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Infiltração policial no Brasil: um jogo ainda sem regras

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30/08/2009 às 00:00
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Aantes mesmo da ação repressora pelo Estado, a elaboração de normas válidas, "regradoras do jogo", é condição para construção de um Estado Democrático de Direito, pois a busca da prova não se dá a qualquer custo.

RESUMO

O artigo analisa a infiltração policial, técnica operacional de obtenção de dados, sob a ótica do policial que, destinado a ingressar em (a fazer parte de) uma organização criminosa, atua como se criminoso fosse. Abordando inicialmente o surgimento dessa nova modalidade de delinqüência e de novas técnicas especiais de investigação, o trabalho tem como objetivo expor a insegurança jurídica que envolve o policial, uma vez que o ordenamento pátrio não regulamentou de forma inequívoca a matéria, olvidando-se de questões essências que dizem respeito à atuação do investigador antes, durante e após a implementação da medida. Ademais, o estudo delineia com precisão os traços que caracterizam a infiltração policial, desfazendo uma confusão recorrente que se faz desta em relação à "estória-cobertura". Nessa linha, o ensaio revela que, antes mesmo da ação repressora pelo Estado, a elaboração de normas válidas, "regradoras do jogo", é condição sine qua non para construção de um Estado Democrático de Direito, pois a busca da prova não se dá a qualquer custo. Se de um lado encontram-se os direitos do investigado, do outro, estão os direitos e garantias fundamentais dos policiais.

Palavras-chave: Infiltração Policial. Crime Organizado. Operação Encoberta. Direitos e Garantias Individuais. Agente Infiltrado.

ABSTRACT

The article analyzes the infiltration, operational technique for obtaining data, from the viewpoint of the police officer that, to enter (a part of) a criminal organization, acts as criminal was. Addressing first the emergence of this new type of crime and special investigation techniques, the paper aims to explain the legal uncertainty surrounding the police officer because the fatherland law does not regulate this issue unequivocally, forgotten are issues essences that relate to the role of the police officer before, during and after implementation of the measure. Moreover, the study outlines in detail the features that characterize the infiltration, undoing a mess that makes this applicant in relation to the cover-story. Accordingly, the test shows that, even before the enforcement action by the State, the development of valid standards, "rules of the game", is a sine qua non condition for building a Democratic State of Law, because the search for evidence does not give at any cost. If on one hand are the rights of the researcher, the other, are the rights and guarantees of the police officer.

Keywords: Infiltration. Organized Crime. Undercovert Operation. Individual Rights and Guarantees. Undercover Agent.


INTRODUÇÃO

A violência sem medida faz com que a sociedade busque, por meio de seus representantes, soluções rápidas e implacáveis contra todos aqueles que ousaram a desafiá-la, um verdadeiro "caça às bruxas" contra os inimigos do Estado. E é neste cenário, de farta legislação repressora, que prolifera o afronte à harmonia do ordenamento jurídico.

Ocorre que, em sua sanha repressiva, o Estado, além de mitigar garantias fundamentais na formação da culpa, na produção de prova, olvida-se, por vezes, em regulamentar adequadamente ferramentas de combate à criminalidade, leia-se, em dar lastro para a atuação segura dos agentes da lei. É o caso da infiltração policial, medida excepcionalíssima (a ser utilizada em ultima ratio), por meio da qual o Estado, para conter o avanço da criminalidade, passa a participar da conduta delituosa.

Com efeito, ante as inúmeras lacunas dos diplomas que tentaram disciplinar o tema, a utilização da técnica em comento conduz o policial à assustadora insegurança jurídica na implementação da medida, posto que a norma que lhe dá guarida seria complementada por diretrizes emanadas da autoridade judiciária, reforçando a figura do juiz inquisidor.

Ora, se de um lado o indivíduo, ainda que acusado de ter cometido uma infração penal, um crime grave, tem o direito de ver contra si a prova obtida de forma lícita, ou seja, que a prova produzida observe as formalidades e os limites impostos pela lei, de outro, o policial, para estar seguro de sua performance antes, durante e após a infiltração, tem o direito de ver a medida devidamente regulamentada. Suas ações devem estar resguardas independentemente do entendimento da autoridade judiciária.

