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Implicações jurídicas em "Watchmen"

10/09/2009 às 00:00
Leia nesta página:

1.A história e o que ela significa

É difícil encontrar alguém que nunca tenha ouvido falar de Watchmen, de Alan Moore, Dave Gibbons e John Higgins, a premiada graphic novel lançada em 1986 pela DC Comics. Todo fã de quadrinhos conhece. Considerada a obra máxima do gênero, Watchmen foi a única história em quadrinhos a figurar na lista da revista Time como uma das 100 melhores obras em língua inglesa do século XX. Ao utilizar a metalinguagem como recurso e conceitos como política mundial, teoria da relatividade, sistemas caóticos, física e viagens temporais, Alan Moore modificou o mercado de quadrinhos, provando que uma história de super-heróis pode, sim, ser adulta, transpondo o preconceito contra esse gênero. Watchmen permanece até hoje como sendo a única história em quadrinhos a vencer o prêmio Hugo de ficção científica. Em 2009, a história foi adaptada para os cinemas pelo diretor Zack Snyder e ganhou a atenção da mídia ao arrebatar milhões de espectadores em todo o mundo. (Em setembro, o filme está disponível nas locadoras e os debates acirrados acerca de Watchmen e suas implicações em diversas áreas do conhecimento humano devem recomeçar.)

Em Watchmen, os super-heróis existem e se tornaram parte do cotidiano da nação desde o final da década de 30. Mas ocorre que esses "heróis" não se mostram inteiramente confiáveis da população, agindo com motivações questionáveis e buscando objetivos às vezes nada inspiradores. Em razão disso, o governo proíbe a atuação dos vigilantes já no ano de 1977 com a chamada "Lei Keene", promulgada com o apoio das forças policiais após uma longa greve da categoria. Com a edição desta lei, só os super-heróis registrados e atuando em prol do Governo Norte-Americano é que podem agir sob a supervisão dos órgãos estatais. Em virtude disso, muitos heróis decidem se "aposentar" e abandonam suas atividades de vigilantes uniformizados, à exceção do renegado Rorschach e de poucos outros que concordam com os termos do alistamento. E quando o ex-combatente do crime Comediante é assassinado em sua residência, o paranóico Rorschach começa a investigar o que pode ser uma operação secreta para eliminar os heróis mascarados. Sua investigação logo o leva a antigos companheiros, pessoas que vivem vidas amarguradas e que podem ser tanto o culpado quanto potenciais alvos futuros do assassino. Conforme a história evolui novas revelações do passado são feitas e tudo leva a uma conspiração de abrangência global nunca antes imaginada.

A história se passa em 1985 e apresenta uma realidade "alternativa", onde o destino da humanidade foi alterado pela simples presença dos vigilantes uniformizados na sociedade (teoria do caos). Nesse mundo único, tão real ao mesmo tempo que diferente, os americanos ganharam facilmente a Guerra do Vietnã, Richard Nixon foi reeleito sucessivas vezes para a Presidência dos EUA e o clima da Guerra Fria paira no ar o tempo inteiro. O roteiro destaca a maneira como o Governo Norte-Americano usa e manipula os super-seres registrados para implementar sua política externa a qualquer custo. O próprio Comediante durante muitos anos executou "serviços" a mando do Governo em tempos de guerra e paz, em território estrangeiro e mesmo em solo americano. A cena inicial com Kennedy é emblemática.

E apesar da história se passar num passado recente e "imaginário", a trama mostrada em Watchmen permanece atual e relevante aos dias de hoje passando por discussões complexas como as liberdades públicas e a interferência estatal indevida na vida privada das pessoas, com várias implicações jurídicas advindas daí.


