5 PROPOSTAS LEGISLATIVAS
Inspirado na legislação estrangeira, o Congresso Nacional busca minimizar o vácuo deixado por normas relativas à matéria de combate ao crime organizado.
Apesar dos avanços, verifica-se que as propostas apresentadas não caminham em compasso com os anseios da sociedade, tampouco dos policiais. Aquela que ousou a disciplinar a infiltração olvidou-se de sua fase posterior, fase de oitivas em juízo e de retorno do policial à sua rotina de trabalho ou de dispensa do serviço (aposentadoria especial).
Desde 2006 tramita no Senado Federal um projeto de lei da lavra da Senadora da República Serys Slhessarenko (PLS nº 150/06).
De um lado, o projeto propõe a tipificação do que seria crime organizado, de outro, não hesita em suprimir a infiltração policial, por entender que a medida viola o patamar ético-legal do Estado Democrático de Direito.
Porém, em face da necessária reformulação da legislação vigente, posto ser "pífia" e "ridícula" (TORRES, 2007), e de manifestações pela manutenção da medida, o projeto de lei em tela manteve a frágil redação da atual legislação em relação à infiltração.
Em outro giro, outro projeto de lei (PLS nº 082/2007), proposto pelo Senador da República Magno Malta, sugere a criação de uma nova sistematização para o enfrentamento do crime organizado, dotando o Estado de instrumentos mais eficientes na busca e coleta de prova, bem como de sua (re)produção em juízo.
De forma inequívoca, o projeto em tela enfrenta o tema "infiltração policial".
Inicialmente, em compasso com o entendimento da doutrina, o projeto afasta o agente de inteligência da infiltração policial.
Em outro momento, nos moldes das legislações estrangeiras, mormente a espanhola (inspiradoras do autor do projeto), a proposta aborda pontualmente a autorização judicial e manifestação do Ministério Público (art. 13, caput); a indispensabilidade da medida (art. 13, § 1º); o tempo de duração, bem como de suas renovações (art. 13, § 2º); o relatório a ser elaborado pelo infiltrado (art. 13, § 3º e § 4º); a necessidade e alcance (art. 14); o sigilo (art. 15); a proporcionalidade das ações do AI (art. 16); a voluntariedade (art. 17, I); o uso identidade alterada (art. 17, II); a preservação da identidade (art. 17, III e IV); e o crime de quebra de sigilo (art. 18).
Como visto, trata-se de inegável avanço. Questões fulcrais que permeavam o tema, mas que eram relegadas, passaram a ser contempladas na proposta.
O período da medida, o uso de documentos falsos e a voluntariedade do policial passam a ter contornos definitivos.
Nos moldes da Lei 9.296/96, a infiltração, na medida em que invade a intimidade dos membros de grupos investigados, está prevista como técnica indispensável e necessária para coleta de provas quando já tiverem sido superados todos os meios convencionais. Em suma, após o esgotamento dos meios operacionais disponíveis, o Estado está apto a lançar mão da infiltração como medida extrema e derradeira.
De toda sorte, o projeto merece ajustes. Outros temas de igual importância não foram abordados.
A proposta não tratou de pontos que envolvem o policial após a infiltração. Ao que parece, não ficou clara em que circunstância e condições serão realizadas a oitiva (em juízo) do AI após o desbaratamento do grupo alvo (com a revelação da identidade real ou a manutenção da identidade fictícia?).
Por fim, não arrisca uma linha sequer sobre a proteção do policial e sua família após a operação, tampouco prevê a possibilidade de uma aposentadoria especial ou mesmo de utilização de outras identidades com o fim da missão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a crescente expansão da criminalidade organizada, o desenfreado aumento em seu poderio econômico, e de seu poder de corromper e intimidar pessoas (de criar e de determinar verdadeira "lei do silêncio"), a sociedade clama por soluções.
Diante dessa nova criminalidade, apenas as operações encobertas serão capazes de garantir o sucesso da repressão. O grau de complexidade se dá em face da sensibilidade dos membros do grupo investigado (agentes públicos e políticos), do histórico de violência da organização, do grau de envolvimento (proximidade) que o policial terá com os investigados, enfim, das circunstâncias que colocarem o policial, o órgão ou a investigação diante de risco maior.
O poder de intimidação e o uso da violência (característicos desses grupos) impõem que essas operações sejam desempenhadas por pessoas altamente qualificadas, capazes de estar dissimuladamente em contato direto com os criminosos, de expor as atividades criminosas, bem como de ratificar, em juízo, as provas colhidas ao longo da investigação.
Nesse contexto, a infiltração policial trata-se de instrumento efetivo na obtenção de informações acerca da organização criminosa (membros, estrutura, modus operandi, e vínculos (ramificações)), dos locais onde se desenvolve o ilícito, enfim, de todas aquelas que permitirão a exposição das condutas típicas latentes.