Dessa forma, diante de tamanhas discussões, dúvidas e questões mal resolvidas, é dever do Estado fulminar qualquer insegurança (tanto para o investigado quanto para o policial que colhe o elemento de prova) na implementação de instrumento que possua o Direito Penal (material ou processual) como berço.

A hercúlea missão (definir com clareza as ações do policial infiltrado que estariam respaldadas pelo Estado, bem como outras que garantissem o retorno harmônico às suas antigas atividades após a infiltração), por certo, está repousada sobre os ombros do legislador, pois ao juiz, em prestígio ao sistema acusatório, cabe agir como mero espectador, ou seja, julgar diante de provas obtidas pela polícia, produzidas pelo ministério público e pela defesa, nos moldes estabelecidos em leis.


1 CRIME ORGANIZADO E TÉCNICAS ESPECIAIS DE INVESTIGAÇÃO

O avanço tecnológico, a globalização e a facilidade de comunicação, de transmissão de dados e de transporte incrementaram a organização de pessoas em redes (em grupos), as quais passaram a se estruturar como verdadeiras empresas na busca por vantagens ilícitas.

Para garantir o sucesso da empreitada, tais grupos cooptam servidores públicos (em todos os Poderes) que in tese teriam o ofício de contê-los, e se valem, como forma de "marcar seus territórios", da extrema violência quando surgem indivíduos que, de uma forma ou de outra, estão a reprimir, a delatar ou a embaraçar o andamento de suas ações.

O crime, antes um fenômeno pretérito, ganha dinamismo, tratando-se do somatório de condutas latentes que estão em constante movimento. Ademais, passa a ser perpetrado sem um ponto de contato visível entre seus "verdadeiros" autores e a materialidade. Geralmente, aquele que tem vínculo direto com esta última (e que é preso) é a peça descartável (mais débil) da engrenagem; pessoas que servem ao mister criminoso, mas que possuem ínfima participação na ciranda delitiva (p. ex. a "mula", o motorista que transporta droga, o "laranja", etc.).

Ocorre que o "crime organizado se adapta rapidamente às transformações sociais do Estado", sendo certo que as mutações no modus operandi desses grupos estruturados tornam "a discussão de seu controle tão complexa e calorosa" (PACHECO, 2007, p.27).

Nesse contexto, em face do afloramento de uma nova modalidade de crimes, cometidos não mais por pessoas, mas por grupos (associação) de pessoas que se valem da tecnologia e da falência do poder de fiscalização estatal, surgiu, fulcrada na mitigação das garantias individuais, a Lei 9.034/95 (Lei do Crime Organizado).

Na ocasião, conforme previsão legal, crime organizado era equivalente à quadrilha ou bando (art. 1ºda Lei 9.034/95 – redação anterior). As investigações voltadas à repressão de tal conduta delitiva passaram a contar com meios de coleta e busca de provas diferenciados, excepcionais (ação controlada e acesso a dados, documentos, informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais).

Posteriormente, o crime organizado passou a abranger, além da quadrilha ou bando, a organização e associação criminosa (Lei 10.217/2001; art. 1ºda Lei 9.034/95 – redação atual). Ademais, houve um elastério em relação aos meios de coleta e busca de provas anteriormente elencados, de forma que os ilícitos decorrentes daquelas figuras típicas poderiam ser comprovados também por meio de interceptação ambiental e de infiltração policial, mediante autorização judicial (art. 2º, IV e V, da Lei 9.034/95 – redação atual).

Esse novo panorama caminha para e passo com normas internacionais. Ratificando a impossibilidade de conter a ação desses grupos criminosos apenas com a utilização de técnicas convencionais, a Organização das Nações Unidas, por meio da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2000), bem como da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003) (ambas internadas em nosso ordenamento jurídico com a vigência dos Decretos nº 5.015/2004 e nº 5.687/2006, respectivamente), propõe que os Estados Partes utilizem técnicas especiais de investigação, mormente a infiltração, com o fito de se detectar, confirmar, prevenir ou reprimir as atividades criminosas dissimuladas em meio a atividades lícitas.

