3.Legislação Pertinente
Em termos legislativos, podemos asseverar que a teoria da empresa, calcada na definição de seu sujeito e, via conexa, da atividade que este desenvolve, ancorou-se no art. 2082 do Código Civil italiano, que possui a seguinte redação: "Art. 2082. (Empresário). É empresário quem exercita profissionalmente atividade econômica organizada para o fim da produção ou troca de bens ou de serviços". [13]Nosso direito, por sua vez, determina seu pleno apego ao direito peninsular ao consagrar a teoria da empresa e definir o empresário em seu art. 966, cuja redação é conveniente reproduzir: "Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços". [14]
Dos dispositivos mencionados salta aos olhos a semelhança que chega aos extremos da exatidão de conceitos. Realmente, o que acontece é que não há diferenças entre um e outro preceito, fixando, vez por todas, a adoção da teoria italiana pelo Código Civil brasileiro, por conseguinte o direito comercial torna-se hoje o direito das empresas exercidas pelos empresários em estabelecimentos empresariais.
Em termos didáticos, visando traçar o perfil legal da matéria a ser apresentado aos alunos em geral, é correto mencionar que o Direito empresarial moderno encontra-se quase inteiramente regido pela Lei 10.406/02, novo Código Civil, que destina o Livro II da Parte Especial inteiramente ao Direito de Empresa (arts. 966 a 1.195). Há de ser ressaltado, no entanto, que o Código Comercial de 1850 ainda continua em vigor, decerto que o art. 2.045 do Cód. Civil apenas revogou expressamente a sua primeira parte, mantendo a vigência da segunda, destinada ao Comércio Marítimo.
Temos, ainda no Código Civil, a regulação genérica dos títulos de crédito, através do Título VIII, do Livro I, da Parte Especial (arts. 887 a 926), que deve ser estudada juntamente às leis especiais que regem cada título de crédito em particular (Decreto 57.663/66 – Letra de Câmbio/Nota Promissória; Lei 5.474/68 – Duplicatas; Lei 7.357/85 – Cheques etc.).
Quanto aos demais temas, teremos suas bases igualmente lastreadas no Código Civil, que trata das pessoas naturais e jurídicas (arts. 1.º a 69), direito das obrigações (arts. 233 a 420), contratos (arts. 421 a 886), da responsabilização civil (arts. 927 a 954), bem como da disciplina do empresário individual, da sociedade simples e empresária, assim como seus tipos e particularidades. A respeito destas últimas, sociedades empresárias, é mister ainda o conhecimento da Lei 6.404/76 que rege as sociedades do tipo anônima, maior e mais complexa forma societária a ser estudada.
Vemos, desta feita, o predomínio das normas do Código Civil no que se refere à disciplina societária e comercial, diploma esse que será a espinha dorsal a fundamentar a matéria em apreço.
4.Direito Empresarial: conceito
Conforme já visto, o Direito Comercial e logicamente todo o aparato legislativo que o circunda, vem hoje lastreado pela teoria da empresa. Buscar, pois, o conceito de Direito Comercial, melhor especificando, de direito empresarial, prescindindo do seu conhecimento é caminhar em sentido contrário à doutrina e legislação predominantes no Brasil. Outro equívoco pode advir da singela invocação do sentido econômico de comércio – atividade de circulação riquezas – para arrazoar seu conceito, pois muito embora seja importante elemento constitutivo do direito empresarial, certamente é o comerciante um empresário, não mais é o seu único componente de construção, de vez que a empresa engloba atos e sujeitos situados fora da atividade mercantil e que, entretanto, são regidos pelo Direito Empresarial.
Para se chegar a um conceito condigno, é preciso antes uma breve argumentação histórica acerca do direito empresarial, dividindo-o em períodos de tempo. Dentro deste intento, podemos classificá-lo em três períodos distintos, cada um com um sujeito diverso e com uma nomenclatura própria [15]:
a)Período Subjetivista: o direito se desenvolve com base escrita na obra de Benevenuto Stracca, de 1553, intitulada "Tratactus de Mercatura seo Mercatore" (Tratado sobre a Mercatura e o Mercador), inaugurando a fase primeira em que o sujeito é o mercador e a disciplina o Direito Mercantil;
b)Período Objetivista: inaugurada pelo Código Comercial francês de 1807, também denominado de Código Napoleônico. Tem por cerne o comércio e por sujeito o comerciante, assim considerado, objetivamente, aquele que praticasse com habitualidade e profissionalismo certos atos denominados atos de comércio. É o regime adotado pelo Código Comercial brasileiro de 1850 e apenas revogado em 2002 pelo novo Código Civil. Daí a denominação clássica, Direito Comercial;
c)Período Subjetivista Moderno: retrata a terceira fase do Direito em questão, inaugurada pelo Código Civil italiano de 1942 e centrada na figura do empresário, daí seu caráter subjetivista. O direito comercial clássico tem sua abrangência estendida para agasalhar também, além dos comerciantes, outras atividades desde que compreendidas no conceito econômico e jurídico de empresa. É o direito das empresas exercidas pelos empresários, resultando na nova denominação: direito empresarial.
