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A obra "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, e os princípios contratuais civis

13/09/2009 às 00:00

Resumo:


  • O romance "Grande Sertão: Veredas", de João Guimarães Rosa, explora a complexidade das relações humanas e a profundidade do inconsciente através da jornada do jagunço Riobaldo e seu amor por Diadorim.

  • A trama é marcada por pactos e contratos que vão desde a vingança pela morte de Joca Ramiro até o amor proibido e impossível entre Riobaldo e Diadorim, revelando uma mulher ao final da história.

  • O enredo se desenrola em um sertão mítico e perigoso, onde a ética dos jagunços, a lealdade e a busca por justiça se entrelaçam com a filosofia e a reflexão sobre a condição humana e a inevitabilidade da morte.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Grande Sertão: Veredas [01]. Veredas do inconsciente, veredas inconsúteis desbravando e enredando volitas, a vontade aprazível, conflituosa, altera pars brotada no chão fértil do humano intangível . Necessidade e interesse, pulsões autônomas rumo à alteridade. Livres. O anseio do encontro do qual germine o vínculo. Vontades que se enlaçam no mundo incorpóreo e que se traduzem em pacto [02][03] no mundo fenomenológico [04]. Consenso. Amor vem de amor [05] e só da fonte pactuada se quer beber, relativiza-se a avença [06].

Riobaldo e Diadorim. Dois jagunços que se encontram em um sertão que é neblina, que é tiro, sangue e vingança. Diadorim ferve por dentro em ódio paroxístico. Quer vingar a morte do pai, Joca Ramiro, morto com a carga de bala de três revólveres, com o dolus necandi de dois Judas nas costas, os jagunços Hermógenes e Ricardão – que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato [07]. Ao seu intento aderem outros bandos que acabam por se repartir. O pacto de cooperação [08], de vontades paralelas é feito com Riobaldo cujo objeto é uma obrigação de fazer: o aniquilamento do maldito que descerrou a dor absoluta [09]. Cumprido o ajuste por Riobaldo, de Diadorim haverá recompensa: Um segredo desvelado. Comutatividade:

(...) Diadorim se chegou, com uma avença. (...) Diadorim, todo formosura.

-"Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo..."- ele disse; e de medo não tremia, que era de amor – hoje sei.

-"...Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto...Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você... [10][11].

Enquanto isso, naturalmente, perto do rego – bicame de velha fazenda, onde o agrião dá flor [12], brota o sinalagma entre os dois jagunços, a doce reciprocidade de obrigações retroalimentada, o pacta sunt servanda [13], assim fraseada por Diadorim: "Menos vou, também, punindo por meu pai Joca Ramiro, que é meu dever, do que por rumo de servir você, Riobaldo, no querer e cumprir..." [14]. Riobaldo conta a sua história e o seu enlevo:

Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios. Com assim, a gente se diferenciava dos outros – porque jagunço não é muito de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e se desmisturam, de acaso, mas cada um é feito um por si [15].

Mas, deveras, sob as luas do sertão teria sido feito um outro pacto, um contrato de compra e venda, sinalagmático, comutativo, ameaça crespa para que o avençado entre Riobaldo e Diadorim não se cumprisse:

O Hermógenes tem pautas..."Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes –demônio.(...)O pacto! Se diz.(...)Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois.(...) Viver é muito perigoso [16].

Hermógenes teria vendido a sua alma ao "Coxo", ao "Cujo" e em troca lhe seria dada a imortalidade. Restaria, portanto, impossibilitado, o objeto do pactuado entre os dois amigos.

Não importa. Riobaldo cria na justeza do que fora convencionado com Diadorim. Apesar de ser um sonho seu de que um dia não se precisasse mais matar gente, era preciso eliminar os dois Judas, traiçoeiros e assassinos e todos os seus esforços seriam envidados para a consecução do pactuado. Lealdade e confiança. Riobaldo era movido pela boa-fé [17]: Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem [18].

Apesar de sua afirmação peremptória Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa [19], Riobaldo Tatarana confia firmemente em Reinaldo Diadorim, pois a ele escolheu para confiar, o elo entre ambos se dá sobre o tabuleiro intranspassável da confiança. Mesmo que envoltos no cerrado de um sertão traiçoeiro:

Umas duas ou três balas se cravaram na borraina da minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina do encheio. (...) E outra de fuzil, em ricochete decerto, esquentou minha coxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer – se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Tempos loucos...Burumbum! [20]

A affectio e a fidúcia sobre os quais se baseia o vínculo com Diadorim, dá-lhe sossego e dá-lhe amparo...Concebi que vinham, me matavam. Nem fazia mal, me importei não. (...) Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim [21].