Ante a evolução e estruturação dos grupos dedicados a atividades ilícitas, mormente aqueles que se valem dos progressos tecnológicos e da globalização para dissimulação de suas investidas criminosas, bem como para ocultação dos resultados dessas ações, os meios e técnicas empregados pelo Estado, em um movimento natural, necessário e proporcional, evoluíram na tentativa de se buscar um real equilíbrio de "armas".


2 "ESTÓRIA-COBERTURA" E INFILTRAÇÃO POLICIAL: CONFUSÕES APARENTES

Devido ao grau de complexidade de enfrentamento de grupos estruturados (crime organizado), voltados à prática de crimes que ocorrem de forma velada, sob o manto e a aparência de uma pretensa legalidade e que normalmente, contam com a participação de agentes públicos e políticos, exsurge a necessidade da utilização de Operações Encobertas por parte dos órgãos responsáveis pela prevenção e repressão dessa nova criminalidade.

Leitura atenta do Manual das Nações Unidas de Práticas contra a Corrupção (United Nations Handbook on Practical Anti-Corruption) (UNITED NATIONS, 2004) desvela que a infiltração policial é espécie do gênero Operação Encoberta (Undercover Operation), ao longo da qual a identidade do policial é dissimulada com o fito de se detectar, confirmar, prevenir ou reprimir as atividades criminosas. Devido a certas características, a operação em tela é classificada como simples ou complexa.

Simples são denominadas aquelas operações utilizadas por um curto espaço de tempo; possuem orçamento limitado; e não envolvem questões sensíveis de nível mais elevado, sendo dispensável o constante monitoramento do órgão investigador.

Assim, considera-se como uma Operação Encoberta Simples a aquisição de drogas de um traficante local por um policial (que se passa por consumidor) com o objetivo de identificar e efetuar com êxito a prisão do traficante, bem como seu fornecedor.

Em outro giro, a Operação Encoberta Complexa é mais sofisticada em face da sensibilidade dos membros do grupo investigado (agentes públicos e políticos), do histórico de violência da organização, do grau de envolvimento (proximidade) que o policial terá com os investigados, enfim, de circunstâncias que colocarão o policial e o órgão diante de risco maior.

Vê-se, pois, que uma Operação Encoberta (Simples ou Complexa) possui como alicerce uma técnica denominada "Estória-Cobertura" (EC), que consiste no emprego de artifícios destinados à elaboração de uma "estória" para encobrir as identidades de pessoas, instalações ou organizações, com o objetivo de mascarar os seus reais propósitos.

Na atividade policial, essa técnica visa a alcançar objetivos (obtenção do dado, aproximação com o alvo, permanência em determinado local, realização de prisões, etc.) com a manutenção do sigilo da investigação, além de proporcionar a proteção do pessoal, do material e das instalações.

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Em suma, o policial cria e vivencia uma "estória", fingindo o que não é (simulação), para encobrir com astúcia (dissimular) os objetivos da ação policial, e, portanto, garantir o sigilo e sucesso da empreitada.

A importância da EC para a investigação policial pode ser aferida na medida em que é a base, o porto seguro para qualquer outra técnica operacional que se vale da simulação, podendo (devendo) ser utilizada, dentre outras, em uma simples vigilância ou mesmo na execução de técnicas mais complexas, como o disfarce e a infiltração.

Em suma, a EC permite que a investigação policial permaneça em sigilo, bem como que a mesma avance paulatinamente, desvelando enlaces (vínculos) e estratagemas orquestrados por criminosos, os quais, diante da cobertura das ações policiais, serão surpreendidos e inevitavelmente presos.

Porém, devido à sua superficialidade, na medida em que não impõe ao policial o ingresso na intimidade das pessoas envolvidas em atividades criminosas, ou mesmo de membros de grupos criminosos, a utilização da "estória-cobertura" não se sujeita à autorização judicial para sua efetivação.