É, assim, o direito empresarial, o ramo do direito privado que rege as diversificadas relações entre empresários e sociedades empresárias com o objetivo de atender a uma demanda imposta por uma sociedade consumista. Essa nova conceituação, de natureza subjetiva, contrapõe-se à anterior teoria objetivista dos atos de comércio, inspirada no direito gaulês e corporificada no Código Comercial de 1807 (Código Napoleônico). Tal teoria não vingou uma vez que tinha por foco os atos praticados pelo suposto comerciante, não colocando importância alguma na própria figura do comerciante. Na sua concepção objetivista, não pôde estabelecer com precisão todos os atos que realmente são mercantis, olvidando alguns manifestamente comerciais, bem como inserindo outros certamente não mercantis, mas incluídos nessa categoria por força de lei. A situação é bem representada pelo Prof. Otávio Mendes, citado por Rubens Requião, que [16]
...ao passar revista sobre as insatisfatórias definições dos mais eminentes autores, melancolicamente assevera: "(...) resta-nos concluir, reconhecendo francamente a falência do Direito Comercial diante do problema da definição e classificação dos atos de comércio. Todos os escritores reconhecem esse fato".
Em verdade, a teoria dos atos de comércio restou superada pela teoria da empresa, que teve seu momento exponencial com a edição do Código Civil italiano de 1942, instrumento de unificação formal do direito civil e comercial e que serviu como modelo ao nosso atual Código Civil.
Destarte, a teoria da empresa, hoje totalmente habilitada pelo novo Código Civil, levou Rubens Requião a professar que "O direito comercial tem um âmbito preciso e definido, que se identifica modernamente como o direito das empresas mercantis". [17]
O mesmo caminho é percorrido por Fábio Ulhoa Coelho [18] ao lecionar que
O Direito Comercial cuida do exercício dessa atividade econômica organizada de fornecimento de bens ou serviços, denominada empresa. Seu objeto é o estudo dos meios socialmente estruturados de superação dos conflitos de interesses envolvendo empresários ou relacionados às empresas que exploram. As leis e a forma pela qual são interpretadas pela jurisprudência e doutrina, os valores prestigiados pela sociedade, bem assim o funcionamento dos aparatos estatal e parestatal, na superação desses conflitos de interesses, formam o objeto da disciplina.
O tema é discutido também por Sylvio Marcondes, emérito jurista encarregado de sistematizar o Direito de Empresa no Código Civil de 2002, que embora professe em favor da inexistência de um conceito jurídico de empresa [19], alerta que esta tem seu elemento marcante no seu conteúdo econômico vislumbrado por Waldemar Ferreira [20], razão pela qual o Direito Comercial, por silogismo lógico, é o ramo do direito que cuida do empresário e da atividade empresarial.
Marcelo M. Bertoldi, reflete o conceito de empresa como algo intimamente ligado aos fundamentos do direito comercial moderno, asseverando que [21]
O Direito brasileiro filia-se ao sistema subjetivo italiano – teoria da empresa – voltando a doutrina suas preocupações para a conceituação jurídica da empresa como atividade econômica a gerar direitos e obrigações, na medida em que este conceito é que determina e delimita o conteúdo do Direito Comercial moderno.
A superação da teoria dos atos de comércio pela teoria da empresa como fonte do Direito Comercial é também retratada por Sérgio Campinho, para quem [22]
Classicamente tem-se definido o Direito Comercial como sendo o direito dos comerciantes e dos atos de comércio. Seria o ramo do direito privado que regularia as relações resultantes da atividade do comerciante no exercício direto ou indireto da sua profissão, além daqueles atos reputados pela lei como comerciais, mesmo que praticados por não comerciantes. Não se restringiu o Direito Comercial a disciplinar mera intermediação de produtos entre produtor e consumidor. Ele contemplou outras atividades conexas, para impor seu campo de incidência a alcançar atividades industriais, de transportes, securitárias, de banco, dentre outras relações de cunho econômico que viessem a integrar a intitulada matéria de comércio, isto é, definidas como comerciais pela lei. (...)O modelo do novo Código Civil brasileiro inspira-se no perfil do Código Civil italiano de 1942, reunindo numa única lei as regras de direito privado (regras civis e mercantis), como reforço à superação da idéia do Direito Comercial como direito dos comerciantes e dos atos de comércio, passando o seu núcleo ser a empresa.
Verdadeiramente, o que percebemos é que o direito não é um ramo da ciência de conteúdo estático, muito pelo contrário, está em constante formação e transmutação, residindo nessa sua interessante característica, seu dinamismo, a necessidade de se adequar a denominação da disciplina "Direito Comercial" para "Direito Empresarial". Idêntica reflexão se faz acerca de seu conceito que se alastrou do âmbito comercial para o empresarial, maior, mais moderno e certamente integrado com a economia de mercado liberal e globalizada que ora se impõe nos quatro cantos do planeta.
