sobre a questão.
No âmbito do STF, segundo Cleber Masson (2011, v. 3, p. 17): "Os julgados ora existentes parecem indicar a preferência do Supremo Tribunal Federal pela tese que sustenta tratar-se o art. 213 do Código Penal de tipo misto alternativo. Entretanto, é fundamental acompanhar a evolução da jurisprudência, aguardando o posicionamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal, pois somente assim existirá entendimento conclusivo sobre o assunto".
Percebam que são duas polêmicas diferentes: 1ª) sobre a ocorrência ou não de crime único quando ocorrer, no mesmo contexto fático, conjunção carnal ou outro ato libidinoso forçados; 2ª) sobre a aceitação ou não da continuidade delitiva entre a conjunção carnal e o atentado violento ao pudor forçados.
As correntes que se formaram em torno dessas polêmicas são, basicamente, duas (segundo já explicitado); uma que diz que o art. 213 é um tipo misto alternativo e outra que defende seja ele misto cumulativo.
Quanto à prática de mais de uma conjunção carnal em contextos distintos, ambas as correntes concordam que são crimes da mesma espécie e que se preenchidos os demais requisitos da continuidade delitiva (art. 71 do CP), resta o reconhecimento desta.
A grande divergência está quanto à prática de conjunção carnal e de atos libidinosos graves diversos da conjunção carnal (sexo anal e felação, para citar exemplos mais comuns); pois os defensores da tese do tipo misto alternativo dizem que se tais violações forem praticadas em um mesmo contexto fático e contra a mesma vítima resta caracterizado crime único; já a corrente contrária diz que nesse caso há concurso material. A primeira corrente admite a possibilidade da continuidade delitiva se tais violações forem praticadas em contextos fáticos distintos; já a segunda nega essa possibilidade.
2.9.4 Atos libidinosos como "prelúdio do coito"
Suponhamos que um homem, mediante ameaça com arma de fogo, leva uma mulher para um matagal com o intuito de com ela praticar conjunção carnal. Chegando no local começa a despi-la, acaricia seus seios e suas nádegas, deita a vítima no chão, porém antes de consumar a conjunção carnal é surpreendido pela polícia e preso.
Pergunta-se: nesse caso deve-se considerar estupro consumado por conta dele já ter realizado atos libidinosos forçados (acariciar os seios e as nádegas da vítima), ou seria mais adequado entender que se trata de estupro tentado, considerando que ele não conseguiu finalizar seu objetivo de manter conjunção carnal com a vítima?
Quanto a este ponto, pondera a doutrina (GRECO, 2010, v. III, p. 454), que há apenas tentativa:
Se os atos que antecederam ao início da penetração vagínica não consumada forem considerados normais à prática do ato final, a exemplo do agente que passa as mãos nos seios da vítima ao rasgar-lhe vestido ou, mesmo, quando esfrega o pênis em sua coxa buscando a penetração, tais atos deverão ser considerados antecedentes naturais ao delito de estupro, cuja finalidade era a conjunção carnal.
Conforme essa linha de entendimento, os atos anteriores à penetração pretendida devem ser considerados como preliminares para a violação sexual pretendida; e, assim sendo, se o agente é interrompido antes de consumar a conjunção carnal, responde apenas pelo crime tentado de estupro.
Esses atos anteriores são conhecidos na doutrina como praeludia coiti (prelúdio do coito), não devendo ser considerados como autônomos para configuração do crime de estupro.
Importante observar, entretanto, que se o objetivo final do agente fosse apalpar a vítima coagida em suas partes íntimas visando com isso satisfazer sua lascívia, estaríamos diante de um crime de estupro consumado, pois não seria o caso de "prelúdio do coito". Daí Cleber Masson (2011, v. 3, p. 27) afirmar: "Entretanto, é preciso diferenciar os limites tênues da tentativa de estupro, quando o agente busca a conjunção carnal, mas não alcança o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade, do estupro consumado pela prática de outro ato libidinoso. Nessa hipótese, o dolo deve ser utilizado como o vetor do intérprete da lei penal para solução do caso concreto".
2.9.5 Concurso de agentes
Sem dúvida que o estupro comporta o concurso de agentes. Assim, havendo mais de uma pessoa concorrendo para a prática do delito, todos devem por ele responder (art. 29 do CP).
Quando um único agente executa diretamente a ação típica, tendo a concorrência de outros, não há dúvida que existe um único crime a ser imputado a todos os concorrentes.