De outro lado, como condição necessária por força de seu sigilo, a infiltração policial, que consiste no ingresso de um policial em um grupo criminoso com o fim de obter informações para o desbaratamento do mesmo, utiliza a EC para permitir a aproximação e penetração oculta do policial.

Como visto, a infiltração policial, apesar de se valer de uma "estória-cobertura" (tendo a mesma como núcleo), com ela não se confunde, uma vez que não só coloca o policial em contato, como o introduz (infiltra) na intimidade do grupo investigado, passando o agente da lei a participar das atividades ilícitas; a ser parte daquela organização.

Ademais, em face da mitigação de direitos e garantias individuais (intimidade, privacidade), a infiltração policial, como medida invasiva, exige autorização judicial.


3 INFILTRAÇÃO POLICIAL NO BRASIL

Em nosso ordenamento jurídico, a infiltração policial encontra abrigo no art. 2º, V, da Lei 9.034/95, no art. 20 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Decreto nº 5.015/2004), no art. 50 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto nº 5.687/2006), bem como no art. 53, I, da Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, nova Lei de Drogas.

Ocorre que nenhum dos quatro diplomas conceitua a técnica especial em comento. Todos se limitam a citá-la, não atribuindo qualquer conceito capaz de explicitar como tal técnica se desenvolve.

Em nosso socorro, ensina Edwards (1996, p. 53), ao comentar a introdução dessa técnica operacional no ordenamento jurídico argentino (Ley 24.424 – Ley de Estupefacientes), que a infiltração policial pode ser conceituada como (grifo nosso):

Una técnica investigativa, que permite penetrar de afuera hacia adentro em uma organización dedicada al tráfico ilícito de estupefacientes, a través de la infiltración de um agente, con la finalidad de obetener información para desbaratar a esa organización criminal. Se trata, pues, de uma verdadera investigación encubierta.

José Luis Seoane Spiegelberg (apud JESUS, 2002) leciona que o AI é:

A pessoa que, integrada na estrutura orgânica dos serviços policiais, é introduzida, ocultando-se sua verdadeira identidade, dentro de uma organização criminosa, com a finalidade de obter informações sobre ela e, assim, proceder, em conseqüência, a sua desarticulação.

Na mesma esteira, Mendroni (2007a, p. 53) afirma que a técnica consiste em infiltrar o agente no "seio da organização criminosa, passando a integrá-la como se criminoso fosse". Ademais, prossegue o autor:

Agindo assim, penetrando no organismo e participando das atividades diárias, das conversas, dos problemas, das decisões, como por vezes de situações concretas, ele passa a ter condições de melhor compreendê-la para melhor combatê-la através do repasse de informações às autoridades.

3.1 Pressupostos

Como procedimento de investigação e formação de provas para prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, a infiltração pode ser utilizada mediante circunstanciada autorização judicial (art. 2º, parágrafo único, da Lei 9.034/95.). Já sua previsão na Lei de Drogas, além da autorização judicial, impõe a manifestação prévia do Ministério Público (art. 53 da Lei 11.343/2006).

Em que pese seu caráter invasivo, na letra da Lei nº 9.034/95, a autorização judicial, desde que fundamentada, é suficiente para implementação da infiltração policial quando se está a investigar o crime organizado (quadrilha ou bando, associação e organização criminosa).

3.2 Quem pode se infiltrar?

Além dos policiais, a Lei 9.034/95 estaria também por permitir a infiltração de agentes de inteligência (agentes de serviços de informações) na formação de provas.

Apesar de observar que o diploma afasta a possibilidade da infiltração de particulares, Mendroni (2007a, p. 58), por meio de uma interpretação literal da norma, entende que é possível, além dos agentes policiais, a infiltração de agentes de inteligência:

O dispositivo permite a interpretação de que não só os agentes da Polícia Federal, Pólicias Estaduais, Civil e Militar, mas também da Receita Federal e Secretarias das Fazendas Estaduais e outros órgãos policiais ou de inteligência podem ser infiltrados sempre que se tratar de investigar qualquer circunstância ligada a organizações criminosas, com prévia autorização judicial; mas nunca a particulares, entenda-se, pessoas não pertencentes a qualquer destes órgãos.