Mas, mesmo entre vazios e emboscadas, o sertão não carece de ética, e só onde reside o ethos, poderá dar-se o contrato que repousará sobre os mores de um grupo social, grupo esse, que mesmo que de jagunços, constroem seus códigos e esperam que os pactos sejam respeitados e cumpridos: "Crime, que sei, é fazer traição, ser ladrão de cavalos ou de gado...não cumprir a palavra..." – "Sempre eu cumpro a palavra dada!" gritou de lá Zé Bebelo [22]. Segurança jurídica. O cumprimento dos ajustes assegura a todos de uma comunidade de que as regras são e serão observadas, confere previsibilidade às ações humanas inter-pessoais, quer escritas, quer faladas e dota de honra e prestígio social aqueles que se comportam a fim de satisfazerem fielmente o que contrataram [23]. Riobaldo alça o descumprimento da palavra empenhada à categoria de ilícito penal. No entanto, para Riobaldo, a natureza da gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis, em amizade de amor. O pacto, feito entre Riobaldo e Diadorim foi feito sobre uma condição de forte afeição e amizade entre eles. No entanto, imprevisivelmente, por uma vez, Diadorim foi lhe desinfluindo [24]. Nele, Riobaldo, não mais firmava o pensar. E sentia que traía o amigo, mas que, mudada a situação originária, o acordo entre os dois deveria ser revisto ou extinto de vez:

E eu não tardei no meu querer: lá eu não podia mais ficar. Donde eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de preço, me sujeitava àquilo? Eu ia-me embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando a minha vida, estragando minha mocidade. Sem rumo. Só Diadorim. Quem era assim para mim Diadorim? [25](...) e risquei de mim Diadorim [26].

A força obrigatória dos pactos pode esmaecer ao esbarrar no imprevisível, mas não no imprevisível que é o da vida, e deixar de amar alguém, como chegou a pensar Riobaldo em relação a Diadorim, é um previsível da vida, mas tão apenas quando ocorre algum fato de força maior ou caso fortuito: rebus sic stantibus [27]. Se as coisas não mais se conservam da forma como estavam ao ser erigido o contrato, cessa a sua força vinculante [28]:

Cada dia é um dia. (...) Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele... [29]. (...) Cada dia é um dia [30]. Mas cada dia de Riobaldo era dia de Diadorim: Pensei em Diadorim. O que eu tinha de querer era que nós dois saíssemos sobrados com vida, desses todos combates, acabasse a guerra, nós dois largávamos a jagunçada, íamos embora, para os altos Gerais [31] tão ditos, viver em grande persistência [32].(...) Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura [33].

Sentindo-se assim Riobaldo, o pacto firmado com Diadorim foi mantido. Prevalecia a sua irretratabilidade [34]. Ainda assim, Riobaldo, em certas ocasiões, tenta convencer o amigo a mudar o conteúdo do avençado, lutariam juntos, guerreariam juntos, fariam prevalecer a justiça, mas sem vingança que "não é promessa a Deus, nem sermão de sacramento", ao que foi rebatido por Diadorim "-Riobaldo, você teme?". Dessa forma, Diadorim defendia a intangibilidade [35] do ajustado.

O bando a que pertenciam Riobaldo e Diadorim era comandado por Medeiro Vaz. As avenças feitas entre os jagunços desse bando, que contavam sessenta homens deveriam estar de acordo com a lei de seu chefe. Medeiro Vaz era fazendeiro de posses que havia deixado tudo após

as guerras e os desmandos dos jagunços – tudo era morte e roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas (...) por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô (...) reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem dos campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça [36].

O bando de Medeiro Vaz era, então, respeitado e querido pelos habitantes dos vilarejos por a ninguém fazer o mal que não fosse merecido:

...a vantagem nossa era que todos os moradores pertenciam do nosso lado. Medeiro Vaz não maltratava ninguém sem necessidade justa, não tomava nada à força, nem consentia em desatinos de seus homens. Esbarrávamos em lugar, as pessoas vinham, davam o que podiam, em comidas, outros presentes [37].