Para tanto, o policial, a ser infiltrado, deve ser cuidadosamente selecionado e devidamente treinado no uso de diversa técnicas operacionais, sendo capaz de atuar com limitada assistência do órgão policial e de seus colegas, e, portanto, deve ser maduro em suas decisões e extremamente qualificado, estando apto a lidar com o estresse e exigências colocadas sobre ele.
A escolha equivocada de um policial pode levar a péssimos resultados na investigação, e, finalmente, à diminuição da credibilidade do órgão policial.
Com efeito, a infiltração de policiais não se trata de uma modalidade investigativa rotineira a ser aplicada em qualquer caso ou qualquer situação. Ao contrário, deve ser encarada como uma ferramenta de investigação excepcional, derradeira e definitiva, e de imensurável valor probatório.
Ocorre, porém, que, apesar de seu enorme potencial para a produção de provas contra a criminalidade organizada, a infiltração policial não teve a atenção merecida do legislador pátrio.
Embora seja uma possibilidade real de repressão qualificada por parte do Estado (Polícia e Ministério Público), com a obtenção de provas que dificilmente seriam obtidas de outra forma (medidas convencionais), a infiltração policial no Brasil se encontra fulcrada em uma legislação frágil, elaborada sob a legislação do pânico (sem os cuidados devidos).
A Lei 10.217/2001, que deu azo à infiltração policial em nosso ordenamento jurídico, olvidou-se de defini-la, conceituá-la, bem como não elencou procedimentos mínimos que norteassem as ações dos atores envolvidos, seja antes, durante ou após a medida. Ademais, deixou a cargo do juiz, caso a caso (em momento concomitante ou posterior ao fato), superar tais lacunas, em verdadeiro retorno ao sistema inquisitorial.
Nesse passo, as celeumas jurídicas e éticas que orbitam o tema estão a gerar uma insegurança jurídica imensurável. A nosso ver, a discussão não deve se limitar à busca pela mínima invasão na intimidade dos investigados. Devemos necessariamente nos voltar para as angústias do AI e para todas as conseqüências e riscos que infiltração naturalmente carreia.
Cabe não olvidar que o policial destinado à implementação dessa técnica operacional expõe sua vida diuturnamente a risco incalculável, vez que passa a conviver em meio à criminalidade, a fazer parte de um grupo criminoso, portando-se como membro efetivo deste (inclusive cometendo crimes).
Para tanto, medidas que visem à segurança do policial merecem especial atenção. Nova identidade, proteção para família, liberdade para não participar da operação de infiltração, procedimentos inovadores no momento de testemunhar em juízo, regras para o momento posterior da operação policial, prazo de duração da medida, regras em caso de cometimento de crimes, são questões que carecem de amparo legal.
Vê-se, pois, que a infiltração policial exige um mínimo aparato material, iniciando pela criação de divisões especializadas e capacitação de policiais nessa moderna técnica de investigação. A falta de profissionalismo e de uma estrutura de apoio ao policial (antes, durante e após a infiltração) traduz-se em um cenário perfeito para possíveis abusos, precariedade das provas produzidas e abandono do policial pelo Estado.
Essa importante medida de controle da criminalidade, capaz de desmantelar grupos criminosos destinados a dilapidar diuturnamente os cofres públicos, não pode ser tratada com desdém. Urge que venham à luz novas regras que permitam sua utilização em toda sua magnitude.
A mera aclamação pela razoabilidade ou proporcionalidade, na medida em que o interesse social prepondera, esvaziasse diante das lacunas (insuperáveis) geradas por uma norma débil, incapaz de prever procedimentos para implementação da medida. Uma norma que não estabelece previamente as "regras do jogo", olvidando-se do policial, e que permite a ingerência total do magistrado na disciplina de um instrumento invasivo não merece prosperar.
Assim, diante da criminalidade crescente (moderna e complexa), dos princípios constitucionais que estão a colidir, e do manifesto desamparo ao policial, cabe ao Congresso Nacional, com a serenidade devida, elaborar, em um ambiente harmônico, normas capazes de sepultar aquelas que insistem em desequilibrar o ordenamento jurídico vigente.
Não se pode olvidar que apenas a transparência e a exatidão das normas terão o condão de legitimar as ações do Estado, seja em relação ao investigado, seja em relação ao policial.
Portanto, a discussão em torno da infiltração policial no Brasil não pode se restringir à defesa dos direitos dos investigados. Para que sua implementação seja possível, real e legítima, há que se iluminar com força solar os direitos e garantias fundamentais dos abnegados policiais, os quais deverão contar com um mínimo respaldo jurídico e material para cumprirem suas missões, independentemente dos mais diversos entendimentos que habitam a (in)consciência dos magistrados, na certeza que o esforço e risco assumidos não serão em vão. Afinal, o jogo tem que ser jogado!
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