Em outro sentido, Rocha (2001, p. 148) alerta que a permissão para a atuação de agentes de inteligência como agentes infiltrados é de "duvidosa constitucionalidade", uma vez que "a eles, em regra, não são cometidas funções de Polícia Judiciária".

Para Franco (2002, p. 587), a atividade de infiltração, por violar a intimidade e outros direitos fundamentais, somente se legitima quando está voltada à coleta de provas a serem utilizadas no processo penal. Portanto, a medida só pode ser ultimada por agentes que possuem funções de polícia judiciária.

A própria lei, ao tempo que prevê a infiltração de agentes de inteligência (art. 2º, V), também dispõe em seu art. 4º, de forma inequívoca, que os órgãos da polícia judiciária são os responsáveis pela utilização de tal técnica, cabendo aos mesmos a estruturação de setores e equipes de policiais especializados para o combate a ações praticadas por organizações criminosas.

Por fim, a Lei 11.343/2006 indica que a melhor interpretação vai no sentido de se restringir a infiltração aos agentes de polícia, prevendo que em qualquer fase da persecução criminal é permitida "a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes" (art. 53, I).

De fato, ante o cotejo dos dispositivos da norma infraconstitucional sob análise, e dessa com a Lei 11.343/2006 e a Carta Magna, a infiltração somente poderá ser efetivada por policias, uma vez que, além de se tratar de técnica operacional para a obtenção de dados, informações, indícios, todos voltados à produção de provas na esfera penal, a medida impõe rico altíssimo (inclusive de morte), a ser suportado por servidores da carreira policial.

Cabe não olvidar que, no âmbito do inquérito policial militar ou mesmo do processo penal militar, destinados a apurar a autoria e materialidade dos crimes de natureza militar, também estaria a permitir a infiltração de militares, uma vez que nessa situação estariam imbuídos nas funções de polícia judiciária.

3.3 Agente Infiltrado (AI) e Agente Provocador

Em face das conseqüências distintas da atuação do agente em uma investigação, deve-se diferenciar a figura do agente infiltrado do agente provocador.

Aduz Molina Pérez (2000) que nos casos de infiltração policial, o "delito se inicia e nasce livremente da vontade e da inteligência do autor e se desenvolve nesse propósito até que a intervenção policial se cruza, razão pela qual os atos anteriores do autor são aptos a produzir efeitos penais".

Em outro norte opera o agente provocador. Este atua de forma ativa, estimulando, induzindo a prática de crime. Diferentemente do AI, que atua conforme os desígnios do grupo do qual passou a fazer parte, o agente provocador faz nascer a idéia da atividade criminosa.

Para Edwards (1996, p. 57), enquanto o agente provocador instiga ao cometimento de um crime, o AI se torna membro de uma organização para obtenção de informações, não incitando os demais membros a cometerem qualquer delito.

Nesse contexto, Montón Garcia (apud BONFIM, 2004) ensina que o agente provocador envolve o futuro autor em um cenário previamente montado para que este venha a cometer um crime, enquanto o AI atua quando a atividade criminosa já está em curso com o fito de se buscar informações para posterior repressão.

Para Capez (2002, p. 227-228), o cenário preparado pelo agente provocador conduz inevitavelmente a uma encenação, sendo esta uma terceira modalidade de crime impossível pela ineficácia absoluta do meio empregado. O suposto autor é o "protagonista de uma farsa", operando "dentro de uma ilusão", inexistindo, portanto, o elemento subjetivo do crime.

A diferenciação das figuras ganha maior importância quando o policial que logrou êxito na infiltração passa a induzir os membros do grupo no qual se vê integrado à prática de crimes, ocasião em que será considerado um agente provocador.

Para Jesus e Bechara (2005), quando o AI passa a provocar a ação ou omissão das pessoas que fazem parte de uma organização criminosa, "interferindo diretamente no ânimo decisivo delas, a hipótese, nesse caso, seria de flagrante preparado ou delito provocado". Assim, não há que se falar em AI e sim em agente provocador, o qual responde penalmente pelo abuso cometido.