Já o jagunço Hermógenes e o seu bando, o que era dito terem feito pacto com o "Cujo", para atingirem os seus intentos, roubavam, defloravam demais, determinavam sebaça em qualquer povoal atôa, renitiam feito peste. Os contratos acordados dentro do bando de Medeiro Vaz encontravam o seu limite no interesse da coletividade. Matava-se e morria-se entre os jagunços, desde que os demais homens, mulheres e crianças que de nada tinham que ver com aquilo, fossem não apenas preservados, mas também protegidos. Pois se fosse avença para matar, que se matassem apenas aqueles que estavam matando e atraiçoando as pessoas. Essa função não tinham os ajustes feitos dentro do bando de Hermógenes, que impactavam as comunidades, violando mulheres e crianças, matando homens inocentes. Os pactos dos jagunços de Medeiro Vaz atendiam à uma função social, os dos jagunços de Hermógenes e dos cardões, dizimavam qualquer sociedade [38]. Essa ética dos jagunços comandados por Medeiro Vaz foi mantida ao assumir a chefia do bando o pretendente a político, Zé Bebelo, e, posteriormente, o próprio Riobaldo que, ao ser, mesmo que depois de muita renitência, coroado chefe dos jagunços, recebeu o codinome de Urutú-Branco, e segundo ele mesmo Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso [39].

Mas por dentre os sertões dos desejos de Riobaldo havia um outro contrato a ser celebrado, um ajuste de corpos e de almas que caminhavam enlaçadas no dormir e no acordar, mas que se não podiam acordar em casamento entre si. Riobaldo amava com loucura Diadorim, se ele fosse mulher, mesmo que o desprezasse, ele afirma que se encorajaria e a tomaria em seus braços. Mas ele não o era. O pacto de esponsais carecia de pressupostos de validade: a legitimidade das partes e o objeto lícito e possível. A volição profunda não seria, jamais, suficiente para arremedar o que, por lei, é nulidade absoluta. E o que é o impossível? O que não pode ser, o que não pode acontecer, o que se não pode praticar. E Riobaldo sofria e sofria, debatia-se consigo mesmo já que era em Diadorim que desejava realizar a extasia da carne e em quem já havia alcançado a plenitude da alma:

E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar (...) [40]. Que vontade era de por meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível [41]. (...) Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares... [42]. (...) bastava ele me olhar com os olhos verdes tão em sonhos, e, por mesmo de minha vergonha, escondido de mim mesmo eu gostava do cheiro dele, do existir dele, do morno que a mão dele passava para a minha mão [43]. Mas eu carecia de mulher ministrada, da vaca e do leite. De Diadorim eu devia de conservar um nojo.(...) Eu estremecia, sem tremer [44].

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Diante dessa impossibilidade, Riobaldo desviava a sua libido para outros objetos, desconcentrando-a de Diadorim. Investia a sua carga erótica e idílica de forma hermética e compartimentalizada em duas mulheres, Otacília e Nhorinhá. Em Otacília, o idílio, em Nhorinhá, o eros carnal. Nhorinhá, a "prostitutriz" que Recebeu meu carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal [45]. Na sua confusão e desentendimento de si mesmo, pacto de casamento não foi feito com nenhuma delas, ao menos enquanto a vida o conjugasse a Diadorim. Com ambas, haveria os elementos constitutivos do contrato, seus pressupostos básicos. No entanto, careceriam as avenças de um pressuposto essencial não previsto em lei, mas observado por Riobaldo: amor.

Restava, então, a Riobaldo, esforçar-se por cumprir o seu trato com Diadorim: exterminar o Hermógenes e seguir vida adiante. Em sua boa-fé na execução do ajustado, Riobaldo conversa com o jagunço Lacrau sobre a procedência de ser o Hermógenes positivo pactário com "O-Que-Nunca-Se-Ri" do qual obtém resposta afirmativa. Hermógenes havia, de fato, assinado a alma em pagamento à "Coisa-Má" de quem recebia imensa proteção. Riobaldo já então chefe dos jagunços, o Urutú-Branco, toma para si o destino de dar cabo do Filho do Pactário [46]. Para tanto, resolve, ele mesmo, ir ao encontro do "Cujo" em uma encruzilhada, depois da meia-noite, nas Veredas Mortas. Riobaldo grita para que o "Danado" lhe apareça, pois também quer com ele fazer um pacto, vender sua alma, palma e desalma e, em troca, acabar com o Hermógenes. No entanto, o "Coxo" não apareceu e nem respondeu a Riobaldo, que em um primeiro instante concebeu que ele não existisse, que fosse um falso imaginado, mas depois concluiu que ele teria lhe ouvido e que teria fechado o pacto:

