7. ESTUPRO COMUM CONTINUA CLASSIFICADO COMO CRIME HEDIONDO
Antes da aprovação da Lei 12.015/09, houve muita discussão na doutrina, com autores entendendo que somente as formas qualificadas do estupro e do então atentado violento ao pudor é que poderiam ser considerados como crimes hediondos. Assim, estariam foram dessa classificação as formas básicas destes crimes contra os costumes.
Embora sua redação não fosse gramaticalmente perfeita, sempre entendemos que o sentido do direito contido nos incisos V e VI, art. 1º, da LCH, está a indicar que, tanto as formas básicas quanto as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, integravam o rol dos crimes hediondos. Se a intenção do legislador fosse a de excluir a forma simples da relação dos crimes hediondos, teria se reportado unicamente à forma qualificada, referindo-se ao estupro e ao atentado violento ao pudor praticados com lesão corporal grave ou morte da vítima e, em seguida, indicado os respetivos dispositivos do CP, como o fez em todo o texto do art. 1º da LCH.
A jurisprudência dos tribunais superiores, após um período de decisões divergentes, firmou a orientação de que o estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma simples ou qualificada, devem ser considerados crimes hediondos e, portanto, sujeitos ao regime jurídico de maior rigor estabelecido na LCH. Para o STF: "o crime de atentado violento ao pudor, tanto na sua forma simples, CP, art. 214, quanto na qualificada, CP, art. 223, caput e parágrafo único, é hediondo, ex vi do disposto na Lei 8.072/90" ( 15 ); ou ainda: os "crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram modalidade de crime hediondo".( 16 )
Diante disso, entendemos que a Lei 12.015/09 veio apenas clarear possível dúvida que ainda pairasse sobre esta questão. Como vimos mais acima, aboliu o crime de atentado violento ao pudor, cuja conduta passou a integrar uma das formas de realização objetiva do estupro. Quanto a este, a referida lei deu nova redação ao inciso V, do art. 1º da LCH, para reiterar – agora de forma mais clara e taxativa – que o crime de "estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o)" é crime hediondo.
Verifica-se que o que já era assim entendido, ficou mais evidente, expresso e indiscutível. A partir da Lei 12.015/09, o estupro comum tanto na sua forma simples (art. 213, caput), quanto nas suas formas qualificadas pelo resultado lesão corporal grave e pela condição de a vítima ser maior de 14 ou menor de 18 anos (§ 1º) ou, ainda, pela morte da vítima (§ 2º), continuam legalmente considerados crime hediondo. O mesmo vale para o novo crime de estupro contra pessoa vulnerável, que será objeto de estudo num próximo artigo.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei 12.015/07 procedeu a uma série de alterações no texto do Título VI, do Código Penal. O Título em referência - aprovado em sua versão original com a rubrica de "Crimes contra os Costumes" - passou a ser denominado de "Crimes contra a Dignidade Sexual", agora com linguagem mais moderna e consentânea com a atual teoria dos bens jurídicos.
A redação dada ao art. 213, do CP, pela Lei 12.015/09, manteve a descrição da conduta anterior catalogada como estupro, mas acrescentou-lhe a descrição antes usada para tipificar o crime de atentado violento ao pudor, que com isso perdeu sua autonomia tipológica.
Ao promover a fusão tipológica do atentado violento ao pudor com o crime de estupro, o legislador preferiu o caminho de uma incriminação unificada das condutas praticadas com violência ou grave ameaça contra a liberdade sexual.
A norma contida no art. 214, do CP e que incriminava o atentado violento ao pudor como tipo penal autônomo, foi revogada pela Lei 12.015/09. Os atos libidinosos configuradores da infração penal agora extinta foram deslocados e incorporados ao texto do art. 213, caput e de seus dois parágrafos do CP, para formar um conceito legal ampliado do crime de estupro.
O novo tipo penal deve ser classificado como estupro comum, para distingui-lo da nova figura do estupro de pessoa vulnerável, devendo este ser visto como um tipo penal especial de estupro. Há duas modalidades de estupro comum: a forma simples ou básica, as formas qualificadas pelo resultado prescritas nos parágrafos 1º e 2º, do art. 213, do CP.
O estupro, a exemplo das demais infrações sexuais, é conduta ilícita que visa garantir a integridade e a liberdade sexual. O objeto jurídico desta infração penal é, portanto, a dignidade sexual.
No caso de estupro mediante conjunção carnal, sujeito passivo poderá ser qualquer mulher, pois a proteção penal não pode se restringir ao ultrapassado conceito de mulher honesta e recatada. Da mesma forma, a igualdade políticojurídica entre marido e mulher não admite mais que o marido possa exercer seu direito de se relacionar sexualmente com sua esposa, mediante violência ou grave ameaça.
A Lei 12.015/05 acrescentou mais uma qualificadora ao crime de estupro (art. 213, § 1°), que terá incidência quando "a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (quatorze) anos". Esse reforço punitivo, em face da ação estupradora contra menores de 18 anos, tem como fundamento políticojurídico o princípio constitucional da proteção integral da adolescência.
Na hipótese de estupro cometido por meio de duas ou mais ações estupradoras – coito vaginal, anal e/ou oral etc. – e desde que as circunstâncias de tempo, lugar e modo de execução forem convergentes, deverá prevalecer a tese da continuidade delitiva, pois não se pode falar mais de infrações de espécies diferentes.
Finalmente, cabe dizer que a Lei 12.015/09 aclarou possível dúvida que ainda pairasse sobre a classificação do estupro como crime hediondo. A referida lei deu nova redação ao inciso V, do art. 1º da LCH, para reiterar – agora de forma mais clara e taxativa – que o crime de "estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o)" é crime hediondo.