2.As implicações jurídicas em Watchmen

2.1. A lei de registro super-humano e os direitos fundamentais

Em que pese a questão da lei de registro super-humano também ter sido o tema central de outra história em quadrinhos lançada vários anos depois - Guerra Civil, publicada em 2006 pela Marvel Comics - foi em Watchmen que o assunto foi abordado pela primeira vez. É preciso destacar que essa questão é relevante do ponto de vista jurídico ao tratarmos do tema da intervenção do Estado na vida privada das pessoas em nome do interesse público. Aliás, esse assunto reiteradamente é abordado pelos roteiristas no fictício universo dos super-heróis e por isso existe até uma wikipage dedicada só para os mais conhecidos registrations acts dos quadrinhos: http://en.wikipedia.org/wiki/Registration_Acts_(comics)

Dada a relevância do assunto e suas implicações jurídicas com o tema abordado, é necessário tratar inicialmente dos direitos fundamentais. Dessa forma, é possível defini-los como sendo "o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana" (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada, 7a. ed., São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 94). Então, basicamente, os direitos fundamentais se constituem em garantias relacionadas à limitação de atuação do poder do Estado em função de valores como liberdade e igualdade e também de propiciar uma existência digna.

As origens históricas desses direitos nos remetem à forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a mensagem de dignidade de todos os homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo. Com o passar dos séculos, diversos documentos históricos podem ser referenciados como diplomas consagradores das liberdades civis: Magna Charta (1215), Habeas corpus amendment act (1679), Bill of Rights (1688), Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776), Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776), Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e assim por diante.

Modernamente, os direitos fundamentais ganharam consistência após o término da II Guerra Mundial (1939-1945) por conta da preocupação com os horrores do pós-Guerra. Em 10 de dezembro de 1948, a ONU aprovou em Resolução da III Sessão Ordinária da Assembléia-Geral das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos Humanos que arrola os direitos básicos e as liberdades fundamentais que pertencem a todos os seres humanos. Em outras palavras, o documento reconhece que os direitos do homem são válidos para todos os povos e em todos os tempos e decorrem da própria natureza humana.

O juiz federal e professor de Direito Constitucional George Marmelstein faz referência em seu blog Direitos Fundamentais às histórias em quadrinhos Watchmen e Guerra Civil ao tratar de temas como os limites da atuação estatal em ponderação com os direitos humanos. Confira o post completo e todos os comentários a respeito em: http://direitosfundamentais.net/2008/04/01/direitos-fundamentais-e-quadrinhos-sobre-a-guerra-civil-da-marvel/.

De acordo com os comentários postados no blog, há uma tendência inicial de se considerar a lei de registro super-humano como inconstitucional e violadora de direitos fundamentais. Isso ocorre porque, no imaginário popular, é difícil admitir que os "super-heróis" hajam de forma prejudicial à sociedade. No forte imaginário construído na nossa infância sempre acreditamos que o herói nunca agiria de maneira contrária à própria noção de Justiça. Entretanto, isso é que mais ocorre em Watchmen e e justamente por conta disso é que a questão muda de perspectiva.

Mas, por outro lado, a constitucionalidade da lei de registro pode ser plenamente justificada com base em outras premissas. "Afinal, em princípio, o censo é uma atividade milenar e ninguém questionou sua validade. Do mesmo modo, por força do Estatuto do Desarmamento, todos os que portam armas de fogo são obrigados a cadastrar as armas e a se registrarem perante o órgão competente", afirma George Marmelstein numa primeira análise dos fatos. Outro exemplo citado nos comentários do seu blog é de que os médicos e profissionais da saúde são obrigados, por razões de saúde pública, a informar sobre determinadas doenças aos órgãos públicos competentes. Ou, em outras palavras, há certas situações em que se justificaria a intervenção do Estado na vida privada das pessoas desde que razões como a segurança nacional ou o interesse coletivo se mostrem razoáveis e proporcionais aos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.

Sob outro aspecto, é preciso notar que toda lei presume-se constitucional até que haja decisão judicial em sentido contrário. De acordo com esse princípio, "só se declara a inconstitucionalidade de uma lei se ela for flagrante e incontestável; havendo dúvida ou a possibilidade de lhe ser dado uma interpretação compatível com a Constituição, deve o órgão competente manter o preceito em vigor e dar-lhe a devida aplicação" (trecho extraído da decisão judicial proferida nos autos do Mandado de Segurança n.º 1997.004.00397 - TJRJ). Dessa forma, a observância das leis é obrigatória até que seja declarada formalmente sua inconstitucionalidade, afinal, o princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. Por isso, é evidente que não se confere a quem quer que seja o poder de discutir a constitucionalidade da lei com base em opiniões ou meras conjecturas pessoais.