De outro lado, prosseguem os autores, quando o policial ingressa numa organização criminosa que já praticava crimes, "sua intervenção não significa a criação indutora da vontade do sujeito provocado, que já preexistia, de sorte que a atuação do agente visa simplesmente facilitar o cometimento do delito, não induzir a sua prática". Nesse caso, apenas os membros do grupo criminoso que participaram da ação delitiva seriam responsabilizados pelo crime cometido.

Segundo Bonfim (2004), embora distintos tais conceitos, ocorrendo a confusão entre as figuras do agente provocador e do infiltrado, ambos são considerados agentes provocadores, "dando causa à impunidade do fato".

Dessa forma, a atuação "passiva" do agente infiltrado, de se conduzir como criminoso fosse (desde que autorizado pelo juiz), encontra-se amparada pelo ordenamento jurídico pátrio. Em outro viés, as condutas perpetradas pelo agente provocador, de induzir, de instigar, não encontram abrigo legal, sendo veementemente repudiadas pela doutrina e jurisprudência, uma vez que estão inseridas em um contexto de crime impossível (delito putativo por obra do agente provocador, delito de ensaio ou experiência). Ademais, conforme já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, "não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação".

3.4 Estudo de caso

Um caso clássico, descrito no site do FBI (FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION HOMEPAGE, 2008), que ilustra a profundidade de uma missão de infiltração, a penetração oculta e dissimulada em uma organização criminosa, o aparato necessário para o suporte do AI e seus familiares, a necessidade de se tornar um membro da organização, de participar de suas atividades ilícitas como se criminoso fosse para compreendê-la e melhor combatê-la, e o resultado expressivo da repressão e a desarticulação do grupo alvo (em comparação às demais técnicas de investigação), ocorreu em uma operação encoberta desencadeada em meados da década de 70 nos Estados Unidos da América.

Em anos anteriores, o FBI obteve alguns êxitos na busca e coleta de informações sobre a máfia, mas, em grande maioria, as mesmas mostravam superficiais, periféricas. O "núcleo duro" (os líderes) das organizações parecia intocável em razão do código de silêncio da Máfia. Assim, o FBI decidiu experimentar uma operação encoberta de longo prazo, uma das primeiras do gênero, optando por colocar um agente para atuar na cidade de Nova Iorque na tentativa de ingressar em alguma das principais famílias que lá operavam (Bonanno, Gambino, Colombo, Genovês, e Lucchese).

Em 1976, o Agente do FBI, Joe Pistone, surgiu em "Little Italy" como um estranho, um pequeno ladrão de jóias. Lentamente, Joe, utilizando o nome falso de Donnie Brasco, aproximou-se de alguns mafiosos, passando a ganhar a confiança dos mesmos. Pouco tempo depois, tornava-se parte de uma organização mafiosa, atuando juntamente com seus parceiros de crime. A missão durou longos 6 (seis) anos. Para sua segurança e de seus familiares, Joe deixou de fazer contato com os mesmos por longos períodos, restringindo-se a encontros raros, esporádicos.

Antes de iniciar a Operação, Pistone tinha que pensar, falar e agir como um criminoso no ramo de jóias (passou duas semanas inteiras, por exemplo, estudando o setor joalheiro). Também no intuito de facilitar sua penetração na organização, estudou as regras do jogo da Máfia. Passou a treinar histórias que convencessem os investigados; várias mentiras sobre seu passado. O menor erro ou acidente poderia custar sua vida. A missão era tão secreta que pouquíssimas pessoas do FBI a conheciam.

Em 26 de julho de 1981, ao final da "Operação Donnie-Brasco", o FBI conheceu especificamente o funcionamento interno da família Bonanno e, em geral, de algumas das outras famílias, não só suas atividades em Nova Iorque, mas, também na Flórida, Michigan, e em outros países. Ademais, a operação resultou na condenação de mais de 100 (cem) pessoas por crimes federais.

Em outro giro, Pacheco (2007, p.145) narra com entusiasmo um caso de infiltração policial, ocorrida no âmbito de uma organização criminosa sediada no Rio Grande do Sul.