E assim, finalmente, visando conferir um fecho ao conceito de direito empresarial que, como visto, é para todos os autores citados o direito do empresário e da empresa, convém a lembrança das palavras de Waldo Fazzio Júnior que salienta: [23]
De nossa parte, embora atentos à advertência aristotélica de que definir é sempre perigoso, e tendo em conta as peculiaridades da matéria, devemos concluir que o Direito Comercial, ao menos no Brasil, como complexo normativo positivo, focaliza as relações jurídicas derivadas do exercício da atividade empresarial. Disciplina a solução de pendências entre empresários, bem como os institutos conexos à atividade econômica organizada de produção e circulação de bens (contratos, títulos de crédito, insolvência etc.). Tem por objeto a empresa, como unidade serviçal do mercado cuja existência está amarrada ao intuito de lucro.
Fica, pois, clarificado que o Direito Comercial é hoje o direito das empresas, a disciplina jurídica do direito privado que rege o empresário e a sociedade empresária dentro de suas relações mais heterogêneas, relações estas que estão, contudo, sempre correlacionadas com a natureza econômica de sua atividade.
Conclusão
Por intermédio das considerações ora expostas, percebemos que o direito comercial sofreu intensas modificações com a sistematização da denominada teoria da empresa que ampliou o seu objeto e com isso trouxe para sua proteção outros sujeitos além do comerciante. Destacamos que o Direito Empresarial é atualmente o direito das empresas e dos empresários, designações que inferem no reconhecimento da atividade e no sujeito deste especial ramo do direito.
Realmente, podemos relembrar que outrora definia Vivante o direito comercial da seguinte forma: [24]
O direito comercial é o ramo do direito privado que tem por principal objeto regular as relações jurídicas que surgem do exercício do comércio. Ocupa-se das normas administrativas, processuais, penais que, em prol interesse público, governam a atividade comercial, apenas enquanto se dispõem a regular os interesses privados.
No entanto, hodiernamente, para utilizarmos da mesma estrutura conceitual do autor para adaptar o conceito para o direito empresarial, podemos invocá-lo como sendo o ramo do direito privado que tem por principal objeto regular as relações jurídicas que surgem do exercício do comércio. Ocupa-se das normas administrativas, processuais, penais, que, em prol do interesse público, governam a atividade empresarial, apenas enquanto se dispõem a regular interesses privados.
Teremos, dessarte, um entrelaçamento do conceito econômico de empresa, que envolve a perspectiva funcional desta como uma atividade a ser praticada, com o conceito jurídico que não pode se sustentar sozinho, sem as bases desta última. É a empresa uma criação do mundo econômico, mais precisamente do sistema capitalista moderno, de onde se extrai uma importante advertência: o direito empresarial na sua atual fase de desenvolvimento, ao apresentar-se como um movimento de fundo econômico capitalista, poderá refletir interesses das classes dominantes, revelando-se um relevante instrumento de manutenção da ordem "desarmônica" atual, de opressão das classes sociais menos favorecidas e de perpetuação da ideologia econômico-social dominante. O profissional ou estudioso do direito deve, portanto, ficar atento a esse caráter regulador do direito, que pode ser manipulado tanto para a boa como para a má formação social de um povo, mormente no caso do direito empresarial, calcado em aspectos práticos e relativos ao regime econômico predominante.
De fato, o direito das empresas precisa ser interpretado como meio de integração social, pois [25]
A disciplina jurídica do mundo econômico, ou do mundo dos negócios, como querem outros, orienta-se sempre de encontro a uma tendência política e possui, seja qual fôr o rumo, uma clara influência de castas econômicas ou de ideologias interessadas. A realidade social, que o Direito vem adaptar às finalidades do homem, nem sempre pressupõe uma realidade plástica, que o jurista conformará ao ideal romântico da moral e da liberdade. A função adaptante do Direito poderá transformar-se em instrumento potente de sustentação de rumos políticos ou de opressão, especialmente quando, como no caso do Direito Comercial, movimenta-se o Direito na estrutura da economia, que é condicionante das liberdades.
Por outro lado, lembremos que o direito comercial, sustentado na falha teoria dos atos de comércio, não mais atendia aos anseios da economia moderna e à vida dos próprios comerciantes e dos empresários que passaram a exercer forte influencia sobre os rumos da política econômica do séc. XX e XXI. A teoria da empresa veio a redefinir e modernizar conceitos que não mais atendiam à realidade social do homem, demonstrando ser, assim, importante instrumento de integração social e de produção de riquezas. Isto não retira, no entanto, os cuidados que o operador do direito deve ter por sua proximidade às ciências econômicas e aos rumos políticos que pode ditar a um povo.
Em conclusão, vimos na teoria da empresa um marco para o estudo do direito comercial nas faculdades e universidades do Brasil. Embora tenha seus aspectos negativos, é inegável que o direito comercial, hoje Direito Empresarial, necessitava dessa reforma que teve por principal vitória a construção de um sistema jurídico mais sólido e compreensível do que o anterior sistema gaulês, inspirados nos atos de comércio. E é por isso que o estudante de direito das instituições de ensino de vanguarda, atentas às inovações históricas, [26] deverá cursar com profundidade e comprometimento essa relevante disciplina das empresas e dos empresários, hoje denominada Direito Empresarial.