Mas é interessante notar que, evidentemente, o desrespeito à lei impõe certas sanções. E a penalidade para quem deixa de se registrar junto ao governo fica bastante clara em Watchmen com o episódio da prisão do herói renegado Rorschach. É verdade que também haviam as acusações de homicídio, mas a prisão imposta é sumária e irrevogável. Talvez aí esteja o maior problema do ponto de vista jurídico da lei fictícia. Para que a lei passe pelo filtro de constitucionalidade, é necessário que sua existência se justifique do ponto de vista constitucional e que a penalidade imposta por seu descumprimento seja adequada e proporcional à gravidade do delito. Justamente por isso a lei deve respeitar os princípios do devido processo legal (art. 5.º, inc. LIV, da CF/88), do contraditório e da ampla defesa (inc. LV) e da presunção de inocência ou não-culpabilidade (inc. LVII).

Nesse aspecto, ressalta dizer que a Constituição Brasileira incorporou em seu texto norma de abrangência internacional constante no art. XI, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) que garante que "todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa".

A conjugação de tais princípios constitucionais assume significativa importância proibindo ao Estado a utilização de processos secretos e inquisitoriais, bem como a incomunicabilidade do preso e o interrogatório dele sob coação de qualquer natureza, entre outras medidas coercitivas na persecução penal. Nesse sentido, aliás, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que "o processo penal condenatório não é instrumento de arbítrio do Estado" (Habeas-Corpus nº 73.338/RJ – RTJ 161/264).

Portanto, sob esse aspecto, indubitavelmente a Lei "Keene" vista em Watchmen incorre em grave vício de inconstitucionalidade a julgar pelo que foi mostrado quando da captura do herói renegado Rorschach. O mesmo acontece com os heróis encarcerados sumariamente na prisão da chamada "Zona Negativa" na Guerra Civil da Marvel, já citada anteriormente. A propósito, em algumas histórias mais recentes publicadas pela Marvel Comics (Spider-Man: Brand New Day Extra #1, 2008) já é mencionado o fato de que a Lei de Registro Super-Humano estaria sendo questionada judicialmente por essa suposta causa de inconstitucionalidade.

2.2. O império de Ozymandias e a Propriedade Intelectual

Por outro lado, Watchmen mostra o império financeiro construído por Ozymandias, ex-herói fantasiado e considerado o homem mais inteligente do planeta. Ocorre que Adrian Veight, percebendo a iminente intervenção do Governo na questão super-humana, revelou sua identidade "secreta" ao mundo dois anos antes da Lei "Keene" ser aprovada e com isso pôde lucrar com a fama de seu alter ego. A empresa de Veight souberam aproveitar-se da fascinação da sociedade pelo mito dos super-heróis e foi recompensada financeiramente por causa de produtos baseados na "sensação" super-humana: dietas milagrosas, programas de treinamento, roupas tecnológicas, figuras de ação, livros e revistas etc.

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As implicações jurídicas dessa questão recaem sobre a seara do direito de propriedade intelectual. Trata-se de uma instituto dedicado a proteger as criações humanas, através da implementação do direito de apropriação do homem sobre suas obras e produções do intelecto, remetendo diretamente à noção civilística de direito de propriedade. Tem como principal objetivo garantir o direito do inventor de auferir, ao menos por um certo período de tempo, recompensa pela própria criação desenvolvida.

De acordo com a definição da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (1967), "constituem propriedade intelectual as invenções, obras literárias e artísticas, símbolos, nomes, imagens, desenhos e modelos utilizados pelo comércio". A propriedade intelectual pode ser compreendida em dois grandes ramos: direitos autorais e propriedade industrial. Sendo que esta última trata de assuntos ligados aos modelos de utilidade, às marcas de produto ou de serviço; de certificação e coletivas; da repressão à concorrência desleal e à espionagem industrial.