Em apertada síntese, por meio de uma empresa fictícia de consultoria, o policial (autorizado judicialmente), utilizando-se de documentos falsos, "trabalhou" em uma empresa, possibilitando o acompanhamento o cotidiano da organização alvo. Uma vez dentro da empresa, passou a identificar e ter encontros com membros do grupo criminoso. Ademais, face sua posição privilegiada, lançou mão de uma série de outras técnicas, como captação ambiental e interceptação telefônica (tudo devidamente autorizado pela autoridade judiciária).

Relembrando a conceituação vista alhures, a infiltração policial trata-se da técnica operacional de investigação que consiste em introduzir um policial em meio às atividades ilícitas de determinado grupo criminoso, dele se tornando parte (leia-se, participando efetivamente das atividades ilícitas), com o fim de desarticulá-lo. De outro lado, quando se esta apenas a interagir (sem o efetivo ingresso; sem tornar-se parte), estamos em sede de "estória-cobertura" (lembremos da compra de entorpecentes).

Há que se observar que o "ingresso" não se refere ao aspecto físico da organização. Em que pese os riscos, a entrada e permanência física na empresa alvo, sem se tornar membro efetivo no que diz respeito ao aspecto ilícito, não têm o condão de guindar a "estória-cobertura" à condição de infiltração.

No primeiro caso, ao longo da Operação Donnie Brasco, o policial suplanta a interação e se torna membro da organização criminosa. Passa então a ter objetivos comuns e a dividir alegrias e frustrações com seus parceiros de crime. No caso, o AI está "remando junto", do mesmo lado e no mesmo sentido de seus comparsas de crime.

Já no segundo caso (a alardeada infiltração ocorrida no Rio Grande do Sul), em que pese o risco assumido pelo policial ao longo da missão (seis meses), bem como de utilização de documentos falsos e empresa fictícia, a operação fundou-se em uma excelente "estória-cobertura" (profunda), porém sem avançar para técnica de infiltração (houve contato, porém não houve ingresso (mundo das idéias) na organização criminosa).

Não se pode perder de vista que, ainda que o policial venha a fazer parte da "parte lícita" (de fachada, visível) da organização, não há como considerar tecnicamente que houve infiltração, pois esta somente se dá quando (foi concebida para) o ingresso ocorre na "parte suja" (oculta, vil) da organização.

Assim, se o policial vem a ser contratado para vender roupas de grife em uma importante empresa, que também comete crimes contra ordem tributária e financeira, não há infiltração, há "estória-cobertura".

Em outro plano, se o policial passa a participar com outros integrantes da organização do estratagema de compra de peças de roupa sem o devido recolhimento de imposto, ou ainda, da ocultação da vantagem indevida ou da emissão desta para o exterior sem o lastro legal, há infiltração policial.

Ante a necessidade de penetração em um grupo de criminosos e a efetiva participação do policial em atividades ilícitas, a infiltração policial não se confunde com a técnica de "estória-cobertura". Apesar de se valer também da dissimulação para obtenção de dados não revelados pelos investigados, esta última não introduz o policial no grupo alvo, dispensando inclusive a autorização judicial.

Vê-se, pois que diante do cenário descrito por Pacheco é distante daquele narrado pelo FBI. Diferentemente do ocorrido na Operação Donnie Brasco, no segundo caso, apesar de ocorrer a dissimulação e o contato com membros da organização (encontros, identificação visual dos envolvidos), o policial não se integrou à mesma, não se tornou parte, não participou das atividades ilícitas do grupo, das conversas, dos problemas ou das decisões que envolvessem o lado oculto (ilícito) da "empresa" para melhor combatê-la.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Mariath

Agente de Polícia Federal. Professor de Investigação Criminal da Academia Nacional de Polícia. Especialista em Ciências Penais - Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. Especialista em Execução de Políticas de Segurança Pública - Academia Nacional de Polícia - ANP. Especialista em Ciência Policial e Investigação Criminal - Escola Superior de Polícia - ESP/DPF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARIATH, Carlos Roberto. Infiltração policial no Brasil: um jogo ainda sem regras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2251, 30 ago. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13413. Acesso em: 28 dez. 2024.

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