9. Bibliografia
( 1 ) Com esta descrição típica unificada, nosso direito positivo aproximou-se da linguagem penal praticada em outros países, onde prevalece a incriminação com a denominação comum de "violação" ou outra equivalente a esta. Sem pretensões de proceder a um estudo de direito comparado, podemos dizer que em alguns países prevalece a opção por uma incriminação unificada do tipo penal sob exame e por um nomen juris comum de "violação" ou termo semelhante. A este respeito, vale citar os códigos penais dos seguintes países: Portugal: No art. 164, sob a denominação de "Violação", o tipo está assim definido: "Quem, por meio de violência ou ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constrange outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, é punido de" (...); França: Com o nome jurídico de "Viol", o art. 222-23 está assim redigido: "Tout acte de pénétration sexuelle, de quelque nature" (...); Espanha : No Capítulo denominado "De las agressiones sexuales", o art. 178 assim descreve o crime de estupro: El que atentare contra la libertad sexual de otra persona, con violencia o intimidación" (…); Argentina: "acceso carnal por cualquier via", desde que praticado com violência, grave ameaça ou contra pessoa vulnerável (no art. 119) ; Chile : "Comete violación el que accede carnalmente, por via vaginal, anal o bucal, a una persona mayor de catorce años" (art. 361). ; Colômbia: "El que realice acceso carnal con otra persona mediante violencia, incorrirá en la pena de prisión de ocho (8) a quince (15) años" (art. 205).
( 2 ) No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o verbo "constranger" tem, entre outros, o seguinte sentido semântico: "obrigar (alguém), geralmente com ameaças, a fazer o que não quer; forçar, coagir, compelir". Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
( 3 ) É o que nos ensina o mestre Aurélio Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986, p. 461.
( 4 ) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 8. Rio de Janeiro: Forense: 1959, p. 116.
( 5 ) Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, cit., p. 1.028.
( 6 ) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 8, ob. cit., p. 132.
( 7 ) Idem, p. 135.
( 8 ) MAGALHÃES NORONHA, Edgard. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1982, v. 3, p. 126.
( 9 ) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, ob. cit., v. 5, p. 135. A jurisprudência adotou posição idêntica. O TJRJ estabeleceu que o beijo erótico e lascivo constitui atentado violento ao pudor (RT 534/404). Na mesma linha de pensamento, encontra-se o Tribunal de Justiça de São Paulo que admitiu ter cometido atentado violento ao pudor [agora, seria o caso de estupro] aquele que, "para desafogo de sua confessada concupiscência, constrange a vítima, mediante violência física, a suportar lascivo contato corpóreo, consistente em abraços e beijos" (RT 567/293).
( 10 ) Neste sentido: RT 439/341; 488/336 e 533/326.
( 11 ) Cabe observar que o art. 227, caput da CFRB determina que "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade," todos os direitos fundamentais e "de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Por sua vez, o § 4º prescreve que "a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente".
( 12 ) Na doutrina, ver: DELMANTO, Celso e outros. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, 56; MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2004, p. 217; JESUS, Damásio. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 445. Na jurisprudência, ver: TJSP: RT 788/593. STJ: RT 782/551.
( 13 ) HC 95629 / SP - Relator(a): Min. CARLOS BRITTO. Julgamento: 16/12/2008. DJe-048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009. EMENT VOL-02352-03 PP-00513. Ver, também, STF: HC 95705 / RS - Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA. Julgamento: 31/03/2009. DJe-075. DIVULG 23-04-2009. PUBLIC 24-04-2009. EMENT VOL-02357-03, PP-00522; HC 96471/RS - Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 10/03/2009. DJe-064 DIVULG 02-04-2009 PUBLIC 03-04-2009. EMENT VOL-02355-04, PP-00729, e HC 91370 / SP - Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 20/05/2008. DJe-112 DIVULG 19-06-2008 PUBLIC 20-06-2008. EMENT VOL-02324-03, PP-00586.
( 14 ) HC 93933 / SP - 2007/0260509-4. Relator(a) Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA. (1128). Julgamento 11/11/2008. DJe 01/12/2008.
( 15 ) HC 81.411-SC, 2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso.
( 16 ) HC 81.317-SC, 2ª Turma, rel. min. Celso Mello. HC 81.288-SC. Julgamento em de 18.12.2001. Decisão do Pleno firmou o entendimento de que o estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma simples ou básica, quanto na forma qualificada, são crimes hediondos". HC 81.288-SC. Julgamento em de 18.12.2001. Decisões mais recentes, acabaram por confirmar esta tendência: "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que ‘os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, tanto nas suas formas simples Código Penal, arts. 213 e 214 como nas qualificadas (Código Penal, art. 223, caput e parágrafo único), são crimes hediondos". HC 93794 / RS - Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI. Julgamento: 16/09/2008. DJe-202 DIVULG 23-10-2008 PUBLIC 24-10-2008. EMENT VOL-02338-03 PP-00464. Seguem esta orientação: HC 92997 / SP - Relator(a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 24/06/2008. DJe-162 DIVULG 28-08-2008 PUBLIC 29-08-2008. EMENT VOL-02330-03 PP-00523. HC 89554 / DF - Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 06/02/2007. DJ 02-03-2007 PP-00046 EMENT VOL-02266-04 PP-00673; HC 88245 / SC - Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO. Relator(a) p/ Acórdão: Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 16/11/2006. DJ 20-04-2007 PP-00087 EMENT VOL-02272-02 PP-00229.