Há, porém, a possibilidade de várias pessoas, em um mesmo contexto fático, violarem diretamente a vítima, em uma prática conhecida vulgarmente como "curra"; consoante exemplifica Rogério Greco (2010, v. III, p. 469):
Não é incomum que o estupro, mediante conjunção carnal, seja cometido por várias pessoas, que atuam em concurso. Assim, pode ocorrer, por exemplo, que três pessoas, unidas pelo mesmo liame subjetivo, com identidade de propósito, resolvam estuprar a vítima. Dessa forma, enquanto dois a seguram, o terceiro leva a efeito a penetração, havendo entre eles um "rodízio criminoso".
Defende o citado autor que, nesse caso, haverá três crimes de estupro (em continuidade delitiva), pelos quais os três concorrentes deverão responder, pois, segundo ele (ibidem): "[…] o estupro mediante conjunção carnal é crime de mão-própria, de atuação personalíssima, de execução indelegável, intransferível, no caso em exame teríamos, sempre, um autor e dois partícipes, cada qual prestando auxílio para o sucesso da empresa criminosa". Em direção semelhante são os ensinamentos de Cleber Masson (2011, v. 3, p. 21).
Visualizamos, porém, que há riscos desse entendimento não se sustentar futuramente diante de uma análise mais aprofundada da nova redação do art. 213 do CP, pois não se pode alegar mais ser tal delito de mão-própria. Destarte, diante do entendimento majoritário de que o art. 213 configura-se um tipo misto alternativo; há a possibilidade de se reconhecer a presença de crime único quando atuem mais de um agente agredindo sexualmente uma única vítima, mesmo que realizem conjunção carnal em concomitância com violações sexuais distintas (sexo oral, sexo anal etc.). Sob o ponto de vista da política criminal não nos parece ser esta a solução mais adequada, porém parece ser esta a interpretação sinalizada pelo contexto técnico em formação.
Para melhor visualizar o que estamos explicando, façamos uma comparação: se três indivíduos, ajustados para agredirem uma única pessoa, resolvem, cada um à sua vez (mas em um mesmo contexto fático), provocar lesões corporais na vítima, enquanto os outros dois ameaçam a mesma para não reagir, irão responder por crime único ou por três delitos de lesão corporal? A resposta só pode ser que irão responder por crime único. No caso de estupro a situação é semelhante, apesar da hediondez das violações; tanto que se um único agente realiza várias penetrações na vítima, em um mesmo contexto fático, têm-se reconhecido o crime único; não havendo razões técnicas para distinguir, sob esta linha de entendimento, no caso de concurso de agentes, as mesmas várias penetrações, porém realizadas por pessoas diferentes.
2.9.6 Síndrome da mulher de Potifar
Com a maestria que lhe é peculiar, Rogério Greco (2010, v. III, pp. 471-473) explica o caso bíblico de José, então escravo de Potifar, que sendo desejado pela mulher de seu senhor resistia às investidas da mesma; porém esta, para prejudicar José, o acusou de tentativa de estupro. Na situação do suposto estupro tentado, a vítima e o acusado estavam sozinhos no local onde teria ocorrido o crime.
Inspirada neste relato bíblico construiu-se na Criminologia a expressão "síndrome da mulher de Potifar" para designar situações em que a suposta vítima mente para prejudicar o suposto agressor, imputando-lhe falsamente um crime de estupro no qual inexistem testemunhas. Por conta de casos desse jaez, o juiz deve ter muita cautela ao julgar possíveis estupros onde a prova fundamental seja a palavra da vítima. Nesse aspecto assim se expressa Rogério Greco (2010, v. III, p. 473):
Mediante a chamada síndrome da mulher de Potifar, o julgador deverá ter a sensibilidade necessária para apurar se os fatos relatados pela vítima são verdadeiros, ou seja, comprovar a verossimilhança de sua palavra, haja vista que contradiz com a negativa do agente.
A falta de credibilidade da vítima poderá, portanto, conduzir à absolvição do acusado, ao passo que a verossimilhança de suas palavras será decisiva para um decreto condenatório.
Como visto, a palavra da vítima pode ser vital para subsidiar uma condenação por estupro, pois este normalmente acontece às escondidas, sem testemunhas. A dita síndrome da mulher de Potifar não descarta essa realidade, apenas lembra ao julgador a possibilidade plausível de haver uma falsa imputação no caso, demandando cautela na avaliação da negativa do imputado.