Ao que fui, na encruzilhada, à meia-noite, nas Veredas Mortas. Atravessei meus fantasmas? (...) O que era para haver, se houvesse, mas que não houve: esse negócio. Se pois o Cujo nem não me apareceu, quando esperei, chamei por ele? Vendi minha alma algum? Vendi minha alma a quem não existe? Não será o pior?...Ah, não: não declaro [47].

Os dias se multiplicaram tal como redemoinhos, abarcando tempo, sol e noite e gente. Até que chegou o dia do assalto final. O bando de Hermógenes atacava com fúria e destemor, com sede de sangue, animosamente. Diadorim avançou por sobre Hermógenes. Lutaram corpo a corpo, faca a faca. Riobaldo assistia ao longe. As carnes de Hermógenes e de Diadorim eram cortadas em fatias. Até que Riobaldo viu Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes, fazendo cuspir do corpo dele um jato de sangue. Mas, de repente, não mais viu Diadorim...

Diadorim! Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo...Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei. Eu estou depois das tempestades [48].

Hermógenes estava morto, assim como morto também estava Diadorim. A guerra fora vencida pelo bando de Riobaldo. Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente- para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram [49]. Mors omnia solvit [50] . Extintos estavam todos os pactos.

O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? [51] Viver é negócio muito perigoso... [52]. Mesmo na comutatividade, haverá sempre uma álea à espreita, mas mesmo na álea será contratada a esperança, emptio spei: Claráguas, fontes, sombreado e sol [53].

O corpo de Diadorim foi levado a uma Mulher para ser lavado e vestido a seu rogo: – Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes... [54]. Essa Mulher era a mulher do Hermógenes. Todos saíram. Riobaldo ficou. A mulher, de propósito, não mostrou a Riobaldo o corpo. E ao estar Diadorim, "nu de tudo", ela disse: "A Deus dada. Pobrezinha..." [55]. Ao que ouviu, dilacerado, Riobaldo:

...Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa.(...) Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero. (...) E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo: -"Meu amor!...". (...) Recaí no marcar do sofrer. (...) Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão. Ela tinha amor em mim [56].

Diadorim era parte legitimada para o matrimônio, o objeto do contrato seria lícito e possível. A avença que não foi e poderia ter sido. Viver é muito perigoso... [57]. Riobaldo caiu, gravemente, doente.

Meses se passaram. Riobaldo, já de pé e refeito foi visitar o seu mentor e conselheiro, o Compadre meu Quelelém, e o indagou

O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?!" Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu: -"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais... [58].

Paritariedade, comutatividade.

Digo ao senhor: Tudo é pacto [59]. E o tempo da vereda da humana vida é exíguo para que se cumpra o pacto dos afetos. Diante dessa verdade inelutável, o próprio direito se cala e os seus princípios baixam os olhos enveredando-se nas veredas verdes dos sertões de Riobaldos e Diadorins.

Viver é muito perigoso; e não é não [60].

Quem era Diadorim? Por que, por tanto tempo, se impossibilitou para o amor? Se viva continuasse, despedir-se-ia de seu segredo? –"Posso me esconder de mim?..." [61]. Diadorim era. E o que ela era foi mais forte do que o que ela se esforçava por aparentar ser. Transpassava a sua persona e exalava-se para além do corpo, criando um mundo de vínculos e de sentimentos a despeito dela mesma. Uma outra resposta talvez seria a de que Diadorim era em si toda a possibilidade do homem humano [62] em sua humanidade possibilitada e, cumprida a avença, ela possibilitar-se-ia.

E, por princípio, quando o pacto é de amor, o impossível é nonada [63].


Referências Bibliográficas:

ALVES, J. C. M. Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1972.

GOMES, O. Contratos. São Paulo: Forense, 1975.

IHERING, R. O Espírito do Direito Romano. Rio de Janeiro: Calvino Filho, 1934.

PRÉVOST, J. Le role de la volonté dans la formation de l`obligation civile. Paris: 1939.

RODRIGUES, S. Direito Civil. vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2002.

ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

WINDSCHEID, B. Diritto delle Pandette. Turim: Unione Tipografico, 1902-1904.


Notas

  1. Obra de GUIMARÃES ROSA ([1956] 2006).
  2. Pactum provém de pax, paz ou de pacisci, tratar em conjunto, acordar-se. Representava uma composição (IHERING, 1934)
  3. "Em Roma, nem todo acordo de vontade lícito gerava obrigações: contrato (contractus) e pacto (pactum, conventio) eram acordos de vontade, mas, ao passo que aquele produzia obrigações, este, em regra, não". (MOREIRA ALVES, 1972). Ver PRÉVOST (1939).
  4. Princípio da Autonomia da Vontade e Princípio do Consensualismo: "A idéia que circula em todo o direito privado é a da autonomia do indivíduo" (IHERING, 1934).
  5. GUIMARÃES ROSA, ob. cit., pág. 24.
  6. Princípio da Relatividade dos Contratos: O contrato apenas obriga aqueles que o celebram.
  7. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 22.
  8. Este contrato atípico foi introduzido na doutrina jurídica pátria por San Tiago Dantas.
  9. A análise aqui, ora feita, se faz sobre uma obra de ficção. Despiciendo salientar que contratar a morte de alguém é crime, ou seja, o contrato é civilmente inválido por carecer de um de seus pressupostos: a liceidade do objeto.
  10. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 510.
  11. "Os primeiros impulsos do sentimento do direito lesado consistem inevitavelmente numa violenta reação contra a injustiça causada, isto é, na defesa privada e na vingança. Todo direito, pois, tem sua origem na defesa privada e na vingança – espécie de justiça selvagem, como lhe chama Bacon de Verulam. Mas esta origem (...) é apenas o caos que precede a fundação do Estado, corresponde ao período em que o direito e a força ainda não se separaram (...)" (IHERING, 1934). Esta observação de Ihering que tem por objeto a ausência do Estado em um estado de natureza hobbesiano, em uma sociedade primitiva, tão bem se aplica às condições humanas e sociais encontradas nos sertões do norte de Minas Gerais e sul da Bahia nos meados do séc. XX onde transcorre o romance de Guimarães Rosa.
  12. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 29.
  13. Princípio da Obrigatoriedade dos Contratos.
  14. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 534.
  15. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 28.
  16. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. págs. 48 e 49.
  17. Princípio da Boa-Fé nos Contratos.
  18. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 41.
  19. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 15.
  20. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. Pág. 20.
  21. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 20
  22. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 266.
  23. Princípio da Força Obrigatória dos Contratos.
  24. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 180.
  25. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 181.
  26. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 231.
  27. "Contractus qui habent tractum sucessivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelligentur". Cláusula elaborada pelos pós-glosadores.
  28. Princípio da Imprevisão. Ver WINDSCHEID (1902-1904).
  29. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 542.
  30. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 398.
  31. Alusão ao Estado de Minas Gerais.
  32. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 208.
  33. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 311.
  34. Princípio da Irretratabilidade: Contraído o vínculo, nenhuma das partes pode desfazê-lo a seu arbítrio (GOMES, 1975).
  35. Princípio da Intangiblilidade: O contrato não admite modificação do seu conteúdo que não resulte de mútuo consenso – privatorum pactis mutari non potest (GOMES, 1975).
  36. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 44.
  37. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 56.
  38. Princípio da Função Social dos Contratos.
  39. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 494.
  40. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 36.
  41. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 46.
  42. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 59.
  43. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 489.
  44. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 316.
  45. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 33.
  46. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 409
  47. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 483.
  48. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 595.
  49. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág
  50. Brocardo latino que significa "A morte acaba tudo".
  51. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 354.
  52. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 10.
  53. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 27.
  54. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 598
  55. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 599.
  56. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. págs. 599 e 600.
  57. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 25.
  58. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 607.
  59. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 312.
  60. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 312.
  61. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 423.
  62. GUIMARÃES ROSA, ob. cit. pág. 608: "Existe é homem humano".
  63. Neologismo criado por João Guimarães Rosa que significa "nada" e é citado várias vezes no decorrer da obra.
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Sobre a autora
Andrea Almeida Campos

Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutoranda. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. A obra "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, e os princípios contratuais civis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2265, 13 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13502. Acesso em: 23 dez. 2024.

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