Essa noção de propriedade intelectual é importantíssima na economia globalizada de hoje e representa um novo ciclo de expansão do capitalismo moderno. Dessa forma, há profunda relação entre a proteção da propriedade intelectual, a globalização e o acirramento da competitividade industrial, com os Estados promovendo a edição de normas jurídicas que visam justamente coibir a concorrência desleal em prol de um harmônico desenvolvimento da economia mundial.

No caso de Watchmen, alguns avanços tecnológicos importantes como o uso de carros elétricos e não-poluentes, além de outras formas inovadoras de tecnologia já estão incorporadas ao cotidiano das pessoas. Tudo isso ocorre graças às pesquisas desenvolvidas pelas Indústrias Veight em conjunto com o fascinante Dr. Manhattan que, a propósito, é um personagem fundamental para a história. Aliás, em geral, a tecnologia vista no mundo dos quadrinhos é mais avançada do que no chamado "mundo real" justamente por conta da influência dos super-humanos na sociedade científica. E embora a história mostre claramente as inovações sendo usadas em prol da humanidade, também revela o antagonismo existencial humano com o desenvolvimento de novas tecnologias na área bélica.

2.3. Outras referências jurídicas a Watchmen

Finalmente, é inegável a importância que Watchmen assumiu nas mais diversas áreas da sociedade contemporânea, inclusive no meio jurídico. Um exemplo disso é o fato noticiado pelo Portal G1 (Globo.com) na data de 29 de agosto de 2008:

"A desembargadora federal Maria Helena Cisne, do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, usou a frase mais conhecida da HQ "Watchmen", de Alan Moore, como epígrafe do texto da decisão que culminou na prisão de 15 pessoas acusadas de envolvimento em crimes eleitorais no Rio. A frase Who watches the Watchmen (algo como "quem vigia os vigilantes") foi citada em inglês na abertura do documento, datado de 27/8/2008 e divulgado aos jornalistas nesta sexta-feira (28)".


3.Considerações finais

Uma das propostas de Watchmen é mostrar que super-heróis não são necessariamente sinônimo de fantasia, ingenuidade e integridade. A simples presença deles numa sociedade como a nossa acarretaria em sensíveis modificações culturais e comportamentais. As implicações dessa realidade fantástica também chegariam ao Direito acrescentando novos conceitos e interpretações nos mais diversos ramos jurídicos, especialmente no que tange aos direitos fundamentais.

Entretanto, talvez não seja necessário partir de um mundo imaginário para perceber que as liberdades públicas são reiteradamente interpretadas de acordo com o atual estágio da sociedade que vivemos. E no mundo de hoje, com a crescente escalada da criminalidade organizada e transnacional, de tragédias cotidianas e da ameaça iminente de terrorismo em alguns países essas questões estão sendo rediscutidas a todo instante.

Mas não é possível deixar se abalar pela ameaça do momento e ignorar séculos de avanço na questão dos direitos humanos e da intervenção mínima do Estado na vida privada das pessoas. É preciso manter a coerência e o respeito aos direitos fundamentais acima de tudo...


Para saber mais:

Watchmen - Edição Definitiva: Panini Books,460pgs., 2009.

Os Bastidores de Watchmen: Editora Aleph, 208pgs., 2008.

Watchmen – O Filme: DVD, Paramount Pictures, 162min, 2009.

Watchmen - Motion Comic: DVD, Warner Home Video, 327min, 2009.

Watchmen – Contos do Cargueiro Negro: DVD, Paramount, 63min, 2009.

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Sobre o autor
Átila Da Rold Roesler

Procurador federal da Advocacia-Geral da União, especialista em Direito Processual Civil, autor do livro Execução Civil - Aspectos Destacados (Editora Juruá, 2007), ex-Delegado de Polí­cia Civil do Estado do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROESLER, Átila Rold. Implicações jurídicas em "Watchmen". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2262, 10 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13478. Acesso em: 24 nov. 2024.

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